Introdução Normas de edição

 

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AdvertenciaAdvertência o título "Advertência" não consta do manuscrito

 

Quando o conselheiro Ayres falleceuAires faleceu, acharam-se-lhe na secretária secretaria dezsete cadernos manuscriptosmanuscritos, rijamente encapados em papelão. Cada um dos primeiros noveseis tinha o seu numeronúmero de ordem, por algarismos romanos, I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII, IX I, II, III, IV, V. VII, II, III, IV, V, VI, escriptosescritos a tinta encarnada. O decimo setimosétimo trazia um titulo, assim este tituloeste título: Ul ULT Ultimo Ultimo.Último

A razão desta designação especial não se comprehendeucompreendeu então nem depois. Sim,

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era o ultimoúltimo dos dezsete cadernos, com a particularidade de ser o mais grosso, mas não fazia parte do Memorial, diariodiário de lembranças que o conselheiro escrevia desde muitos annosanos e era a materiamatéria dos noveseis. Não trazia a mesma ordem de datas, com indicação da hora e do minuto, como usava nestes. nelles.neles. Era uma narrativa; e, posto figure nella aqui o proprio Ayrespróprio Aires, com o seu nome e titulotítulo de conselho, e, por allusãoalusão, algumas aventuras, nem assim deixava de ser uma a narrativa extranha áestranha à materiamatéria dos noveseis cadernos. UltimoÚltimo porquê?

A hypothesehipótese de que o desejo do finado fosse imprimir este caderno

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em seguida aos outros outros, parece incon inaceitavel, s não é natural, salvo se queria obrigar a leitura dos noveseis, em que tratava de si, antes que lhe conhecessem esta outra historia, composta, organisada, historia, escriptahistória, escrita com um pensamento interior e unico, atravezúnico, através das paginaspáginas diversas. Nesse caso, era a vaidade do homem que falava, mas a v a vaidade não fazia parte dos seus defeitos. Quando fizesse, valia a pena satisfazel-asatisfazê-la? ElleEle não representou papel eminente neste mundo; percorreu a carreira diplomaticadiplomática, e aposentou-se. Nos lazeres do officioofício, escreveu o Memorial, que, aparado das paginaspáginas mortas ou escuras, apenas daria

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(e talvez dê) para matar o tempo da barca de PetropolisPetrópolis.

Tal foi a razão de se publicar somente sómente a narrativa. Quanto ao titulotítulo, foram fôram lembrados variosvários, em que o assumptoassunto se pudesse resumir, Ab ovo, por exemplo, apezarapesar do latim; mas venceu a ideia de conservar o do manuscripto, posto q lhe falte a relação de ordem. Ultimo estava, Ultimo fica. venceu, porém, a ideia de lhe dar estes dous nomes que o proprio Ayres citou uma vez: ESAÚ E JACOBvenceu, porém, a ideia de lhe dar estes dous nomes que o próprio Aires citou uma vez: ESAÚ E JACÓ.

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Dico, che quando l´anima mal nata...

Dante

 

 
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ESAÚ E JACOB

 

Dico, che quando l´anima mal nata...

Dante.

 

 

CapituloCapítulo PrimeiroI  

Cousas futuras!  

Era a primeira vez que as duas iam ao morro do CastelloCastelo. Começaram de subir pelo lado da rua do Carmo. Muita gente ha nesta cidadeno Rio de Janeiro que nunca lá foi, muita haverá morrido, muita mais nascerá e morrerá sem lá pôr os pés. Nem todos podem dizer com verdade quedizer que conhecem uma cidade inteira. Um velho inglezinglês, que aliás andáraandara terras e terras, dizia-meconfiava-me umaha muitos annosanos em Londres que

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de Londres só conheciam/a\ bem Piccadilly a Cityo seu club, e era o que lhe bastava da metropolemetrópole e do mundo.

Agueda Conceição Natividade e PerpetuaPerpétua conheciam outras partes, alemalém de Botafogo, mas o morro do CastelloCastelo, por mais que ouvissem falar delledele e da cabocla que lá reinava em 1871, era-lhes tão extranhoestranho e remoto co como Piccadilly a Cityo club. O ingremeíngreme, o desigual desegual, o mal calçado da ladeira mortificavam os pés ásàs duas pobres donas. Não o obstante, continuavam a subir, como se fosse penitenciapenitência, devagarinho, cara no chão, veuvéu para baixo. A m manhã trazia certo movimento; mulheres, homens, creançascrianças que

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desciam ou subiam, lavadeiras e soldados, algum empregado, algum logistalojista, algum padre, e ninguem conhecia as duas senhoras todos olhavam espantados para ellaselas, que aliás vestiam com grande simplicidade; mas ha um donaire que se não perde, e não era vulgar naquellasnaquelas alturas. A mesma lentidão do andar, comparada áà rapidez das outras pessoas, faziam fazia desconfiar que era a primeira vez que alliali iam. Uma creoulacrioula perguntou a um soldadosargento: «Você quer ver vêr que ellaselas vão áà cabocla?» E ambos pararam a distanciadistância, tomados daquelledaquele no grande invencivelinvencível desejo de conhecer a vida uns dos outros que é a base da historia. que faz a prova testestemunhal da historia.alheia, que é muita vez toda a necessidade humana.

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Com effeitoefeito, ellasas duas senhoras buscavam disfarçadamente o numeronúmero da casa da cabocla, até que deram com ella/e\ele. A casa era como as outras, trepada no morro. Subia-se por uma escadinha, estreita, e sombria, adequada áà aventura. QuerendoQuizeramQuiseram entrar depressa, mas esbarraram com dous sujeitos que vinham descendo,saindo, e coseram-se áoao paredeportal. Um dellesdeles perguntou-lhes familiarmente se iam consultar a adivinha.

— Perdem o seu tempo, concl concluiu, efurioso, econcluiu furioso, e hão de ouvir muito disparate...

— Não, subam, subam, emendou o outro,

— É mentira delledele, emendou o outro rindo; a cabocla sabe muito bem onde tem o nariz.

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Hesitaram um pouco; mas, logo depois advertiram que as palavras do primeiro eram signalsinal certo da videnciavidência e da fidelidadefranquezafidelidadefranqueza da adivinha; nem todos teriama a mesma sorte alegre. Em ver- A dos meninos de Soledade AguedaConceição Natividade podia ser miseravelmiserável, e então... Emquanto Em quantoEnquanto cogitavam passava/ou\ fórafora um frade , depois um carteirocarteiro, que as fez subir mais depressa, para escapar a outros olhos. Tinham fé, mas tinham tambemtambém vexame da opinião, como um devoto que se benzesse ásàs escondidas.

Um v/V\elho caboclo, as fez entrar na sala; era o pae da adivinha. A salapae da adivinha, conduziu as senhoras á sala. Estapai da adivinha, conduziu as senhoras à sala. Esta era simples, as paredes eramnuas, nada que lembrasse mysteriomistério ou en incutisse pavor, nenhum petrecho

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symbolicosimbólico, nenhum bicho empalhado, es esqueleto ou sin desenhosdesenho de molestiasaleijões. Quando muito, muito um registo da ConceiçãoVirgem Conceição collado ácolado à parede podia lembrar um mysteriomistério, apezarapesar de encardido e roidoroído, mas não mettiametia medo. Sobre uma cadeira, uma viola.

— Minha filha ja vem, disse o velho. As senhoras como se chamam?

A Uma e a outra deram Agueda deuConceição deuNatividade deu o nome de baptismo somente, sómente, Maria, como um veuvéu mais espesso que o que traziam/a\ no rosto, e receberam recebeu um cartão, — porque a consulta era só de uma — com o num numeronúmero 1,0942,094 1,012. Não ha que pasmar do nu algarismo; a fregueziafreguesia era numerosa, e vinha de mezesannosdous annos muitos mezes.muitos meses. TambemTambém não ha que

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dizer do costume, que é velho e velhissimovelhíssimo. Relê EschyloÉsquilo, meu amigo, relê as EumenidesEumênides, lá verás a PythiaPítia, chamando os que iam áà consulta: «Se ha aqui HellenosHelenos, venham, approximem-seaproximem-se, segundo o uso, na ordem marcada pela sorte... » A sorte outr’oraoutrora, a numeração agora, tudo é que a verdade se ajuste áà prioridade, e ninguemninguém perca a sua vez de audienciaaudiência. Natividade guardou o bilhete, e ambas foram fôram á janellaà janela.

A falar verdade, temiam ambas temiam o seu tanto, PerpetuaPerpétua menos que Natividade. A aventura parecia audaz, e algum perigo possivelpossível. Não ponho aqui os seus gestos; imaginaeimaginai que eram

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desconcertados inquietos e desconcertadinqu inquietos e desconcertados. Nenhuma dizia nada. Natividade confessou depois que tinha um nó na garganta. Felizmente, a cachcabocla não se demorou muito; ao cabo de treztrês ou quatro minutos, o paepai a trouxe pela mão, erguendo a cortina do fundo.

— Entra, BarbaraBárbara.

BarbaraBárbara entrou, emquantoenquanto o paepai pegou da viola e passou ao patamar de pedra, áà porta da esquerda. Era uma creaturinhacriaturinha leve e breve, sáiasaia bordada, chinellinha chinelinha no pé. Não se lhe podia negar um corpo airoso. Os

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cabelloscabelos, apanhados no alto da cabeça por um pedaço de fita enxovalhada, faziam-lhe um solideusolidéu natural, cuja borla era suppridasuprida por uma flor azul.um raminho de arruda. vaevai nisto um pouco de sacerdotizasacerdotisa. O mysteriomistério estava nos olhos. Estes eram opacos, não tanto nem semprenão sempre nem tanto que não fossem tambem lucidostambém lúcidos e agudos, e neste ultimoúltimo estado eram egualmenteigualmente compridos; tão compridos e tão agudos que entravam pela gente abaixo, revolviam o coração e tornavam cá fórafora, promptosprontos para nova entrada e outro revolvimento. Não te minto dizendo que as duas sentiram tal ou e qual fascinação. BarbaraBárbara

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interrogou-as; Natividade disse ao que vinha e entregou-lhe os retratos dos filhos e os cabelloscabelos cortados, por lhe haverem dito que bastava.

— Basta, confirmou BarbaraBárbara. Os meninos são seus filhos?

— São.

— Cara de um é cara de outro.

— São gemeosgêmeos; nasceram ha pouco mais de um annoano.

— As senhoras podem sentar-se.

Natividade disse baixinho áà outra que «a cabocla era sympathicasimpática», não tão baixo que esta não pudesse ouvir tambemtambém; e dahidaí pode póde ser que ellaela, receiosareceosa da predicçãopredição, quizesse aquilloquisesse aquilo mesmo para obter um bom destino aos filhos. A cabocla

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foi sentar-se áà mezamesa redonda que estava no centro da sala, virada para as duas. PozPôs os cabelloscabelos e os retratos defronte de si. Olhou mualternadamente para elleseles e para a mãe, fez algumas perguntas a esta, e lo ficou a mirar os retratos e os cabelloscabelos, boca bôca aberta, sobrancelhas cerradas. Custa-me dizer que accendeuacendeu um cigarro, mas digo, era p verporque é verdadeverdade, e o fumo concorda com o officioofício. FóraFora, o paepai roçava os dedos na viola, murmurando uma cantiga do sertão do norte:

Menina da saia branca,

Saltadeira de riacho...

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EmquantoEnquanto o fumo do cigarro ia subindo, a cara da adivinha mudava de expressão, radiante ou sombria, ora interrogativa, ora explicativa. BarbaraBárbara inclinava-se aos retratos, a moapertava uma madeixa de cabelloscabelos em cada mão, e fitava-as, e cheirava-as, e escutava-as, sem a affectaçãoafectação que por venturaporventura aches nesta linha. TaesTais pou gestos não se poderiam contar naturalmente. SoledadeAguedaConceição Natividade não tirava os olhos delladela, como se quizesse lel-aquisesse lê-la por dentro. E não foi sem grande espanto que lhe ouviu perguntar se os meninos tinham brigado antes de nascer.

— Brigado?

S/B\rigado, sim, senhora.

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— Antes de nascer?

— Sim, senhora, pergunto se não teriam brigado, no/a\ ventre de barriga ventre barriga no ventre de sua mãe; não se lembra?

Soledade AguedaConceiçãoNatividade, que não tivera a gestação socegadasossegada, respondeu que effectivamenteefetivamente sentira movimentos extraordinariosextraordinários, repetidos, e dores dôres, e insomniasinsônias... Mas então que era? Brigariam porquê? A cabocla não respondeu. Ergueu-se pouco depois, e andou áà volta da mezamesa, lenta, como somnambulasonâmbula, os olhos abertos e fixos; depois entrou a tro dividil-osdividi-los novamente entre a mãe e os retratos. Agitava-se agora mais, respirando grosso. Toda ellaela, cara e braços, hombrosombros e pernas, toda era

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pouca para arrancar a palavra ao Destino. EmfimEnfim, parou, sentou-se exhaustaexausta, até que se ergueu de salto e foi ter com as duas, tão radiante, os olhos tão vill vivos e callidoscálidos, que a mãe ficou pendente dellesdeles, e não se pode poudepôde ter que lhe não pegasse das mãos e plhe perguntasse anciosaansiosa:

— Então? Diga, fale, possoDiga, posso ouvir Tudotudo.

BarbaraBárbara, cheia de alma e riso, deu um respiro de gosto. A primeira palavra parece que lhe chegou áà boca, bôca, mas recom/lh\eu-se ao coração, virgem dos labios dellalábios dela e de alheios ouvidos. Soledade AguedaConceiçãoNatividade instou para/ela\pela resposta, que lhe dissesse tudotudo, sem mefalta... e perguntava o

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— Cousas futuras! murmurou finalmente a cabocla.

— Mas, cousas feias?

— Oh! não! não! Cousas bonitas, cousas futuras!

— Mas isso não basta; diga-me o resto. Esta senhora é minha irmã e de segredo, mas se é preciso sair, ella saeela sai; eu fico, diga-me a mim só... Serão felizes?

— Sim.

— Serão grandes?

— Serão grandes, oh! grandes! Deus hade ha dehá de dar-lhes muitos beneficiosbenefícios. EllesEles h hão de subir, subir, subir... Brigaram no/a\/o\no ventre barriga ventre de sua mãe, que tem? Cá fóra tambemfora também se briga. Seus filhos

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serão gloriosos. É só o que lhe digo. Quanto áà qualidade da gloriaglória, cousas futuras!

Lá dentro, a voz do caboclo velho ainda uma vez continuava a cantiga do sertão:

Trepa-me neste coqueiro,

Deita-meBota-me os coqcocos abaixo.

E A a filha, não tendo mais que dizer, ou não sabendo mais quesabendo que explicar, dava aos quadris o gesto da toada, que o velho repetia lá dentro:

Menina da saia branca,

Saltadeira de riacho,

Trepa-me neste coqueiro,

Bota-me os cocos , abaixo.

Quebra coco, sinhá,

Lá no cocacocá,

Se te dá na cabeça,

HadeHá de rachá;

Muito heidehei de me ri,

Muito heidehei de gostá,

Lelê, cocô, nayánaiá.

 
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CapituloCapítulo II 

Melhor de descer que de subir.

Todos os oraculos temoráculos têm o falar dobrado, mas a final alguma vez entendem-seentendem-se. Soledade aca AguedaConceição Natividade acabou entendendo a cabocla, apezarapesar de lhe não ouvir mais nada; bastou saber que as cousas futuras seriam bonitas, e os filhos grandes e gloriosos para ficar alegre e tirar da bolsa uma nota de cincoentacinquenta mil reisréis. Era cinco vezes mais que o preço do costume, e valia tanto ou mais que as dadricricas dadivasdádivas de Créso á PythiaCreso à Pítia. Arrecadou

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os retratos e os cabelloscabelos, e as duas sairam, em quantosaíram, enquanto a cabocla ia para os fundos, áà espera de outros. Já haviam alguns freguezes áfregueses à porta, com os numerosnúmeros de ordem, e ellaselas sairamdesceram rapido/amente,\rapidamente cara no chão. escondendo a carta cara.

MathildePerpetuaPerpétua compartia as alegrias da irmã, as pedras tambemtambém, o murro muro do lado do mar, as camizascamisas penduradas ás janellasàs janelas, as cascas de banana no chão. Os mesmos sapatos de um irmão das almas, que ia a dobrar a esquina da rua de/a\ Misericordiada Misericórdia para a de S.São José, pareceu riremque riaciam rir de alegria, quando realmente gemiam de cançasso.cançassocansaço. SoledadeConceiçãoAguedaNatividade

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estava tão fórafora de si que, ao ouvir-lhe pedir: «Para a missa das almas!» tirou da bolsa uma nota de dous mil reisréis, nova em folha, e deitou-a áà bacia. A irmã chamou-lhe a attençãoatenção para o engano, mas não era engano, era para as almas do purgatoriopurgatório.

E seguiram lepidaslépidas para o coupé, que as esperava no espaço que fica entre a egrejaigreja de S.São José e a camaracâmara dos deputados. Não tinham querido que o carro as levasse até ao principioprincípio da ladeira, para que o cocheiro oue o lacaio ou ambosou n não desconfiassem da consulta. Toda a gente falava então da cabocla do

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CastelloCastelo, era o velhopri assumptoassunto da cidade; attribuiam-lheatribuíam-lhe um poder infinito, uma seriesérie de milagres, sortes, achados, casamentos. Se descobr as descobrissem, estavam perdidas, embora muita gente boa lá fosse. Agora, Ao vel-asvê-las dando a esmola ao irmão das almas, o l cocheiro tocoulacaio trepou á almofadaà almofada e o cocheiro tocou os cavalloscavalos, paraa carruagem veiu buscal-asveio buscá-las, e guiou para Botafogo.

 
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CapituloCapítulo III 

A nota de dous mil reis A esmola da felicidadefelicidade.

– Deus lhe accrescenteacrescente, minha senhora devota!, gemeu exclamou o irmão ao v das almas ao ver a nota cair em cima de dous nickeisníqueis de tostão e alguns vintensvinténs antigos. Deus lhe dê todas as felicidades do ceucéu e da terra, e as almas do purgatoriopurgatório peçam a Maria SantissimaSantíssima que recommenderecomende a senhora dona a seu bemditobendito filho!

Quando a sorte ri, toda a nat natureza ri tambemtambém, e o coração ri como tudo o mais. Tal foi a explicação que, por outras palavras menos esp especulativas, deu o irmão das almas aos dous mil reisréis. A suspeita de ser a nota falsa não chegou a tomar pé no cerebrocérebro delle;deste: foi allucinação alucinação

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rapidarápida. Creu SuppozComprehendeuCompreendeu que as damas eram felizes, e, tendo o uso de pensar alto, disse piscando o olho, emquanto ellasenquanto elas entravam no carro:

AquellasAquelas duas viram passarinho verde, com certeza.

Sem rodeios, suppozsupôs que as duas senhoras vinham de alguma aventura amorosa, e concdeduziu isto de treztrês factos,fatos, que sou obrigado a enfileirar aqui para não deixar este homem sob a suspeita de calumniadorcaluniador gratuito. O primeiro foi a alegria dellasdelas, o segundo o valor da esmola, o terceiro o carro que as esperava a um canto, como se ellas quizessemelas quisessem esconder do cocheiro o ponto dos namorados. Não concluas tu que

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elleele tivesse sido cocheiro alguma dia, e andasse a conduzir moças antes de servir ásàs almas. TambemTambém não creias que fosse outr’oraoutrora rico e d adulteroadúltero, aberto de mãos, quando vinha de dizer adeus ásàs suas amigas. Ni cet excès d’honneur, ni cette indignité. Era um pobre diabo sem mais officioofício que a devoção. Demais, não teria tido tempo; mecontava apenas vinte e trezsete annosanos.

ComprimentouCumprimentou as senhoras, quando o carro passou. Depois ficou a olhar para a nota tão fresca, tão valiosa, nota que almas nunca viram sair das mãos delledele. Fu/o\iFoi subindo a rua de S.São José. Já não tinha animoânimo de de pedir; a nota fazia-se ouro, e a

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ideia de ser falsa voltou-lhe ao cerebrocérebro, mase agora mais frequente, até que se lhe pegou por alguns instantes. Se fosse falsa... «Para a missa das almas!» ge gemeu áà porta de uma quitanda, e deram-lhe um vintemvintém, – um vintemvintém sujo e triste, ao pé da nota tão novinha que parecia sair do prelo. Seguia-se um corredor de sobrado. Entrou, subiu, pediu, deram-lhe dous vintensvinténs, – o dobro da outra moeda no valor e no azinhavre.

E a nota sempre limpa, uns dous mil reisréis que pareciam vinte. O homNão, não era falsa. No corredor pegou delladela, mirou-a bem,; boera verdadeira. De repente, ouviu abrir a cancellacancela em

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cima, e uns passos rapidosrápidos. ElleEle, mais rapidorápido, metteu os dedos na bacia, saccou a amarrotou a nota e metteu-aamarrotou a nota e meteu-a na algibeira das calças; ficaram só os vintensvinténs, azinhavrados e tristes, o oboloóbolo da viuvaviúva. Saiu, foi áà primeira officinaoficina, áà primeira loja, ao primeiro corredor, pedindo longa e lastimosamente:

– Para P a missa das almas!

Um parenthesis. Viste a hesitação do homem. Agora sabe que elle, na egreja, ao Na egreja, aoNa igreja, ao tirar a opa, depois de entregar a bacia ao sacristão, ouviu uma voz debildébil como de almas remotas que lhe perguntavamperguntavam se os dous dous mil reisréis... Os dous mil reisréis, dizia outra

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voz menos debildébil, eram naturalmente delledele, que, em primeiro logarlugar, tambemtambém tinha alma, e, em segundo logarlugar, não recebera nunca tão grande esmola. Quem quer dar tanto vaevai á egrejaà igreja ou compra uma vela, não põe assim uma nota na bacia das esmolas pequenas.

Se minto, não é de intenção. Em verdade, as palavras não sairamsaíram assim articuladas e claras, nem as debeisdébeis, nem as menos debeisdébeis;t todas faziam uma zoeira aos ouvidos da conscienciaconsciência. Traduzi-as em lingualíngua falada, afima fim de ser entendido das pessoas que me leem lêem; não sei como se poderia transcrever para o papel

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um rumor surdo e outro menos surdo, e um atrazatrás de outro e todos confusos para o fim, até que o segundo ficou só: «Nnão tirou a nota a ninguemninguém... a dona é que a pozpôs na bacia por sua mão... tambem elletambém ele era alma...» ÁÀ porta da sacristia, que dava para a rua, ao deixar cair o reposteiro azul-escuro,azul escuro debruado de amarelloamarelo, não ouviu mais nada. Viu O irmão das almas viu Viu um mendigo que lhe estendia o chapeochapéu roto e sebento; elle metteumeteu a/v\agarosamentevagarosamente a mão no bolso do colletecolete, tambemtambém roto, e aventou uma moedinha de cobre que deitou ao chapeochapéu do mendigo, depois rapidorápido, ásàs escondidas, como quer o Evangelho. Eram dous vintensvinténs; ficavam-lhe

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mil novecentos e noventr/a\noventa e out oito reissessenta réisA edição crítica, que mantém as lições do manuscrito e da 1ª edição, refere que edições posteriores à 1ª corrigiram para mil novecentos e sessenta réis, como eu também faço. De facto, se um vintém equivalia a 20 réis, dois vinténs serão 40 réis. 2000 réis, o valor dado por Natividade, menos 40 réis, o valor dado por Nóbrega como esmola, resulta em 1960, valor com que Nóbrega ainda fica.. E o mendigo, como elle saisseele saísse depressa, mandou-lhe atrazatrás estas palavras de agradecimento, quasi egu parecidas com as suas:

– Deus lhe accrescenteacrescente, meu senhor, e lhe dê...

 
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CapituloCapítulo IV 

A missa dedo coupé coupé.

Natividade ia pensando na cabocla do CastelloCastelo, na predicçãopredição da grandeza e na noticianotícia da briga. Tornava a lembrar-se que, de factofato, a gestação não fôrafora socegadasossegada; mas só lhe ficava a s sorte da gloriaglória e da grandeza. A briga lá ia, se a houve; o futuro, sim, esse é que era o principal ou ou tudo. Não deu pela praia de Santa Luzia. No largo da Lapa interrogou a irmã sobre o que pensava da adivinha. PerpetuaPerpétua

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Perpetua respondia/eu\ que bem, que acreditava, e ambas concordaram que ellaela parecia falar dos propriospróprios filhos, tal era o enthusiasmoentusiasmo. PerpetuaPerpétua ainda lhe notou os cincoenta a reprehendeu pelos cincoentaa repreendeu pelos cinquenta mil reisréis dados á adivinha;em paga; bastavam dez... vinte...vinte.

— Não faz mal. Cousas futuras!

— Que cousas serão?

— Não sei; futuras.

Mergulharam outra vez no silenciosilêncio. Ao entrar no CatteteCatete, Agueda ConceiçãoNatividade recordou a manhã em que alliali passou, naquellenaquele mesmo coupé, e confiou ao marido o estado de gravidez. ; dahi a naVoltavam de uma missa de defunto, na igrejae/i\greja egrejaigreja de S.São Domingos...

«Na e/i\greja egrejaigreja de S. Domingos diz-se S.São Domingos diz-se hoje uma missa por alma de João de Mello, fallecidofalecido em Maricá.» Tal foi o annuncioanúncio que ainda agora podes pódes ler em algumas folhas de 1869. Não me ficou o dia, o mezmês foi agosto. O annuncioanúncio está certo, foi aquilloaquilo mesmo, sem mais nada, nem o nome da pessoa ou pessoas que mandaram dizer a missa,

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nem hora, nem convite. Não se disse sequer que o defunto era escrivão, officioofício que só perdeu com a morte. EmfimEnfim, parece que até lhe tiraram um nome; elleele era, se estou bem informado, João de Mello e Barros.

Não se sabendo quem mandava dizer a missa, ninguem la ninguem láninguém lá foi. A egrejaigreja escolhida deu ainda menos relevo ao actoato; não era vistosa, nem buscada, mas velhota, sem galas nem gente, mettidametida ao um canto de uma pequena/o\pequeno praçlargo, adequada áà missa recondita e anonymarecôndita e anônima.

ÁsÀs oito horas parou um coupé áà porta; o lacaio desceu, abriu a portinhola, desbarretou-se e perfilou-se. Saiu um senhor e deu a mão a uma senhora, a senhora saiu e tomou o braço ao senhor, atravessaram o pedacinho de rualargo e entraram na egrejaigreja. Na sacristia era tudo espanto, como fora no largo.espanto. A

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alma que a taes sitios attrahiratais sítios atraíra um carro de luxo, cavalloscavalos de raça, e duas pessoas tão finas não seria como as outras almas alli suffragadasali sufragadas. A missa A missa foi ouvida sem pêzames pesamespêsames nem lagrimaslágrimas. Quando acabou, o senhor foi áà sacristia dar as esportulasespórtulas. O sacristão, aggazalhandoagasalhando uma nota na algibeira a nota de dez mil reisréis que recebeurecebeu, achou que ellaela indicava s provava a sublimidade do defunctodefunto; mas que defunctodefunto era esse? O mesmo diria pensaria a caixa das d almas, se pensasse, quando a luva da senhora deixou cair dentro uma pratinha de cinco tostões. Já então havia na egrejaigreja meia duziadúzia de

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creançascrianças maltrapilhas, e, no largofórafóra,fora, alguma gente ásàs portas e no largo, espantadasesperando. As/O\ pessoa senhor, chegando áà porta, relanceou os olhos, ainda que vagamente, e viu que era objectoobjeto de curiosidade. A senhora trazia os seus no chão. E os dous entraram no carro, com o mesmo gesto, o lacaio bateu a portinhola e partiram.

A gente local não falou de outra cousa naquellenaquele dia e nos e e nos dias seguintes. Sacristão e visinhosvizinhos não esquecia falavam dorelembravam o coupé, com amororgulho. Era a missa do coupé. As outras missas vieram vindo, todas a pé, algumas

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de sapato roto, não raras descalças, capinhas velhas, morins estragados, missas de chita, ao domingo, missas de tamancos. Tudo voltou ao costume, mas a missa dedo coupé viveu na memoriamemória por muitos/as\/os\muitos dias semanasmezesmeses. Afinal não se falou mais nellanela; esqueceu como um baile.

Pois o coupé era este mesmo. A missa foi mandada dizer por aquelle aquelleaquele senhor, cujo nome é Santos, e o defunto era seu parente, ainda que pobre. Tambem elleTambém ele foi pobre; tambem elletambém ele nasceu em Maricá. Vindo para a/o\ CorteRio de Janeiro, por occasiãoocasião da febre das acçõesações(1855), dizem que revellourevelou grandes qualidades para ganhar dinheiro depressa. NãoGanhou muito, muito, mas logo muito,mas e fel-ofê-lo perder a outros. Casou em 1859 com Soledade Agueda esta Conceição Natividade, que ia então nos

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vinte annosanos e não tinha dinheiro, mas era bellabela e amava apaixonadamente. A Fortuna os abençoou com a riqueza. Uns annos a riqueza. Annosa riqueza. Anos depois tinham elleseles uma casa nobre, carruagem, cavalloscavalos e relações novas e distinctasdistintas. Dos dous parentes pobres de Soledade AguedaConceição morreu o pae Natividade morreu o paeNatividade morreu o pai em 1866; restava-lhe uma irmã. Santos tinha alguns em Maricá, a quem nunca mandou vintemdinheiro, fosse mesquinhez, fosse habilidade. Mesquinhez não creio; elleele gastava largo e dava muitas esmolas. Habilidade seria; tirava-lhes o gosto de vir á Corte pedir-lhe mais.

Não lhe valeu isto com João de Mello, que um dia appareceuapareceu aqui,

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a pedir-lhe emprego. Queria ser, como elle, directorele, diretor de banco. Santos arranjou-lhe depressa um logarlugar de escrivão do civelcível em Maricá, e despachou-o com os melhores conselhos deste mundo.

João de Mello retirou-se com a escrevaniaescrivania, e dizem que com uma grande paixão tambemtambém. Soledade Agueda Conceição Natividade era entãoa mais bellabela mulher do daquelledaquele tempo. Ainda agora No f fim, com os seus cabelloscabelos sexage quinquage quasi sexagenariosquási sexagenários, fará/ia\fazia crer crêr na tradicçãotradição. João de Mello ficou allucinadoalucinado quando a viu; ellaela conheceu isso, e portou-se bem. Não lhe fechou o rosto, é verdade, e era mais bellabela assim que zangada; não lhe fechou a boca, e possuia os

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maes lindos do tempo; destes temp cidade tambemtambém não lhe fechou os olhos, que eram negros e callidoscálidos. Só lhe fechou o coração, um coração que devia amar como como nenhum outro, foi a conclusão de João de Mello uma noite em que a viu ir decotada a um baile. Teve impetoímpeto de pegar delladela, descer, voar, perderem-se...

Em vez disso, uma escrevaniaescrivania e Maricá; era um abysmoabismo. Caiu nelle; treznele; três dias depois saiu da Corte do Rio de Janeiro para não tornar cávoltar. A principioprincípio escreveu muitas cartas ao parente, com a esperança de que ellaela as lêsse tambemlesse também, e comprehendessecompreendesse que algumas palavras eram para si. Mas Santos não

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lhe deu resposta, e o tempo e a ausenciaausência acabaram por fazer de João de Mello um excellenteexcelente escrivão. Morreu de uma pneumonia.

Que o motivo da pratinha de Soledade AguedaConceiçãodeitada de Natividade deitada áà caixa das almas fosse pagar a adoração do finado,defuncto,finadodefunctodefunto não digo que sim, nem que não; faltam-me pormenores. Mas pode póde ser que sim, porque esta senhora era não menos grata que piahonesta. Quanto ásàs larguezas do marido, não esqueças que o parente era defunto, e o defunto um parente menos.

 
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CapituloCapítulo V

Ha contradicções explicaveisHá contradições explicáveis.

Não me peças a causa de tanto encolhimento no annuncioanúncio e na missa, e tanta publicidade na carruagem, lacaio e libré. Ha contradicções explicaveisHá contradições explicáveis. Um bom autor, que inventasse a sua historiahistória, ou prezasse a logicalógica apparenteaparente dos acontecimentos, levaria o casal Santos a pé ou em caleça de praça ou de aluguel; mas eu, amigo, eu sei como as cousas se passaram, e refiro-as taes quaestais quais. Quando

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muito, explico-as, com a condição de que tal costume não pegue. Explicações comem tempo e papel, demoram a acçãoação e acabam por enfadar. O melhor é ler com attençãoatenção.

Quanto á contradicçãoà contradição de que se trata aqui, é de ver de que naquellenaquele recanto de um larguinho modesto, nenhum conhecido daria com elleseles, ao passo que elleseles gozariam o assombro local; tal foi a reflexão de Santos, se p se pode póde dar tal semelhante nome a um movimento interior que leva um a gente a fazer antes uma cousa que outra. Nisto não ha houve propriamente outra. Foi Está explicada a contradicção. Ja Pelo dada, a explicação. Resta que t a missa; a missa em si outra. Resta a missa; a missa em si

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mesma , e bastava a noticia que haveria dellaque fosse sabida no ceucéu e em Maricá. Propriamente vestiram-se para o ceucéu. O luxo do casal temperava a missa recondita,pobreza da oração; era uma especieespécie de homenagem ao finado. Se a alma de João de Mello os visse de cima, alegrar-se-hiaalegrar-se-ia do apuro em que elleseles foram fôram rezar por um pobre dia escrivaodiacrivão. Não sou eu que o digo; Santos é que o pensou.

 
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CapituloCapítulo VI

MaternidadeMaternidade.

A princípio, vieram calados. Quando muito, Natividade queixou-se da e/i\greja egreja, que lhe sujárasujara o vestido.

− Venho cheia de pulgas, continuou ellaela; porquepor que não fomos a S.São Francisco de Paula ou á Gloriaà Glória, que eraestão mais perto, e são limpas?

Santos trocou as mãos áà conversa, e falou das ruas mal calçadas, que faziam dar solavancos ao carro. Com certeza, quebravam-lhe as molas.

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Natividade não replicou, to mergulhou no silenciosilêncio, como naquellenaquele outro capitulocapítulo, dous annosvinte mezesvinte meses depois, quando vinhatornava do CastelloCastelo com a irmã. Os olhos parados, se eramnão tinham a nota de deslumbramento de que ti tiveram depois. trouxeram trariam então; iam parados e sombrios, como de manhã e na vesperavéspera. Santos, que ja reparárareparara nisso, perguntou-lhe o que é que tinha; que ellaela não sei se lhe r respondeu de palavra; se alguma disse, foi tão breve e surda que a acho não a pôde guardar para me inteiramente se perdeu. Talvez não passasse de um simples gesto de olhos, um suspiro, ou cousa assim. Fosse o que fosse, quando o coupé chegou ao meio do

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C do CatteteCatete, os dous levavam as mãos presas, e a expressão do rosto era de abençoados. Não davam sequer pela gente das ruas; se não davam talvez por si mesmos.

Leitor, não é muito que percebas a causa daquelladaquela expressão e desses dedos abod d abotoados. Já la ficou ditodita atrazatrás, quando era melhor deixar queque a adivinhasses; mas provavelmente não a adivinharias, sem o sanão que tenhas o entendimento curto ou escuro, mas porque o homem varia do homem homem, e tu talvez ficasses com igual egual expressão, simplesmente por saber que ias dançar sabbadosábado. Santos não dançava; preferia o voltarete, como redis tracçãotração. A causa era vertuosa virtuosa,

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Leitor, não é muito que percebas a causa daquelle extasis. Já ficou dita atraz. Era virtuosa Sem isso não a adivinharias, de resto. Era virtuosa A causa era virtuosa, como sabes; SoledadeAguedaConceiçãoNatividade estava gravidagrávida, acabava de o dizer ao marido.

Aos trinta annosanos não era cedo nem tarde; era imprevisto. Santos sentiu mais que ellaela o prazer da vida n nova. Eis ahi vinha a realidade do sonho de dez annosanos, uma creaturacriatura tirada da coxa de AbrahãoAbraão, como deziamdiziam aquellesaqueles jude bons judeus, que a gente queimou mais tarde, e agora emprestaemprestam generosamente o seu dinheiro ásàs companhias e ásàs nações. Levam juro por elleele; mas os hebraismoshebraísmos são dados

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de graça. AquelleAquele é desses. Santos, que só conhecia a parte judaica do emprestimoempréstimo, sentia inconscientemente do a do hebraismohebraísmo, e deleitava-se com elleele. A emoção tasatalha atava-lhe a lingualíngua; os olhos com que estendia áà esposa e a cobriam eram de patriarchapatriarca; o sorriso parecia chover luz sobre a pessoa amada, abençoada e formosa entre as formosas.

Soledade AguedaConceição não foi logo, logo assimNatividade não foi logo, logo, assim; a pouco e pouco foi é que veiué que veio sendo vencida e tinha ja a expressão de/a\da extasis maternidade esperança e da maternidade. Nos primeiros dias, os symptomassintomas desconcertaram a nossa damaamiga. É duro dizel-odizê-lo, mas é verdade. Lá se iam bailes e festas, lá ia

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a liberdade e a folga. Agueda ConceiçãoNatividade andava ja na alta roda do tempo; acabou de entrar por ellaela, com tal arte que parecia haver alliali nascido. Carteava-se com grandes damas, era familiar de muitas, tuteava algumas. Nem tinha só esta casa de Botafogo, mas tambemtambém outra em PetropolisPetrópolis; nem só carro, mas tambemtambém camarote no Theatro-LyricoTeatro-Lírico, não contando os bailes do Cassino Fluminense, os das amigas e os seus; todo o repertoriorepertório, em summasuma, da vida elegante. Era nomeada nas gazetas, pertencia áquella duziaàquela dúzia de nomes planetariosplanetários que figuram no meio da plebe plebe de estrellasestrelas. O marido era capitalista e directordiretor de um banco.

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No meio disso, a que vinha agora uma creança deformal-acriança deformá-la por mezesmeses, obrigal-aobrigá-la a recolher-se, pedir-lhe as noites, adoecer dos dentes e o resto? Tal foi a primeira sensação da mãe, e o primeiro impetoímpeto foi esganaresmagar o germengérmen. Criou raiva ao marido. A segunda sensação foi melhor. A maternidade, chegando ao meio dia, era como uma a aurora nova e fresca. Natividade viu a figura do filho ou filha brincando na relva da chacarachácara ou no regaço da aia, com tres annos trez annostrês anos de idade, edade, e este quadro daria aos trinta e quatro annosanos que teria entaoentão um aspecto de vinte e poucos...

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Foi o que a reconciliou com o marido. Não exagéroexagero; também não quero mal a esta senhora. Algumas teriam medo, a maior parte amor. A conclusão é que, por uma ou por outra porta, amor ou vaidade, o que o feto a creançao embryãoo embrião quer é entrar na vida. CesarCésar ou João Fernad/n\desFernandes, tudo é viver, assegurar a dynastiadinastia e sair do mundo o mais tarde que puder.

O casal ia calado. Ao desembocar na praia de Botafogo, a mar deu-lhesenseada trouxe o gosto de costume. A casa descobria-se a distanciadistância, magnificamagnífica; e ambos gostaramSantos gostou deleitou-se de vel-a, mirar-sea ver, mirou-se nellanela, crescer/u\cresceu com ellaela, subiu por ellaela. A estatueta de Narciso no meio do

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jardim, sorriu áà entrada chegada entrada dellesdeles, a areia fez-se relva, duas andorinhas cruzaram por cima do repucho,repuxo, figurando no ar a alegria dellesde ambos. A mesma ceremonia ácerimônia à descidado coupé. Santos ainda parou unsalguns instantes para vel-o ver o coupéver o coupé dar a volta, sair e tornar áà cocheira; depois seguiu a mulher em que entrava no saguão.

 
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CapituloCapítulo VII

GestaçãoGestação.

Em cima, esperava por elles Perpetuaeles Perpétua, aquellaaquela irmã de Natividade, que a a acompanhou ao CastelloCastelo, e ainda agora estálá ficou no carro, onde as deixei para narrar os antecedentes dos meninos. Era mais velha que a irmã tres annos, e viuva de um militar.

− Então? Houve muita gente?

− Não, ninguemninguém; pulgas.

Perpetua tambemPerpétua também não entendera a escolha da igreja egreja. Quanto áà concurrenconcurconcor renciarência, sempre lhe pareceu que seria pouca, oupouca ou nenhuma; mas o cunhado

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vinha entrando, e ellaela calou o resto. Era pessoa circumspectacircunspecta, que não se perdia por um dito ou gesto descuidado. Entretanto, foi-lhe impossivelimpossível calar o espanto, quando viu o cunhado entrar e dar áà mulher um abraço longo e terno, abrochado por um beijo.

− Que é isso? exclamou espantada.

Sem reparar no vexame da mulher, Santos deu um abraço áà cunhada, e ia a dar-lhe um beijo tambemtambém, se ellaela não recuasse a tempo e com força.

− Mas que é isso? Você tirou a sorte grande de HespanhaEspanha?

− Não, cousa melhor, gente nova.

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Santos conserváraconservara alguns gestos e modos de dizer dos primeiros annosanos, taestais que o leitor não chamará propriamente familiares; tambemtambém não é preciso chamar-lhes nada. PerpetuaPerpétua, p affeitaafeita a elleseles, acabou sorrindo e dando-lhe parabensparabéns. Já então Natividade os deixáradeixara para se ir despir. Santos, não seimeio arrependido da expansão, fez-se seriosério e conversou da missa e da igreja egreja. Concordou que esta era decrepita e mettidadecrépita e metida a um canto, mas allegoualegou razões espirituaesespirituais. Que a oração era sempre oração, onde quer que a alma falasse a Deus. Que a missa, a rigor, não precisaprecisava strictamente estrictamenteestritamente de altar; o rito e o padre bastavam ao sacrificiou/o\sacrificiosacrifício.

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Talvez essas razões não fossem propriamente delledele, mas ouvidas a alguemalguém, e decoradas sem esforço e repetidas com convicção. A cunhada opinou de cabeça que sim. Depois fallaram falaram do parente morto e concordaram piamente que era um asno; − não que dissessem disseram este nome, feio mas a totalidade das apreciações vieram vinha a dar nellenele, e acrescentado accrescentadorescentado de honesto , muito honesto e honestise honestíssimo.

− Era uma perolapérola, concluiu Santos.

Foi a ultimaúltima palavra do/a\da epitaphio. Dalli em deante, vingou necrologia; paz aos mortos. Dalli em deante, vingounecrologia; paz aos mortos. Dali em diante, vingou a soberania da creançacriança que sobrevinha começavaalvorecia. Não alteraram os habitoshábitos, nos

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primeiros mezestempos, e as visitas e os bailes continuaram como d’antesdantes, até que pouco a pouco, Soledade AguedaConceição Natividade se fechou totalmente em casa. As amigas iam vel-avê-la. Os amigos iam visital-osvisitá-los ou jogar cartas com o marido.

Soledade AguedaConceição Natividade queria um filho, Santos uma filha, e cada um pleiteava a sua escolha com tão boas razões, que acabavam trocando de parecer. Então ellaela ficava com a filha, e vestia-lhe as melhores rendas e cambraias, emquanto elleenquanto ele enfiava uma beca no jovenjovem advogado, quando m dava-lhe um logarlugar na/o\nocamara dos parlamento, outro no ministerioministério. TambemTambém lhe ensinava

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a enriquecer depressa; eme ajudal-o-hiaajudá-lo-ia começando por uma caderneta na Caixa EconomicaEconômica, desde o dia em que nascesse até os vinte e um annosanos. Alguma vez, ásàs noites, se estavam sós, Santos pegava de um lapislápis e desenhava a figura de de/o\umdo filho, com bigodes, − ou então riscava uma menina vaporosa.

− Deixa A edição crítica refere que edições posteriores à 1ª corrigem para «Deixe», Agostinho, disse-lhe a mulher uma noitenoitc; você sempre hade ser creançaha de scr creançahá de ser criança.

E pouco depois, deu por si a desejarsenhar de palavra a figura do filho ou filha, e ambos escolhiam a côrcor dos olhos, os cabelloscabelos, a tez, a estatura. Vês que tambem ellatambém ela aera

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creançacriança. A maternidade tem dessas incoherenciasincoerências, a felicidade tambemtambém, e por fim porfim a esperança, que é a meninice do mundo.

A perfeição seria nascer um casal. Assim os desejos do paepai e da mãe ficariam satisfeitos. Santos pensou em fazer sobre isso uma consulta spiritaespírita. Começava a ser iniciado nestanessa religião, ou philosophia, e tinha a fé noviça e ardente inquietafirme. Mas a mulher oppoz-seopôs-se; a consultar alguemalguém, antes a cabocla do CastelloCastelo, uma a a adivinha celebrecélebre do tempo, que descobria as cousas perdidas e predizia as futuras. Entretanto, recusava tambemtambém, por desnecessariodesnecessário. A

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que vinha consultar sobre uma duvidadúvida, que dallidali a mezesmeses estaria esclarecida? Santos achou, em relação áà cabocla, quer/e\ seria imitar as crendices da gente rélesreles; mas a cunhada acudiu que não, e citou um caso recente de pessoa distinctadistinta, um juiz municipal, cuja nomeação foi annunciadaanunciada pela adivinha cabocla.

− Talvez o ministro da justiça góstegoste da cabocla, explicou Santos.

As duas riram da graça, e assim se fechou uma vez o capitulocapítulo da adivinhação; veladivinha, para se abrir ma mais tarde. Por agora é deixar que o feto se desenvolva, a creançacriança se

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agite e se atire, como impaciente de nascer. Em verdade, a mãe padeceu muito durante a gestação, e principalmente nos/as\ u ultimasnas ultimasnas últimas sem semanas. Cuidava trazer um general que iniciava a campanha da vida, a não ser um casal que apprendiaaprendia a desamar de vesperavéspera.

 
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CapituloCapítulo VIII

Sete de Abril

Nem casal, nem general.

Nem casalcasal, nem general. No dia sete de abril de 1870,1870 veiu áveio à luz um par de meninosvarões tão eguaesiguais, que antes pareciam a sombra um do doum do outro, se não era simplesmente a impressão do que olho que vêolho, que via dobrado.

Tudo esperavam, menos os dous gemeosgêmeos, e, neme nem por ser o espanto grande, foi menor o amor. Entende-se isto sem insistirser preciso insistir, assim como se entende que a mãe déssedesse

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aos dous filhos d aquelleaquele pão inteiro e dividido do poeta; eu accrescentoacrescento que o paepai fazia a mesma cousa. Viveu os primeiros tempos a contemplar o os meninos, a comparal-oscompará-los, a medil-osmedi-los, a pezal-os pesal-ospesá-los. Tinham o mesmo pezopeso e cresciam por egualigual medida. A mudança ia-se fazendo por um só teor. Um O rosto comprido, cabelloscabelos castanhos, dedos finos e eguaestaes que,tais que, cruzados os da mão direita de um com os da esquerda de outro, não se podia saber que eram de duas pessoas. TodViriam a ter geniogênio differentediferente, mas por ora eram os mesmos extranhõesestranhões. Começaram a sorrir no mesmo dia. O mesmo dia os viu baptizarbatizar.

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Antes do parto, co/ti\nhamtinham combinado em dar o nome do paepai ou da mãe, segundo fosse o sexo da creançacriança. Sendo um par de rapazes, e não havendo a fórmaforma masculina do nome materno, (Maria da Soledade), não quizquis o paepai que figurasse o delledele, e metteram-semeteram-se a catar outros. A mãe propunha francezesfranceses ou inglezesingleses, conforme os romances que lia. Algumas novellasnovelas russas em moda suggeriramsugeriram nomes slavoseslavos. O paepai acceitavaaceitava uns e outros, mas consultava a terceiros, e não acertava com opinião definitiva. GeralmenteGeralmente, os consultados t tinhamtrariam ou m outro nome, que não era acceitoaceito em casa. Tambem veiuTambém veio

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a antiga onomastica luzitanaonomástica lusitana, mas sem melhor fortuna. Um dia, estando PerpetuaPerpétua áà missa, veiu a resarrezou o Credo, e advertiuCredo, advertiu nas palavras «... os santos apostolosapóstolos S.São Pedro e S. Paulo...» S. Paulo»,São Paulo, e mal pôde acabar a oração. Tinha descoberto os nomes; eram simples e gemeosgêmeos. Os paespais concordaram com ellaela e a pendenciapendência acabou.

A alegria de PerpetuaPerpétua foi quasiquási tamanha como a do paepai e da mãe, se não maior. Maior não foi, nem tão profunda, mas foi egual grande, ainda que rapidarápida. O achado dos nomes valia quasiquási que pela feitura das creançascrianças. ViuvaViúva, sem filhos, não se julgava incapaz de os ter, e era

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alguma cousa nomeal-osnomeá-los. Contava mais cinco ou seis annosanos que a irmã. CasáraCasara com um tenente de artilharia que morreu capitão na guerra do ParaguayParaguai. Era mais altabaixa que alta, e era gorda, ao contrariocontrário de Agueda ConceiçãoNatividade que, sem ser magra, não tinha as mesmas carnes, e era alta e rectareta. Ambas vendiam saúde.

— Pedro e Paulo, disse Perpetua áPerpétua à irmã e ao cunhado, quando rezei estes dous nomes senti uma cousa no coração...

— Você será madrinha dos dous, disse Agueda a Conceiçãode um, disse a irmã.

Não...mas...sim...atalhou Santos, Podia ser de um, mas será dos dous.

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Os pequenos, que se distinguiam por uma fita de côrcor, passaram apassaram a receber medalhas de ouro, uma com a imagem de S.São Pedro, outra com a de S.São Paulo. A confusão não cedeu logo, mas tarde, lento e pouco, ficando tal semelhança que os advertidos se enganavam muita vez ou sempre. A mãe é que não precisou de grandes signaessinais externos para saber quem eram aquellesaqueles dous pedaços de si mesma. As amas, apezarapesar de os distinguirem entre si, não deixavam de querer mal uma áà outra, pelo motivo da semelhança dos «seus filhos de criação». Cada uma affirmavaafirmava que o seu era mais bonito. Natividade concordava com ambas.

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Pedro seria medicomédico, Paulo advogado; tal foi a primeira escolha das profissões. Mas logo depois trocaram de carreira. TambemTambém pensaram em dar um dellesdeles áà engenharia. A marinha sorria áà mãe, pela distincçãodistinção particular da escola. Tinha só o inconveniente da primeira viagem remota,remota; mas Soledade AguedaConceição pensouNatividade pensou em mettermeter empenhos com o ministro. Santos falava em fazer um dellesdeles banqueiro, ou ambos. Assim passavam as horas dos serões e os domingos. Amigos e familiaresvadias. Intimos davadias. Íntimos da habituados da casa entravam nos calculoscálculos. Houve quem os fizesse ministros, dezembargadoresdesembargadores, bispos, industriaes...cardeaes...cardeais...

Não peço tanto — dizia o paepai.

Consolação Soledade ConceiçãoAgueda nãoNatividade não dizia nada ao pé de extranhosestranhos, apenas sorria, como se tratasse de folguedo de S.São João, um lançar de dados e sor ler no livro de sortes a quadra correspondente ao numeronúmero. Não importa; lá dentro de si cobiçava algum brilhante destino aos filhos. Cria deveras, esperava, rezava ásàs noites, pedia ao ceucéu que os fizesse grandes homens.

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Uma das amas, parece que a de Pedro, sabendo daquellas anciasdaquelas ânsias e conversas, perguntou a Soledade Consolação AguedaSoledade Conceição porque a Natividade por que é que não ia consultar a cabocla do CastelloCastelo. Affirmou AffirmouAfirmou que ellaela sabia adivinhava tudo, o que fo era e o que viria a ser; conhecia a/o\ sorte numeronúmero da sorte grande, não dizia qual era para nem comprava bilhete para não roubar os escolhidos de Nosso Senhor. Parece que era mandada de Deus.

A outra ama confirmou as noticiasnotícias e accrescentouacrescentou novas. Conhecia pessoas que tinham perdido e achado joias e escravos. A policiapolícia mesma, quando não acabava de apanhar um criminoso, ia ao C

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CastelloCastelo falar áà cabocla e descia sabendo; por isso é que não a botava para fórafora, como os invejosos andavam a pedir. Muita gente não embarcava sem subir primeiro ao morro. A cabocla explicava sonhos e pensamentos, curava de quebranto...

Ao jantar, Natividade repetiu ao marido a lembrança das amas. Santos encolheu os hombrosombros. Depois examinou rindo a sabedoria da cabocla; principalmente a sorte grande era incrivelincrível que, conhecendo o numeronúmero, não comprasse bilhete. Natividade achou que era o mais difficildifícil de explicar, mas podia ser invenção do povo. On ne prête qu’aux riches,

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accrescentou para ouvir a si mesma falar francez concl accrescentouacrescentou sorrindo. O marido, que estivera na vesperavéspera com um dezembargadordesembargador, repetiu as palavras delledele que « em quanto emquantoenquanto a policiapolícia não puzesse côbropusesse cobro ao escandaloescândalo...» O dezembargadordesembargador não concluiraconcluíra. Santos concluiu com um gesto vago.

− Mas você é spiritaespírita, ponderou a mulher.

− Perdão, não confundamos, replicou elleele com gravidade.

Sim, podia consentir n’umanuma consulta spiritaespírita; ja pensara já pensárajá pensara nellanela. Algum espiritoespírito podia dizer-lhe a verdade, emverdade em vez de uma adivinha de farçafarsa... Soledade AguedaConceição Natividade defendeu a cabocla. Pessoas da sociedade

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falavam delladela a seriosério. Não queria confessar ainda que tinha fé, mas tinha. Recusando ir outr’oraoutrora, foi naturalmente a insufficienciainsuficiência do motivo que lhe deu a força negativa. Que importava saber o sexo do filho? Conhecer o destino dos dous era mais imperioso e utilútil. Velhas ideias que lhe incutiram em creançacriança vinham agora emergindo do cerebrocérebro e descendo ao coração. Imaginava ir com os pequenos ao morro do CastelloCastelo, a titulotítulo de passeio... e consultar a celebre adivinha... ParaPara quequê? Para confirmal-aconfirmá-la na esperança de que seriam grandes homens. Não lhe passara pela cabeça a predicçãopredição

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contrariacontrária. Talvez a leitora, no m mesmo caso, ficasse aguardando o destino; mas a leitora, alemalém de não crer crêr (nem todos creem crêem) pode póde ser que não conte mais de vinte a vinte e dous annosanos de idade edade, e terá a pacienciapaciência de esperar. Soledade AguedaConceição Natividade, de si para si, confessava os trinta e um, e temia não ver a grandeza dos filhos. Podia ser que a visse, mas pois tambemtambém se morre velha, e alguma vez de velhice, mas acaso teria o mesmo gosto?

Ao serão, a materiamatéria da palestra foi a adivinhacabocla do CastelloCastelo, por iniciativa de Santos, que repetia as opiniões da vesperavéspera e do jantar. Das

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visitas algumas contavam o que ouviam delladela. Soledade AguedaConceição Natividade não dormiu aquellaaquela noite sem obter do marido que a deixasse ir com a irmã áà cla cabocla. Não se perdia nada;Souberam depois que sou bastava levar os retratos dos meninos e um pouco dos cabelloscabelos. As amas não saberiam nada da aventura.

No dia aprazado metteram-semeteram-se as duas no carro, entre sete e oito horas, comhoras com pretexto de missa, − e guiaram passeio, e lá se foram fôramforam para a rua da MisericordiaMisericórdia. Sabes já que alliali se apearam, indo o entre a egrejaigreja de S.São José e a Camaracâmara dos deputados, e subiram aquellaaquela até áà rua do

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Carmo, onde esta pega com a ladeira do CastelloCastelo. Indo a subir, hesitaram, mas a mãe era mãe, e ja agora faltava pouco para ouvir o destino. Viste que subiram, que desceram, deram os dous mil reisréis ásàs almas, entraram no carro e voltaram para Botafogo.

Um carro bonde passou por ellas e parou, No Cattete, o coupé e uma victoria alguem desceu e correu a falar-lhes, cruzaram-se e pararam a um tempo no coupé

 
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CapituloCapítulo IX

Vista de palaciopalácio.

No Cattete largo da LapaCattete,Catete, o coupé coupecoupé e uma victoriavitória cruzaram-se e pararam a um tempo. Um homem saltou da victoriavitória e caminhou para o coupé. Era o marido de Natividade, que ia agora para o escriptorioescritório, um pouco mais tarde que de costume, por haver esperado quea volta da mulher. VinhaIa pensando nellanela e nos negociosnegócios da praça, nos meninos e na lei Rio Branco, então discutida na camara Camaracâmara

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dos deputados; o banco era credor da lavoura. TambemTambém pensava na cabocla do CastelloCastelo, ; Que de teria e no que teria dito áà mulher ?/...\...

No passar Cattete, a/A\oAo passar pelo palaciopalácio Nova-Friburgo, levantou os olhos para elleele com o desejo do costume, uma cobiça de possuil-opossuí-lo, sem prever os altos destinos que o palaciopalácio viria a ter na RepublicaRepública; mas quem então previa nada? Quem prevê cousa nenhuma? Para Santos a questão era só possuil-opossuí-lo, dar alliali grandes festas unicasúnicas, celebradas nas gazetas, narradas na cidade entre amigos e inimigos, cheios de admiração, de rancor ou de inveja. Não

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pensava nas referencias saudades que as matronas fa/u\turas fariamfuturas contariam ásàs suas netas, menos ainda nos livros de chronicas, escriptoscrônicas, escritos e impressos neste outro seculo ;/.\seculo.século. Santos não tinha a imaginação da posteridade. Via o presente e suas maravilhas.

Já lhe não bastava o que era. A casa de Botafogo, era posto que bellabela, não era um palaciopalácio, e depoisdepois, não eraestava tão exposta como este doaqui no CatteteCatete, passagem obrigada de toda a gente, que olharia para as grandes janellasjanelas, as grandes portas, as grandes aguiaságuias no alto, de azasasas abertas. Quem viesse pelo lado do mar mar, virveria as costas do palaciopalácio, os jardins e os

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lagos... Oh! gozo goso infinito! Santos imaginava,imaginava as luzes, as flores, as sedas, e os bronzes, marmores,mármores, luzes, flores, luzes, flores, e dançasdanças, carruagens, as musicas;/,\musicas,músicas, e era as ceias...ceias... Tudo isso foi dep pensado depressa, porque a victoriavitória, embora não corresse (os cavalloscavalos tinham ordem de moderar a andadura), todavia, não atrazavaatrasava as rodas para que os sonhos de Santos acabassem. Assim foi que, antes de chegar áà praça da GloriaGlória, a victoriavitória avistou o coupé da familiafamília, e as duas carruagens pararam paráram, a curta distanciadistância uma da outra, como ficou dito.

 
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CapituloCapítulo X

O juramento.

TambemTambém ficou dito que o marido saiu da victoriavitória e caminhou para o coupé, onde a mulher e a cunhada, adivinhando que elleele vinha ter com ellaselas, riamsorriam de ante-mão.

− Não lhe digas nada, aconselhou PerpetuaPerpétua.

A cabeça de Santos appareceuapareceu logo, com as suissassuíças curtas, o cabellocabelo rente, o bigode rapado,. Era homem sympathicosimpático. Quieto, não ficava mal. A agitação

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algum cabello fios nas orelhas e nas mãos. Quieto, não ficava mal. A agi com que elle chegou, parou e falou tirou-lhe a gravidade com que ia no no carro, as mãos postas sobre o castão de outr ouro da ben bengala e a bengala firme entre os joelhos no bonde carro, as mãos postas sobre o castão de ouro da bengala, e a bengala entre os joelhos.

− Então? então? perguntou. elle

− Logo digo.

− Mas que foi?

− Logo.

− Bem ou mal? Dize só se bem.

− Bem. Cousas futuras.

− É pessoa séria?

− Séria, sim; até logo, repetiu Soledade Agueda Conceição Natividade, estendendo-lheNatividade estendendo-lhe a/o\sos maos dedos.

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Mas o marido não podia despegar-se do coupé; queria saber alliali mesmo tudo, as perguntas e re/a\sas respostas, a gente que lá estava áà espera, see se era o mesmo destino para os dous, ou se cada um tinha o seu. Nada disso foi escriptoescrito como aqui vaevai, devagar, para que a ruim letra do autor não faça mal áà sua †ita prosa. Não, senhor; as palavras de Santos sairamsaíram de atropelloatropelo, umas sobre outras, truncadas, embrulhadas, sem principioprincípio ou sem fim. A bellabela esposa tinha já as orelhas tão affeitasafeitas ao falar do marido, mormente mórmentemormente emsuas em lances de emoção ou curiosidade, que entendia tudo, e

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ia dizendo que não. A cabeça e o dedo sublinhavam a negativa. Santos não teve remedioremédio e despediu-se.

Em caminho, advertiu que, não crendo na cabocla, era ocioso instar pela predicçãopredição. Era mais; era dar razão áà mulher. G PrometteuPrometeu não indagar nada quando voltasse. Não prometteuprometeu esquecesse/r\esquecer, e dahidaí a teima com que pensou tres ou quatro e muitas vezes no negocio.oraculo.oráculo. De resto, ain ellaselas lhe diriam tudo sem que elleele perguntasse nada, e esta certeza trouxe a paz do dia.

Não concluas daqui que os accionistas nem os freguezesfregueses do banco e do armazem padecessem alguma desattençãodesatenção aos

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seus negociosnegócios. Tudo correu bem, como se elleele não tivesse mulher nem filhos ou não houvesse CastelloCastelo nem cabocla. Não era só a mão que fazia o seu officio, assignandoofício, assinando; a boca bôca ia á falando, mandando, chamando e rindo, se era preciso. Não obstante, a anciaânsia existia e as figuras passavam e repassavam deante dellediante dele; no intervallointervalo de duas letras, Santos resolvia uma cousa ou outra, se não eram ambas a um tempo. Quando entrou Entrando no carro, carro, áà tarde, aggarrou-seagarrou-se inteiramente ao oraculooráculo,. Trazia as mãos sobre o castão, daa b a bengala entre os joelhos, como de manhã, mas vinha pensando no destino dos filhos.

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Quando chegou a casa, viu Agueda contemplando ConceiçãoNatividade a contemplar os filhosmeninos, ambos nos berços, as amas ao pé, umum pouco admiradas da insistenciainsistência com que ellaela os não deixava procurava desde manhã. Não era só fital-osfitá-los, com era ou ou perder os olhos no espaço e no tempo,tempo; era beijal-os tambembeijá-los também, os filhos e apertal-osapertá-los ao coração. Esqueceu-me dizer que, de manhã, PerpetuaPerpétua mudou primeiro de roupa que a irmã e foi achal-a deanteachá-la diante dos berços, vestida como viera do CastelloCastelo.

− Logo vi que você estava com os grandes homens,homens, disse ellaela.

− Estou, mas não sei em que é que elleseles serão grandes.

− Seja em que fôrfor, vamos almoçar.

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Só então se foi despir. Ao almoço e Ao almoço e durante o dia, falou/aram\falaram muita vez da cabocla e da predicçãopredição. Agora, ao ver entrar o marido, AguedaConceição Natividade leu-lhe a dissimulação nos olhos. QuizQuis calar e esperar, mas estava tão anciosaansiosa de lhe dizer tudo, e era tão boa, de que resolveu o contrariocontrário. Unicamente não teve tempoo tempo de cumpril-ocumpri-lo; antes mesmo de começar, já elleele acabava de perguntar o que era. Soledade Agueda ConceiçãoNatividade referiu a subida, a consulta, a resposta e o resto; descreveu a cabocla e o paepai.

− Mas então grandes destinos? p

− Cousas futuras, repetiu ellaela.

− Seguramente futuras. Só a pergunta da briga é que não entendo. Brigar porqueporquê? E brigar como? E teriam deveras brigado?

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Natividade recordou os seus padecimentos do tempo da gestação, confessando que não falou mais dellesdeles para o não affligirafligir; naturalmente é o que a outra adivinhou que fosse briga.

− Mas briga porquê?

N Isso não sei, nem creio que fosse nada mau.

− Vou conf/s\ultarconsultar...

− Não, Agostinho, con não consulte

− Consultar a quem?

− Uma pessoa.

− Já sei, o seu amigo Pantoj Placido.Plácido.

− Se fosse só amigo,amigo não consultava, mas elleele é o meu chefe e mestre, tem uma vista clara, e comprida,

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dada pelo ceucéu... Consulto só por hypothesehipótese, não digo os nossos nomes...

− Não! não! não!

− Só por hypothesehipótese.

− Não, Agostinho, não fallefale disto. Não interrogue mezas ninguemninguém a meu respeito, ouviu? Ande, promettaprometa que não falará disto a ninguemninguém, spiritasespíritas nem amigos. O melhor é calar. Basta saber que terão sorte feliz. Grandes homens, cousas futuras... Jure, Agostinho.

− Mas você não foi em pessoa áà cabocla?

− Não me conhece, nem de nome; viu-me uma vez, não me v tornará a ver. Ande, jure!

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− Você é exquisitaesquisita. Vá lá, promettoprometo. Que tem que falasse, assimassim, por acaso?

− Não quero. Jure!

− Pois isto é cousa de juramento?

− Sem isso, não confio, disse ellaela sorrindo.

− Juro.

− Jure por Deus Nosso Senhor!

− Juro por Deus Nosso Senhor.

 
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CapituloCapítulo XI

Um caso unicoúnico!

Santos cria na santidade do juramento; por isso, resistiu, mas afemfimenfim cedeujurou cedeu e jurou. Entretanto, o pensamento não lhe saiu mais da briga intra - uterina dos filhos. Quiz esquecel-aQuis esclarecê-la. Jogou essa noite, como de costume; na seguinte, foi ao theatroteatro; na outra,na outra a uma visita; e tornou ao cosvoltarete do costume, e a briga sempre com elleele. Era um my Era um mysterio. TalvezEra um mistério. Talvez fosse um caso unicoúnico... UnicoÚnico! Um caso

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unicoúnico! A unicidadesingularidade do caso fel-o aggarrar-se a/m\ais áfel-o aggarrar-se mais áfê-lo agarrar-se mais à ideia, ou a ideia a elle, não elle; nãoele; não posso explicar melhor este phenomeno intimofenômeno íntimo, passado lá onde não entram olhos/o\olho de homem, nem bastam reflexões ou f/c\onjecturasconjecturas. Nem por isso durou muito tempo. No primeiro domingo, Santos pegou em si, e foi áà casa do doutor PlacidoPlácido, rua do Senador Vergueiro, uma casa baixa, de trez janellastrês janelas, com muito terreno para o lado do mar. Creio que já não existe: datava do tempo em que eraa rua era o Caminho Velho, para differençardiferençar do Caminho Novo.

Perdoai/a\Perdoa estas minuciasminúcias. A acçãoação podia ir sem ellaselas, mas eu quero que saibais/s\saibas que casa era, e que rua, e mais digo que alliali havia uma especieespécie de club club, templo ou o que quer que era spiritaespírita. Pantoja eraPlacidoPlácido fazia defazia de sacerdote e presidente a um tempo. Era um velho de grandes barbas, olho azul e brilhante, enfiado em larga camisola de seda. Põe-lhe uma vara na mão, e fica um magicomágico, mas, em verdade, as barbas e a camisola não as trazia por lhe darem tal aspecto. Ao contrariocontrário de Santos, que

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teria trocado dez vezes a cara, se não fora fôra a mulheropposiçãooposição da mulher, PantojaPlacidoPlácido usava as barbas inteiras desde moço e a camisola desde vinte ha dezhá dez annosanos.

− Venha, venha, disse elleele, ande ajudar-me a converter o nosso amigo Ayres, Ayres;Aires; ha meia hora que procuro incutir-lhe as verdades eternas, mas elleele resiste.

− Não, não, não resisto, acudiu um homem de cerca de quarenta annosanos, que seestendendo a mão ao recem-chegadorecém-chegado.

 
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CapituloCapítulo XII

Esse AyresAyres.Aires.

Esse AyresAires que ahi appareceaí aparece conserva ainda agora algumas das virtudes daquelle d’aquelledaquele tempo, e quasiquási nenhum viciovício. Não attribuasatribuas esse tal estado a qualquer propositopropósito. Nem creias que vaevai nisto um pouco de homenagem á modestiaà modéstia da pessoa. Não, senhor, é verdade pura e natural effeitoefeito. ApezarApesar dos quarenta annosanos, ou quarenta e dous, e talvez por isso mesmo, era um bello bello typobelo tipo de homem. Diplomata

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de carreira, e, chegárachegara dias antes do PacificoPacífico, com uma licença de seis mezesmeses.

Não me cançodemoro em descrevel-odescrevê-lo. ImaImagina só que trazia o callo do officiocalo do ofício, o sorriso approvadoraprovador, a fallafala branda e cautelosa, o ar da occasiãoocasião, a expressão adequada, tudo tão bem distribuidodistribuído que era um gosto ouvil-o e vel-oouvi-lo e vê-lo. Talvez a pellepele da cara ras rapada se mostrasse prestesestivesse prestes a mostrar os primeiros signaessinais do tempo. Assi Ainda assim o bigode, que era moço na côrcor e no apuro com que acabava em ponta fina e rija, daria um ar de frescura ao rosto, quando es o meio seculoséculo chegasse. O mesmo

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faria o cabellocabelo, vagamente grisalho, apartado ao centro. No alto da cabeça havia um inicioinício de calva. Na botoeira, uma flor eterna.

Tempo houve – foi por occasiãoocasião da anterior licença, sendo elleele apenas secretariosecretário de legação, − tempo houve em que tambem elletambém ele gostou de Natividade. Não foi propriamente paixão; não era homem disso. Gostou delladela, como de outras joias e raridades, mas tão depressa viu que não era aceite acceitoaceito, trocou de conversação. Não era frouxidade nemxidão ou frieza. Gostava muito assaz de mulheres bonit muito ee ainda mais se eram bonitas. A questão para elleele

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é que nem as queria áà força, nem curava de as persuadir. Não era general para escala áà vista,vista, nem ounem para assediosassédios demorados; contentavam-se de simples passeios demorados militares, − longos ou breves, conforme fosseo tempo fosse claro ou tu nubladoturvo. Em summasuma, extremamente cordato.

CoincidenciaCoincidência interessante: foi por esse tempo que Santos pensou em casal-ocasá-lo com a cunhada, recentemente viuvaviúva. Esta parece que não quizqueria. Natividade oppoz-seopôs-se, n nunca se soube porquê. Não eram ciumes: ciumes;ciúmes; invejas não creio que que fossem. O simples desejo de o não

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porquê. Não eram ciumes; invejas não creio que fossem. O simples desgosto desejo de o não ver entrar na familiafamília pela porta lateral é apenas uma figura, que vale qualquer das primeiras hypotheseshipóteses negadas. O desgosto de cedel-ocedê-lo a outra, ou tel-ostê-los felizes ao pé de si, não podia ser, posto que o t coração seja o abysmo dos abysmosabismo dos abismos. Er PodeSuppoSuponhamos que era com o fim de o punir do desaforo de a haver punir por havel-apunir por havê-la amado.

Pode Póde ser; a verdade, porem, é que o maior obstaculo veiu viria delle mesmo, se chegassem a fallar a apalpal-oem todo caso, o maior obstaculoobstáculo viria delle mesmo.viria dele mesmo. Posto que viuvoviúvo, AyresAires f não foi propriamente casado. Não amava o casamento. Casou

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por necessidade do officioofício; cuidou que era melhor ser ministro diplomata casado q que solteiro, e pediu a primeira moça q que lhe pareceu adequada ao seu destino. Enganou-se: a differençadiferença de temperamento e de espiritoespírito era tal que elleele, ainda vivendo com a mulher, era como se vivesse só. Não se affligiuafligiu com a perda; tinha o feitio do solteirão.

Era cordato, repito, embora esta palavra não exprima exactamenteexatamente o que quero dizer. Tinha o coração disposto a aceitaracceitar tudo, não por inclinação áà harmonia, senão p por aversão tediotédio á controversiaà controvérsia. Para conhecer esta aversão, bastava tel-otê-lo visto entrar, dias antes,entrar, antes,

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em vistavisita ao casal Santos. Pessoas de fórafora e da casafamiliafamília fal conversavam da cabocla do CastelloCastelo.

− Chega a propositopropósito, conselheiro, disse PerpetuaPerpétua. Que pensa o senhor da cabocla do CastelloCastelo?

AyresAires não pensava nada, mas percebeu que os outros pensavam alguma cousa, e fez um gesto de dous sexos. Como insistissem, com elle, não escolheuuma nenhuma das duas opiniões, achou outra, média, media, que contentou a todosambos os lados, cousa rara em opiniões médias medias. Sabes que o destino dellasdelas é serem desdenhadas. Mas este AyresAires, − José da Costa Marcondes AyresAires, − tinha que nas cnas

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controversiascontrovérsias uma opinião dubiadúbia ou média media é pode como as pipulas pilulas pode ter póde trazerpode trazer a opportunidadeoportunidade de uma pilulapílula, e compunha as suas de tal geitojeito, que o enfermo, se não sarava, não morria, e é o mais que fazem pilulaspílulas. Não lhe queiras mal por isso; a droga amarga engole-se com assucaraçúcar. AyresAires opinou com pausa, com delicadeza, com circumloquios com pausa, delicadeza, circumloquioscom pausa, delicadeza, circunlóquios, limpando o monoculomonóculo ao lenço de seda, pingando as palavras graves e obscuras, fitando os olhos no ar, como quem busca uma lembrança, e achava a lembrança, e arredondava com ellaela o parecer. Um dos ouvintes aceitou-o acceitou-o logo, outro divergiu um pouco mas e acabou de accordoacordo, assim terceiro, e quarto, e a sala toda.

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Não cuides que não era sincero, era-o. Quando não acertava de ter a mesma opinião, e valia a pena escrever a sua, escrevia-a. Usava tambemtambém guardar por escriptoescrito as descobertas, observações, reflexões, criticas e anecdotascríticas e anedotas, tendo para isso uma seriesérie de cadernos, a que dava o nome de Memorial. NaquellaNaquela noite escreveu estas linhas:

«Noite em casa da familiafamília Santos, sem voltarete. Falou-se na cabocla do CastelloCastelo. Desconfio que Natividade ou a irmã quer consultal-aconsultá-la; não será de certodecerto a meu respeito.

«Natividade e um padre Guedes

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que lá estava, gordo e maduro, eram as unicasúnicas pessoas interessantes da noite. O resq resto insipidoinsípido, mas insipidoinsípido por necessidade, não podendo ser outra cousa mais que ins insipidoinsípido. Quando o padre e Natividade me deixavam entregue áà a insipidez dos outros, eu tentava fugir-lhe pela memoriamemória, recordando sensações, revivendo quadros, viagens, pessoas. Foi assim que pensei na Capponi, a quem vi hoje pelas costas, na rua da Quitanda. Conheci-a aqui no a finado H Hotel de D.Dom Pedro, lá vão annosanos. Era dançarina; eu mesmo ja a tinha visto dansardançar em Veneza. Pobre Capponi! Andando,

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o pé esquerdo, saía-lhe esquerdo saia-lheesquerdo saía-lhe do sapato e mostrava no calcanhar da meia um buraquinho de saudade.

«Afinal tornei áà eterna insipidainsipidez dos outros. Não acabo de crer crêr como é que esta senhora, aliás tão fina, póde organisarpode organizar noites como a de hoje. Não é que ellesos outros não buscassem ser interessantes, e, se intenções valessem, nenhum livro os valeria: mas não o eram; poreram, por mais que tentassem. EmfimEnfim, lá vão; esperemos outras noites que tragam melhores sujeitos sem es, nenhum esforço algum. O que o berço dá só a cova o tira, diz um velho adagioadágio nosso. Eu posso, truncando um verso ao meu Dante, escrever de taes insipidostais insípidos:

                        Dico, che quando l’anima mal nata...

 

folha não numerada

ULTIMO

por

Machado de Assis

(da Academia Brasileira )».

 
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CapituloCapítulo XIII

A epigrapheepigraphe.epígrafe.

Ora, ahi está justamente a epigrapheepígrafe do livro, se eu lhe quizer/sse\ quisesse pôr alguma, quando a levar ao prelo. E ponho-lh’a. Não é só e não me occorrer/sse\ e não me ocorresse outra. Não é sómentesomente um meio de completar as pessoas da narração com as ideias que ellas deixaramdeixarem, mas ainda um par de lunetas para que o leitor do livro pentpenetre o que fôrfor menos claro ou totalmente escuro.

Nem contesto a vantagem de iremPor outro lado, ha proveito em irem as pessoas da minha historiahistória collaborando nellacolaborando nela, ajudando o autor, por uma lei

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de solidariedade, especieespécie de troca de serviços, entre o enxadrista e os seus trebelhos. o manuscrito não abre parágrafo aqui

Se acceitasaceitas a comparação, distinguirás o rei e daa dama, o bispo e o cavallocavalo, sem que o cavallocavalo possa fazer de torre, nem a torre de piãopeão. Ha ainda a differença da côrdiferença da cor, branca e preta, mas esta não tira o poder da marcha de cada peça, e afinal umas e outras podem ganhar a partida, e e assim vaevai o mundo. Talvez conviesse pôr aqui, de quando em quando, como nas publicações do jogo, um diagrammadiagrama das posições bellas ou difficeisbelas ou difíceis. Não havendo taboleirotabuleiro, é um grande auxilioauxílio este

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processo para acompanhar os lances, mas tambemtambém pode póde ser que tenhas visão bastante para reproduzir na memoriamemória as situações diversas. Creio que sim. Fóra poisFóraFora com diagrammasdiagramas! e ep Tudo irá re/co\mo se realmente visses jogar a partida entre uma pessoa e outra,pessoa, ou mais claramente, entre Deus e o Diabo.

 
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CapituloCapítulo XIV

A licção do discipulo.lição do discípulo.

− Fique, fique, conselheiro, disse Sap/n\tosSantos ap apertando a mão ao diplomata. Aprenda ApprendaAprenda as verdades eternas.

− Verdades eternas pedem horas eternas, ponderou este consultandoeste, consultando o relogiorelógio.

Um tal AyresAires não era facilfácil de convencer. PantojaPlacidoPlácido falou-lhe de leis scientificascientíficas para excluir qualquer maculamácula de seita, e Santos foi com elleele. Toda a terminologia spiritaespírita saiu fórafora, e mais os casos, pe/h\enomenosphenomenosfenômenos, mysteriosmistérios, testemunhos, attestados verbaes e escriptosatestados verbais e escritos... Santos acudiu com um exemplo:: dous espiritosespíritos podiam tornar juntos a este mundo; e, se brigassem antes de nascer?

− Antes de nascer, creançascrianças não brigam, replicou AyresAires, temperando o sentido

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affirmativoafirmativo com a intonação dubitativa.

− Então nega que dous espiritosespíritos...? Essa cá me fica, meu amigo!conselheiro! Pois que impede que dous espiritos...? espiritos?...espíritos?...

Camargo AyresAires viu o abysmo da controversiaabismo da controvérsia, e forrou-se áà vertigem e sem por uma reflexão concessão, dizendo:

− Esaú e JacobJacó brigaram no seio materno, isso é verdade. Conhece-se a cla causa do conflictoconflito. Quanto a outros, dado que briguem tambemtambém, tudo está em saber a causa do conflictoconflito, e não a sabendo, porque a ProvidenciaProvidência a esconde da noticianotícia humana... Se fosse uma causa espiritual, por exemplo...

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− Por exemplo?

− Por exemplo, se as duas creançascrianças quizeremquiserem ajoelhar-se ao mesmo tempo para adorar o CreadorCriador. Ahi está um caso de conflictoconflito, mas de conflictoconflito espiritual, cujos processos escapam áà naturezasagacidade humana. Tambem pode ser por uma causTambemTambém poderia ser por um motivo temporal. SupponhamosSuponhamos a necessidade de se acotovellaremacotovelarem para ficar melhor acommodadasacomodadas accommodados Escolho a lição do manuscrito, pois parece-me melhor, ao concordar com «crianças», sujeito subentendido da oração; é a unicauma hypothesehipótese que a scienciaciência pode acceitaria acceitaria, acceitaria;aceitaria; isto é, não , não...sei... Ha ainda o caso de quererem ambos a primogenitura.

− Para quequê? − perguntou PantojaPlacidoPlácido

Com quantoConquanto este privilegioprivilégio esteja hoje limitado ás familias regiasàs famílias régias, á camaraà câmara dos lords e pouco não sei se mais, tem

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todavia um valor symbolicosimbólico. O simples gosto de nascer primeiro, sem outra vantagem social ou politicapolítica, pode póde dar-se por instinctoinstinto, principalmente se as creançascrianças se destinarem a al galgar os altos deste mundo.

Santos afiou o ouvido neste ponto, lembrando-se das «cousas futuras». Santos CamargoAyres AyresAires d estendeu-sedisse ainda algumas cousaspalavras bonitas, e accrescentouacrescentou outras feias, admittindoadmitindo que tal tala a briga podia por podia ser symprenunprenúncio de longosgraves conflictosconflitos neste mundo;na terra; mas logo temperou esse conceito com este outro:

− Não importa; não esqueçamos o que dizia um antigo Empodecles um antigo, cu que a g«a guerra é a mãe de todas as cousas.»cousas». Na

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minha opinião, EmpedoclesEmpédocles, não se referiu sóreferindo-se áà guerra, no puro sentido só somente no não o fez só no sentido technicotécnico. O amor, que é a primeira das artes da paz, pode-se póde-se dizer que é um duelloduelo, não de morte, mas de vida, − concluiu Camargo AyresAires sorrindo levemente leve, como fallava falava baixo, e despediu-se.

 
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CapituloCapítulo XV

Teste David cum SibyllaSibylla.

− E então? exclamoudisse Santos. Não é que o conselheiro, em vez de apprenderaprender, ensina-nos? Eu acho que elleele deu algumas razões boas.

− Quando menos, plausiveisplausíveis, completou Pantoja.mestre Placido.Plácido.

− Foi pena que se despedisse, continuou Santos, mas felizmente o meu caso é com o senhor. FiVenho consultal-oconsultá-lo, e as suas luzes são as verdadeiras do mundo.

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Pantoja PlacidoPlácido agradeceu e sorrindo. Não era novo o elogio, ao contrariocontrário; mas elleele estava tão acostumado a ouvil-oouvi-lo que o sorriso era ja agora um sestro. Não podia deixar de pagar com essa moeda aos seus discipulosdiscípulos.

− Trata-se...

− Trata-se disto. Aquella hypotheseAquela hipótese que eu formulei é um factofatov verd ve real; succedeusucedeu com os meus filhos...

− Como?

− É o que me parece, e vim justamente para que me explique. Nunca lhe falei por temer que achasse absurdo, mas tenho pensado, e creiosuspeito que tal briga se deu, e que é um caso extraordinarioextraordinário.

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Santos expozexpôs então a consulta, gravemente, com um gesto que ti tenparticular que tinha de arregalar os olhos para arregalar a novidade. Não esqueceu nem escondeu nada; contou a propriaprópria ida da mulher ao CastelloCastelo, com desdemdesdém, é verdade, mas ponto por ponto. PantojaPlacidoPlácido ouvia attentoatento, perguntava/ndo\perguntando, voltando atrazatrás, e acabou por meditar alguns minutos. EmfimEnfim, declarou que o phenomenofenômeno, caso se houvesse dado, era raro, se não unicoúnico, mas possivelpossível. Já o factofato de se chamarem Pedro e Paulo indicava alguma rivalidade, porque esses dous apostolosapóstolos brigaram tambemtambém.

− Perdão, mas o baptismo...

− Foi posterior, sei, mas os nomes podem ter sido predestinados, tanto mais que a escolha dos nomes veiuveio, como o senhor me disse, por inspiração áà tia dos meninos.

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− Justamente.

D. PerpetuaDona Perpétua é muito devota.

− Muito.

− Creio que os proprios espiritospróprios espíritos de S.São Pedro e S.São Paulo houvessem escolhido aquellaaquela senhora para inspirar os nomes que estão no Credo; advirta que ellaela reza muitas vezes o Credo, mas foi n naquella occasiãonaquela ocasião que se lembrou dellesdeles.

Exacto! exacto!Exato, exato! Exacto, exacto!

PantojaO doutor foi áà estante e tirou uma BibliaBíblia, encadernada em couro, com grandes preg fechos de prata. metal. Abriu a EpisltolaEpistola deEpístola de S.São Paulo aos Galatasaos Gálatas, e leu a passagem do capitulocapítulo II, versiculoversículo 11 11, em que o apostoloapóstolo conta que, indo a AntiochiaAntioquia, onde estava S.São Pedro, «resistiu-lhe na cara.»

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– Leia: «resisti-lhe na cara.» Este passo está omisso na 1ª edição. Opto, aqui, pela lição do manuscrito, à semelhança do que se faz na edição crítica da Comissão Machado de Assis, visto ser, se não imprescindível, pelo menos útil à sequência narrativa.

Santos leu e teve uma ideia. As ideias querem-se festejadas, quando são bellasbelas, e examinadas, quando novas; a delledele era a um tempo nova e bellabela. Deslumbrado, ergueu a mão e deu uma palmada na folha, bradando:

− Sem contar que este numeronúmero onze do versiculo,do versículo, composto de dous algarismos eguaesiguais, 1 e 1,, é um numeronúmero gemeogêmeo, não lhe parece?

− Justamente. E mais: o numo capitulo éo capítulo é o segundo, capituloisto é, dousd’isto, que é o proprio numeropróprio número dos dous irmãos gemeosgêmeos.

MysterioMistério engendra mysteriomistério. Havia mais de um elo intimoíntimo, substancial, escondido, que ligava tudo. Briga, Pedro

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e Paulo, irmãos gemeosgêmeos, numeros gemeosnúmeros gêmeos, tudo eram aguaságuas de mysteriomistério que elleseles agora rasgavam, nadando e bracejando com força. Santos foi mais ao fundo; não seriam os dous meninos os propriospróprios apostolosespiritos de S.espíritos de São Pedro e de S.São Paulo, que renasciam agora, e elleele, paepai dos dous apostolos...? apostolos?...apóstolos?... A fé transfigura; Santos tinha um ar quasiquási divino, trepou alto em si mesmo, e os olhos ordinariamente sem expressão, pareciam entornar a chammachama da vida. Pae de apostolosPai de apóstolos! e que apostolosapóstolos! PantojaPlacidoPlácido esteve a pique de quasi, quasi aquási, quási a crer crêr tambemtambém, achava-se dent às por dentro de um mar torvo, soturno, onde as vozes do infinito se

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perdiam, lo mas logo q lhe acudia que os espiritosespíritos de S.São Pedro e S.São Paulo tinham chegado áà perfeição; não tornariam cá. Não importa; seriam outros, grandes e nobres. Os seus destinos podiam ser brilhantes; tinha razão a cabocla, sem saber o que dizia.

− Deixe ásàs da senhoras as suas crenças, da menenimeninice, concluiu; se ellaselas temtêm fé na tal mulher do CastelloCastelo, e a acham que é um vehiculoveículo de verdade, não as desminta por ora. D. Soledade sabe tal latim? Diga-lhesDiga-lhes que eu estou de accordoacordo com o seu oraculooráculo. Teste David com/um\ SibyllaTeste David cum Sibylla.

− Digo, digo: escrevadigo! escreva a phrasefrase.

PantojaPlacidoPlácido foi áà secretária secretaria, escreveu

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o verso, e deu-lhe o papel, mas ja então Santos advertira que mostral-omostrá-lo áà mulher era confessar a consulta spirita,, spirita,espírita e e per era ta e naturalmentenaturalmente o perjurioperjúrio. Referiudisse ao esteamigo os escrupulosescrúpulos de Agueda ConceiçãoNatividade e pediu que calassem tudo., que este

− Estando com ellaela, não lhe diga o que se passou entre nós.

Saiu logo depois, arrependido da indiscrição, mas deslumbrado da revelação. Ia acheio de numerosnúmeros da EscripturaEscritura, de Pedro e Paulo, de Esaú e JacobJacó. O ar da rua não espanou a poeira do as mysteriomysteriomistério; ao contrariocontrário, o ceucéu azul, a praia socegadasossegada, os montes verdes como que o cercavam e cobriam de um veuvéu mais transparente e infinito. A natureza

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rixa dos meninos, factofato raro ou unicoúnico, era uma distincçãodistinção divina. Contrariamente áà esposa, que cuidava somente sómente da grandeza futura dos filhos, Santos pensava no conflictoconflito passado.

Entrou em casa,, correu aos pequenos, core acarinhou-os com tão extranhaestranha expressão, que a mãe desconfiou alguma cousa, e quizquis saber o que era.

− Não é nada, respondeu elleele rindo.

− É alguma cousa, anda, acaba.

− Que hade ha dehá de ser?

− Seja o que fôrfor, Agostinho, acaba.

AgostinhoSantos pediu-lhe que se não zangasse, e contou tudo, a sorte, a rixa, a EscripturaEscritura, os apostolosapóstolos, o symbolosímbolo, tudo tão espalhadamente, que ellaela mal pôde

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entender, mas entendeu afinalao final, e replicou com os dentes cerrados:

− Ah! você! você!

− Perdoa, amiguinha; estava tão anciosoansioso de saber a verdade... E nota que eu creio na cabocla, e Pantoja Placidoo doutor tambemtambém; elleele até me escreveu e isto em latim, concluiu elle tirando e lendo o papelinho: Teste David cum Sibylla.

Dahi a pouco

 
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CapituloCapítulo XVI

Paternalismo.

Dahi D’ahiDaí a pouco, estavam ambos . Santos pegáraSantos pegou na mão da mulher, que a deixou se ir sem enthusiasmo áà toa, sem apertar a delledele; suas ambos fitavam os meninos, tendo esquecido a zanga para só ficarem paespais.

Já não era espiritismo, spiritismo , nem outra religião nova; era a mais velha de todas, fundada por Adão e Eva, áà qual chama, se queres gueres, paternalismo. Rezavam sem palavras, persignávam-sepersignavam-se sem

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gestosdedos, uma especieespécie de ceremoniacerimônia muda e quieta quieta e muda,quieta e muda, que abrangia o passado e o futuro porvirfuturo. Qual eradellesdeles era o padre, qual o sacristão, não sei, nem é preciso. A missa é que era a mesma, e o evangelho começava como o de S.São João,João (emendado): «No principioprincípio era o Verboamor, e o Verbo amor se fez carne»carne». Mas venhamos aos meninos nossos gemeosgêmeos.

 
4115118

CapituloCapítulo XIVIII

Tudo o que restrinjo.

Os meninosgemeos,gêmeos, não tendo que fazer, iam mamando. Nesse officioofício portavam-se sem rivalidade, a não ser quando as amas estavam ásàs boas, e elleseles mamavam ao pé do um do outro; cada qual então parecia querer mostrar que mamava mais e melhor, passeando os dedos pelo seio amigo, e chupando com alma. EllasElas, áà sua parte, tiravamtinham gloriaglória dos peitos e os comparavam entre si; os pequenos,

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fartos, soltavam afinal os bicos e riam para ellaselas.

Se Si não fosse a necessidade de pôr os meno/i\nosmeninos a em pé, crescidos , e homens, bem espraiava bem este capitulocapítulo. Realmente, o espectaculoespetáculo, posto que commumcomum, era bellobelo. Os peraltas nutriam-se ao contrariocontrário dos paespais, sem as artes do cosinheirocozinheiro, nem a vista dos/as\das pratos e das carnes sopas carnes e peixes, legumes; gorduras, vinhos, conservas; fructas; e queijos comidas e bebidas, todas postas em crystaescristais e porcelanas para disfarçaremendar ou emendarcolorir a tristedura necessidade de comer. A elleseles nem se lhes via a comida; a boca ligada ao peito não deixava appareceraparecer

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o leite. A natureza mostrava-se satisfeita pelo riso ou pelo somnosono. Quando era o somnosono, cada uma levava o seu menino ao berço, e ia cuidar de outra cousa. Este cotejo darm/-\me-ia trezdar-me-ia trezdar-me-ia três ou quatro paginas solidaspáginas sólidas.

Uma paginapágina bastava para os chocalhos de folha de Flandres, queque embellezar/vam\embellezavamembelezavam os pequenos, como se fosse a propria musicaprópria música do ceucéu. EllesEles sor sorriam, estendiam as mãos, alguma vez zangavam-se comocom as negaças, mas tanto que lh’oslhos davam, calavam-se, e se não podiam tocar não se zangavam por isso. A propositopropósito de chocalhos, diria que esses instrumentos não deixam memoriamemória de si;

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alguemalguém que os veja em mãomãos de creançascrianças, se parecer que lhe lembram os seus, cae r/l\ogocae logocai logo no engano, e ae adverte que a recordação hade ha dehá de ser mais recente, alguma arenga do annoano passado, se não foi a vaccavaca de leite da vesperavéspera.

A operação de desmamar podia fazer-se em meia linha, mas as lástimas das amas, as despedidas, as bichas de ouro que Soledadea mãe deu a cada uma dellasdelas, como um presente final, tudo isso exigia um uma boa paginapágina ou mais. Poucas linhas bastariam para as amas seccassecas, porquanto não diria ap se eram altas nem baixas, feias ou

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bonitas. Eram mansas, zelosas do officioofício, amigas dos pequenos, e logo uma da outra. CavallinhosCavalinhos de pau, bandeirolas, theatrosteatros de bonecos, barretinas e tambores, toda a quinquilharia da infanciainfância mal occupariaocuparia o logar dos seus nomes. Nem valeria nomea-los, salvo muito mais que os/ o\ seu logarlugar de seus nomes.

Tudo isso restrinjo só para não enfadar a leitora curiosa de ver os meus meninos homens e acabados. Vamos vel-osvê-los, querida. Com pouco, estão crescidos e fortes. Depois, entrego-os a si mesmos; elleseles que abram com o caminho da vida e do mundo a ferro ou palavra lingua,língua ou a simplesou simples Na edição crítica, escolhe-se a lição do manuscrito cotovelloscotovelos, o caminho da vida e do mundo.

 
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CapituloCapítulo XVIII XIXXVIII

De como vieram crescendo.

Os pequenos vier cresceram. A semelhançavieram crescendoEil-os que vemEi-los que vêm crescendo. A semelhança, sem os confundir ja, continuava a ser grande. Os mesmos olhos claros e attentosatentos, a mesma boca bôca cheia de graça, as mãos finas, e uma côrcor viva nas faces que as fazia crer crêr pintadas de sangue. Eram sadios; exceptuadaexcetuada a crise dos dentes, não tiveram molestiamoléstia alguma, porque eu não conto uma ou outra indigestão de doces, que os paespais lhes davam, ou

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elleseles tiravam ásàs escondidas. Eram ambos gulosos, Pedro mais que Paulo, e Paulo mais que ninguemninguém.

Aos sete annosanos eram duas obras-primas, ou antes uma só em duas partes,dous volumes, como quizeresquiseres. Em verdade, não havia por toda aquellaaquela praia, nem por Flamengos ou GloriasGlórias, Cajus Cajús e outras redondezas, não havia uma, quanto mais duas creançascrianças tão graciosas. Nota que eram tambemtambém robustos. Pedro com um murro derrubava Paulo; em compensação, Paulo com um ponta-pépontapé deitava Pedro ao chão. Corriam muito na chacarachácara por appostaaposta. Alguma vez quizeramquiseram trepar ás arvoresàs árvores, mas a mãe não consentia; não era bonito. Contentavam-se

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de espiar cá de baixo a fructafruta.

Paulo era mais aggressivoagressivo, Pedro mais dissimulado, e, como ambos acabaramacabavam por comer a fructafruta das arvoresárvores, era um moleque que a ia buscar acima, fosse a cascudo de um ou com promessa de outro. A promessa não se cumpria nunca; o cascudo, por ser antecipado, cumpria-se sempre, e ásàs vezes ne/co\mcom repetição depois do serviço. Não digo com isto que um e outro dos dous gemeosgêmeos não soubessem aggrediragredir e dissimular; a differençadiferença é que cada um sabia melhor a sua indole,o seu gosto, cousa tão obviaóbvia que custa escrever.

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Obedeciam aos paespais sem grande esforço, posto fossem teimosos. e impacientes. Nem mentiam mais que outros meninos da cidade. Ao cabo, a mentira é alguma vez meia-mentira.virtude.meia virtude. Assim é que, quando elleseles disseram não ter visto ninguem furtar um relogiozinho relogiorelógio da mãe, presente do paepai, quando eram noivos, mentiram evidentementiram conscientemente, porque a criada que o tirou foi apanhada por elleseles em plena acçãoação de furto. Mas era tão amiga dellesdeles! e com taes lagrimastais lágrimas lhes pediu que não dissessem nada, a ninguem,a ninguém, que os gemeosgêmeos negaram absolutamente ter visto nada. TinhamContavam sete annosanos. Aos nove, quando ja a moça ia longe, é que descobriram, não sei a que propositopropósito,

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o caso escondido. A mãe quizquis saber porquepor que é que elleseles calaram em 1878 o que outr’ora;outrora; estes não souberam explicar-se, Talvezmas é claro que o silenciosilêncio de 1878 foi obra da affeiçãoafeição e da piedade, e dahidaí a meia-virtude, porque é alguma cousa pagar amor com amor. Quanto áà revelação de 1880 só se pode póde explicar pela distanciadistância do tempo. Já não estava presente a boa JoannaMiquelina; talvez ja estivesse morta. Demais, veiuveio tão naturalmente a referenciareferência...ao roubo

− Mas, porquepor que é que vocês até agora não me disseram nadadisseram? teimava aNa mãe.

Não sabendo mais que razão déssemdessem, um dellesdeles, creio que Pedro, foi levadoresolveu

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accusaracusar o irmão:

− Foi elleele, mamãe!

− Eu? redarguiu Paulo. Foi elleele, mamãe, elleele é que não disse nada.

− Foi você!

− Foi você! não minta!

− Mentiroso é elleele!

Cresceram um para o outro;outro. Consolação Agueda Conceição Soledade Natividade accudiuacudiu prestemente, não tanto que impedisse a troca dos primeiros murros. Segurou-lhes nosos braços, abraços a tempo de evitar outros, e, em vez de os castigar ou ameaçar, beijou-os com tamanha ternura que elleseles não acharam melhor occasiãoocasião de lhe pedir doce. Tiveram doce; tiveram tambemtambém um passeio, áà tarde, no carrinho do paepai.

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Nas Não volta estavam amigos ou reconciliados. Contaram áà mãe o passeio, a gente da rua, as outras creançascrianças que olhavam para elleseles com inveja, uma que mettiametia o dedo na boca bôca, outro no nariz, e moças de boas as moças que estavam ás janellasàs janelas, algumas que os acharam bonitos. Neste ultimoúltimo ponto divergiam, porque cada um dellesdeles achatomava para si só as admirações; mas a mãe interveiuinterveio:

− Foi para ambos. Vocês são tão parecidos, que não podia ser senão compara ambos. E sabem porquepor que é que as moças elogiaram vocês? Foi por ver que iam amigos, chegadinhos um ao outro. Meninos bonitos não

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brigam, ainda menos sendo irmãos. Quero vel-osvê-los quietos e amigos, brincando juntos, semjuntos sem brigarusga nem nada. Em/s\tãoEstão entendendo?

Pedro respondeu que sim; Paulo esperou que a mãe repetisse a pergunta, e deu egualigual resposta. EmfimEnfim, porque ellaesta mandasse, abraçaram-se, mas foi um abraçar sem gosto, sem força, quasiquási sem braços; encostaram-se um ao outro, leva estendenden/ram\ estenderam as mãos ásàs costas udo irmão, e deixaram-n’asdeixaram-nas cair.

De noite, na alcova, cada um dellesdeles concluiu para si que devia os obsequiosobséquios daquelladaquela tarde, o doce, os beijos e o carro, áà briga que tiveram, e que outra briga podia render tanto ou mais. Sem palavras, como um romance ao piano, resolveram ir áà cara um do outro, na primeira occasiãoocasião. Isto que devia um ser um

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laço armado áà ternura da mãe, trouxe ao coração de ambos uma sensação particular, que não era só consolaçãoconsolo e desforra do soccosoco recebido naquellenaquele dia, mas tambemtambém satisfação de um gostodesejo intimoíntimo, profundo, necessarionecessário. Sem odioódio, disseram ainda algumas palavras de cama a cama, riram de uma ou outra lembrança da rua, até que o somnosono veiuentrou com os seus pés de lã e bico calado, e tomou conta da alcova inteira.

 
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CapituloCapítulo XIX XIXXIX

Apenas duas. – Quarenta annos. – Terceira causa annos. Terceira causa.anos. – Terceira causa.

Apenas duas

Um dos meus propositospropósitos neste livro é não lhe pôr lagrimas ,/.\lagrimas.lágrimas. afim de o trazer enxuto Entretanto, não posso calar as duas que rebentaram umacerta vez dos olhos de Soledade, Agueda,ConceiçãoNatividade, depois de uma brigarixa dos pequenos. Apenas duas, e foram fôram morrer-lhe aos cantos da boca. bôca. Tão depressa as verteu como as engoliu, renovando ásàs avessas e por palavras mudas o fecho daquellasdaquelas

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historiashistórias de creançascrianças: «entrou por uma porta, saiu pela outra, manda Elel el-rei nosso senhor que nos conte outra.» E a segunda creançacriança contava a sua segunda historia,segunda história, a terceira a terceira, a quarta a quarta, a quinta a quinta, todas atéaté que vinha o fastio ou o somnosono. Pessoas que datam do tempo dessas taes historias se contavamem que se contavam taes historiastais histórias affirmamafirmam que naas creançascrianças não punham naquella formulanaquela fórmula nenhuma fé monarchicamonárquica, fosse absoluta, fosse constitucional; era um modo de ligar o seu Decameron dellasdelas, herdado do velho reino portuguezportuguês, quando os reis mandavam o que queriam, e a nação dizia que era muito bem.

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Engolidas as duas lagrimaslágrimas, Soledade ConceiçãoAgueda Natividade riu da propriaprópria fraqueza. Não se chamou tola, porque esses desabafos raramente se usam, ainda em particular; mas no secreto do coração, lá muito ao fundo, onde não penetra olho de homem, creio que sentiu alguma cousa parecida com isso. Não tendo prova clara, limito-me a defender a nossa damadona.

Em verdade, qualquer outra viveria a tremer pela sorte dos filhos, uma vez que houvera a rixa anterior e interior,. e Agora, asAgora as lutas eram mais frequentes, as mãos cada vez mais aptas, e tudo fazia crer receiarrecear que elleseles acabassem estripando-se um

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um ao outro... Mas aqui surgia a ideia da grandeza e da prosperidade, − cousas futuras! − e esta esperança era como um lenço que enxugasse os olhos da bellabela Soledadesenhora. As SibyllasSibilas não terão dito só do mal, nem os ProphetasProfetas, mas ainda do bem, e principalmente delledele.

Com esse lenço verde enxugou ellaela os olhos, e teria outros lenços, se aquelleaquele estivesseficasse roto ou enxoxavalhadoenxovalhado; um, por exemplo, não verde como a esperança, mas azul, como a alma delladela. Nun Ainda lhes não disse que a alma de Soledade era AguedaConceição Natividade era azul. Ahi fica. Um

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azul celeste, claro e transparente, que alguma vez se embruscava, raro tempestuava, e nunca a noite escurecia.

Não, leitor, não me esqueceu a edadeidade da nossa amiga; della;da nossa amiga; lembra-me como se fosse hoje. Chegou assim aos quarenta annosanos. Não importa; o ceucéu é mais velho e não trocou de côrcor. Uma vez que lhe não attribuasatribuas ao azul da alma d della nenhuma significação romanticaromântica, estás na conta. Quando muito, no dia em que perfez aquella edadeaquela idade, a nossa damadona sentiu um calefrio. Que passárapassara? Nada,

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um dia mais que na vesperavéspera, algumas horas apenas. Toda u uma questão de numeronúmero, menos que numeronúmero, o nome do numeronúmero, esta palavra quarenta, eis o mal unicoúnico. DahiDaí a melancolia com que ellaela disse ao marido, agradecendo o mimo do anniversarioaniversário: «Estou velha, Agostinho!» Santos quiz esganal-aquis esganá-la brincando.

Pois faria mal se a esganesganasse. Soledade ainda AguedaConceição Natividade ainda tinha as fórmasformas do tempo anterior áà concepção, a mesma flexibilidade, a mesma graça miudamiúda e viva. Conservava o donaire dos trinta. A costureira punha em relevo

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todos os pensamentos sublimes estheticosrestantes da figura, e ainda lhe emprestava algu alguns do seu bolsinho. A cintura teimava em não querer engrossar, e os quadris e o collocolo eram do mesmo estofador antigo.

Ha dessas regiões em que o verão se confunde com o outono, como se dá com ana nossa terra, onde as duas sazõesestações differemdiferem pela temperatura. NellaNela nem pela temperatura. Maio tinha o calor de janeiro. Ella, se ainda se lembra dos seus quarenta annos, dirá se minut minto. Ouço daqui que não. Que é a mesma senhora verde, com a mesmíssima azulalma azul. Ella, aos quarenta annos, era a mesma senhora verde, com a mesmissima alma azul.Ela, aos quarenta anos, era a mesma senhora verde, com a mesmíssima alma azul.

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A côr azulEsta côrEsta cor vinha-lhe do paepai e do avô, mas o paepai morreu cedo, antes do avô, que chegárachegara aos oitenta e quatro. Nessa edadeidade cria sinceramente que todas as deliciasdelícias deste mundo, desde o café de manhã até os somnos socegadossonos sossegados, haviam sido feitos unicamenteinventados somente sómente para elleele. O melhor cozinheiro do/a\ m/te\rrada terra nascera na China, compara o unicoúnico fim de deixar familia, patria, linguafamília, pátria, língua, religião, tudo, e vir assar-lhe as costelletascosteletas e fazer-lhe o chá. As estrellasestrelas davam ásàs suas noites um aspecto esplendidoaspecto esplêndido, o luar tambemtambém, e a chuva, se chovia, era para que elleele descançassedescansasse do sol. Lá está agoraagora no cemiteriocemitério de

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S.São Francisco Xavier; se alguemalguém pudesse ouvir a voz dos mortos, dentro das sepulturas, ouviria da delledele, bradando que é tempo de fechar a porta ao cemiteriocemitério e não deixar entrar ninguemninguém, uma vez que elleele já lá descançadescansa para todo sempre. Morreu azul; se chegasse aos cem annos annos, não annos, naoanos, não teria outra côrcor.

Ora, se a natureza queria po poupar esta senhora, a riqueza dava a mão áà natureza, e de uma e de outra e saía o/a\a mais bello/a\bellabela azul côrcor que alma de gente pode póde ter. Tudo concorria assim para lhe seccaremsecarem os olhos depressa, como vimos atrazatrás. Se ellaela

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bev/b\eu aquellasbebeu aquellasbebeu aquelas duas lagrimas solitariaslágrimas solitárias, poderápudera ter bebido outras pela edade adeanteidade adiante, e isto é ainda uma prova daalma azul,quellequele matiz espiritual; mostrará assim que as tem poucas, e engole-as para poupar/l\-aspoupal-aspoupá-las.

Mas ha ainda uma terceira causa que dava a esta senhora o sentimento da côrcor azul, causa tão particular que não quero mistural-a ás outras e hade ir em capitulo seu devia ter i merecia ir em capítulo seu, mas não vae,vai, por economia. Era a isenção, era o ter atravessado a vida intactaintata e pura. O cabo das Tormentas converteu-se em cabo da Boa Esperança, e ellaela venceu a primeira e a segunda mocidade, sem que os ventos lhe derribassem a nau, nem as ondas a

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engolissem. Não negaria que alguma lufada mais rija pudera levar-lhe a vela do traquete, como no caso de João de Mello, ou ainda peorpior, no de Camargo, Ayres,Aires, mas foram fôram bocejos de Adamastor. Concertou a vellvela depressa e o ggigante ficou atrazatrás cercado de ThetisTétis, emquanto ellaenquanto ela seguiu a o caminho da IndiaÍndia. Agora lembrava-se da viagem prosperapróspera. Honrava-se da v resistencia ao aos ventos dos ventos perdidosdos ventos inuteisinúteis e perdidos. A memoriamemória tinha trazia-lhe o sabor do perigo passado. Eis aqui a terra encoberta, os dous filhos nados, criados e amados da fortuna. Que brigassem, senhora; era a passagem

 
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CapituloCapítulo XXI

A joia.

Os quarenta e um annosanos não lhe trouxeram arrepio. nenhum Já estava acostumada áà casa dos quarenta. SentiuSentiu, sim, um grande espanto; accordouacordou e não viu o presente do costume, a «sorpreza»«surpresa» do marido ao pé da cama. Não a achou no toucador; abriu gavetas, espiou, nada. Creu que o marido esquecera a data e ficou triste; era a primeira vez! Desceu olhando; nada. No gabinete estava o marido, calado,

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mettido comsigometido consigo, a ler jornaes; mal jornaes, mal jornais, mal lhe estendeu a mão. Os rapazes, apezarapesar de ser domingo, estudavam a um canto; vieram dar-lhe o beijo do costume e tornaram aos livros. A mãe relanainda relanceou os olhos pelo gabinete, a ver se achava algum a cousa, tudo vãomimo, um painel, um movelvestido, foi tudo vão. Embaixo de uma das folhas do dia que estava na cadeira fronteira áà do marido podia ser que que... Nada. Então sentou-se, e, abrindo a folha, ia f di dizendo comsigoconsigo: «Será possivelpossível que não se lembre do dia de hoje? Será possivelpossível?» Os olhos entraram a ler áà toda toa, saltando as noticiasnotícias, tornando atrazatrás...

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Defronte o marido espreitava a mulher, sem absolutamente importar-lhe o que parecia ler. Assim se passaram alguns minutos. De repente, Santos viu uma expressão nova no rosto de Natividade; os de olhos delladela pareciam crescer, a boca bôca entre-abriu-seentreabriu-se, até quea cabeça ergueu-se, a delle tambemdele também, ambos se despegardeixaram as cadeira, deram dous pa passos e cairamcaíram nos braços um do outro, como dous namorados desesperados de amaramor. Um, dous, treztrês, muitos beijos. Pedro e Paulo, espantados, tinham deixestavam ao canto, de pé. O os paepai, quando pôde falar, disse-lhes:

− Venham beijar a mão da senhora baronezabaronesa de Santos.

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Não entenderam logo. Natividade não sabia que fizesse; dava a mão aos filhos, ao marido, e tornava ao ao jornal para ler e reler que no despacho imperial da vesperavéspera — Sro sr. Sr.Senhor Agostinho José dos Santos fôrafora agraciado com o titulotítulo de Barão de Santos. Comprehendera/u\ComprehendeuCompreendeu tudo. O presente do dia era aquelleaquele; o ourives desta vez foi o imperadorimperador.

− Vão, vago vão, agora podem ir brincar, disse o paepai aos filhos.

E os rapazes sairamsaíram a espalhar a noticianotícia pela casa. Os creadoscriados ficaram felizes com a mudança dos amos. Os propriospróprios escravos pareciam receber uma parcellaparcela de liberdade e

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conderavam-secondecoravam-se com ellaela: «Nhã BaronezaBaronesa!» exclamavam saltando. E João puxava Maria, e Maria, batendopuxava Maria, batendo castanholas com os dedos: «Gente, quem é esta creoulacrioula? Sou escrava de Nhã BaronezaBaronesa

Mas o imperador não foi o unicoúnico ourives. Santos tirou do bolso uma caixinha, com um broche em que a coroa corôa nova rutilava de brilhantes. Natividade consentiuagradeceu-lhe a joia e consentiu em pol-apô-la, p em si para que o marido a visse. Santos sentia-se um pouco autor do/a\ broche, joiada joia, inventor das/a\da pedras fórmaforma e das pedras; mas deixou logo que ellaela a tirasse, e guardasse, e pegou das gazetas, para lhe

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mostrar que em todas vinha a noticianotícia, algumas com adjectivoadjetivo, conceituado aqui, alli distinctoali distinto, etc.

Quando PerpetuaPerpétua entrou no gabinete, achou-os andando de um lado para outro, com os braços passados pela cintura, conversando, calando, mirando os pés. Tambem ellaTambém ela deu e recebeu o seu tambemrecebeu abraços.

Toda a casa estava alegre. Na chacarachácara, as arvoresárvores pareciam mais verdes, que nunca, os botões do jardim explicavam as folhas, e o sol cobria a terra de uma claridade infinita. O ceucéu, para collaborarcolaborar com o resto, ficou azul o dia inteiro. Logo cedo entraram a vir cartões de e cartõescartas de

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parabensparabéns. Mais tarde visitas. Homens do foro, homens do commerciocomércio, h homens de sociedade, muitas senhoras, algumas titulares tambemtambém, vieram ou mandaram. Devedores de Santos acudiram depressa, outros algunsoutros preferiram continuaram o esquecimento. Nomes houve que elleseles só puderam reconhecer áà força de grande pesquizapesquisa e muito almanachalmanaque.

 
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CapituloCapítulo XXI

Um ponto escuroescuro.  

Sei que ha um ponto escuro no capitulocapítulo que passou; escrevel-oescrevo este para esclarecel-oesclarecê-lo.

Quando a esposa inquiriu dos antecedentes e circumstanciascircunstâncias do despacho, Santos deu todas as explicações pedidas. Nem todas seriam strictamente exactas estrictamente exactasestritamente exatas; o tempo é um rato roedor das cousas, que as diminuediminui ou altera no sentido de lhes dar outro aspecto. Demais, a materiamatéria era tão propiciapropícia

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ao alvoroço que facilmente traria confusão á memoriaà memória. Ha, nos mais graves acontecimentos, muitos pormenores que se perdem, outros que a imaginação inventa para supprirsuprir os perdidos, e nem por isso a historiahistória morre.

Resta saber (é o ponto escuro) como é que Santos pôde calar por tantoslongos dias um negocionegócio tão agudoimportante para elleele e para a esposa. Em verdade, esteve mais de uma vez a diserdizer por palavra ou por gesto, se achasse algum, aquelleaquele segredo de poucos; mas, sempre havia uma força maior que lhe tapava a boca. bôca. Pa Ao que parece, foi a expectação de uma alegria nova

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e inesperada , que lhe deu a alma de pacientar. Naquella scenaNaquela cena do gabinete tudo foi composto de antemão, o silenciosilêncio, a indifferençaindiferença, os filhos que elle pozele pôs alli estudando alli, estudandoali, estudando ao domingo sódomingo, só para o effeito daquella phraseefeito daquela frase: «Venham beijar a mão da senhora baronezabaronesa de Santos!»

 
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CapituloCapítulo XXII

Agora um salto.

Que os dous gemeosgêmeos participassem da lua de mel nobiliarianobiliária dos paespais não é cousa que se precisa/e\precise escrever. O amor que lhes tinham bastava a explical-oexplicá-lo, mas accresceacresce que, havendo o titulotítulo produzido em outros meninos dous sentimentos oppostosopostos, um de estima, outro de inveja, Pedro e Paulo concluiramconcluíram ter recebido com elleele um meritomérito especial. Quando, mais tarde, Paulo adoptou a opinião republicana nunca

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envolveu aquella distincçãoaquela distinção da familiafamília na condemnaçãocondenação das instituições. Os estados de alma que daqui nasceram davam materiamatéria a um capitulocapítulo especial, se eu não preferisse dar agora um salto, e ir a 1886. Grande é o salto,O salto é grande, mas o tempo é um tecido invisivelinvisível em que se pode póde bordar tudo, uma flor, um passaropássaro, uma dama, um castellocastelo, um tumulotúmulo. TambemTambém se pode póde bordar nada. Nada em cima de invisivelinvisível é a mais subtilsutil obra deste mundo, e acaso do outro.

 
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CapituloCapítulo XXIII

Quando tiverem  barbas.

Uma noite, naquelle anno, de 1886Naquelle anno,Naquele ano, uma noite de agosto, como estivessem algumas pessoas emna casa de Botafogo, succedeusucedeu que uma dellasdelas, não sei se homem ou mulher, quperguntou aos dous irmãos que idade edade tinham:tinham.

Paulo respondeu:

− Nasci no dia anniversarioaniversário do dia em que Pedro I caiu do thronotrono.

E Pedro:

− Nasci no anniversarioaniversário do dia em

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que Sua Majestade subiu ao thronotrono.

As respostas foram simultaneassimultâneas, não successivassucessivas, tanto que a pessoa pediu-lhes que falasse cada um por sua vez. A mãe explicou:

− Nasceram no dia 7 de abril de 1870.

Pedro repetiu vagarosamente:

− Nasci no dia em que Sua Majestade subiu ao thronotrono.

E Paulo:, em seguida:

− Nasci no dia em que Pedro I caiu do thronotrono.

Florinda Soledade ConceiçãoAgueda Natividade reprehendeurepreendeu a Paulo a sua resposta subversiva; Paulo explicou-se, Pedro contestou a explicação e deu outra, e a sala viraria club, se a mãe não os accommodasseacomodasse

156/7\

por esta maneira:

− Isto hão de ser grupos de collegiocolégio; vocês não estão em edadeidade de falar em política. Quando tiverem barbas.

As barbas não queriam vir 

As barbas não queriam vir, por mais que elleseles chamassem o buço com os dedos, mas as opiniões politicaspolíticas e outras vinham e cresciam. Não eram propriamente opiniões, não tinham raizesraízes grandes nem pequenas. Eram (mal comparando) gravatas de côrcor particular, que elleseles atavam ao pescoço, áà espera que a côr cançassecor cansasse e viesse outra. Naturalmente cada um tinha a sua. TambemTambém se pode crer póde crêr que er/a\

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de cada um era, mais ou menos, adequada áà pessoa. Posto fossem rivaes, não tinham odioComo recebiam as mesmas approvações e distincçõesaprovações e distinções nos exames, faltava-lhes materiamatéria a invejas; e, se a ambição os dividisse algum dia, não era por ora aguiaáguia nem condor, ou sequer filhote; quando muito, um ovo. No collegiocolégio de Pe Pedro II todos lhes queriam bem. No manuscrito, faz-se parágrafo aqui As barbas é que não queriam vir. Que é que se lhes hade ha dehá de fazer quando as barbas não querem vir? Esperar que venham por seu pé, que appareçamapareçam, como é seu costume dellas que cresçam, que embranqueçam, como é seu costume dellasdelas, salvo as que não embranquecem nunca, ou só em parte e temporariamente. Tudo isto é sabido e banal, mas dá logarensejo a dizer de duas barbas do ultimo genero,do último gênero, celebres naquellecélebres naquele tempo, e ora totalmente esquecidas. Não tendo outro logarlugar em

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que fale dellasdelas, aproveito oeste capitulocapítuloseguinte, e o leitor que volte a paginapágina, se prefere ir atrazatrás da historiahistória. Eu ficaria/ei\ficarei aqui alguns segund durante algumas linhas, recordando as duas barbas mortas, sem as entender agora, como ninguem não as entendemos outr’ora, então, as mais inexplicaveisinexplicáveis barbas do mundo.

A primeira daquellasdaquelas barbas era de um frade,amigo de Pedro, um capucho, um italiano, frei ***. Podia escrever-lhe o nome, − ninguemninguém mais o conheceria, − mas prefiro esse signalsinal trino, numero de mysterionúmero de mistério, expresso por estrellasestrelas, que são os olhos do ceucéu. Trata-se de um frade. NãoPedro não lhe conheci/eu\conheceu a barba preta, mas já grisalha, longa e basta, ca adornada/n\doadornando uma cabeça masculamáscula e formosa. A boca bôca era risonha, os olhos

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rutilosrútilos. Ria por ellaela e por elleseles, tão docemente que mettiametia a gente no coração. Tinha o peito largo, as espaduasespáduas fortes. O pé nu, nú, atado ás/á\ à sandaliasandália, parecemostrava aguentar um corpo de HerculesHércules. Tudo isso meigo e espiritual, como uma pagina evangelicapágina evangélica. A fé era viva, a affeiçãoafeição segura, a pacienciapaciência infinita.

Um diaFrei *** despediu-se um dia dos amigosde Pedro. Ia ao interior, Minas, Rio de Janeiro, S.São Paulo, − creio que ao Paraná tambemtambém, − viagem espiritual, como a de outros confrades; econfrades, e lá ficou por um semestre ou mais. Quando voltou foi uma alegriatrouxe-nos a todos grande alegria e maior espanto. A barba

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estava negra, não sei se tanto ou maesmais do que d’antesdantes, mas negrissima e brilhantissimanegríssimas e brilhantíssima. Não explicou a mudança, nem ninguemninguém lhe perguntou por ellaela; podia ser milagre ou capricho da natureza; tambemtambém podia ser correcçãocorreção de homem, Masposto que o ultimoúltimo caso erafosse de mais difficildifícil de crer crêr que o primeiro. Não d/D\urou mais de noveDurou nove mezesmeses esta cor; côr; entre um sabbado e um domingofeita outra viagem por um annoviagem por trinta dias, a barba appareceuapareceu de prata ou de neve, como vos parecer mais branca.

Quanto áà segunda de taestais barbas, erafoi ainda mais espantosa. Não era era de frade, mas de um quasi maltrapilho, um sujeito que vivia de

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dividasdívidas, Na mocidadee na mocidade corrigira um velho rifão da nossa lingualíngua por esta maneira: «Paga o que deves, vê o que te não fica.» Chegou aos cincoenta annoscinquenta anos sem dinheiro, sem emprego, sem relaçõesamigos. A roupa teria a mesma idade edade, os sapatos não menor que ellaela,. A barba é que não chegou aos cincoentacinquenta; elleele pintava-a de negro e mal, provavelmente por não ser a tinta de primeira qualidade e não terpossuir espelho. Andava só, descia ou subia muita vez a rua do Ouvidormesma rua. Um dia dobrou a esquina da Vida e entroucaiu na praça dada da/M\orte,Morte, com as barbas enxovalhadas, por não ter com que pintal-as nahaver quem lh’aslhas pintasse na Santa Casa.

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Or, benèOr, bene, fal para falar como o meu capucho, por que porque é que este e o maltrapilho voltaram do grisalho ao negro? A leitora que adivinhe, se pode póde: dou-lhe vinte capituloscapítulos para alcançal-oalcançá-lo. Talvez eu, por essas alturas, lobrigue alguma explicação, mas por ora não sei nem aventuro nada. Vá que malignos attribuamatribuam a frei *** alguma paixão profana; ainda assim não se comprehendecompreende que elleele se descobrisse por aquelleaquele modo. Mas e o maltrapilho? A queC Quanto ao maltrapilho, a que damas queria elleele agradar, a ponto de trocar alguma vez o pão pela tinta? Que um e outro cedessem ao desejo de prender a mocidade

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fugitiva, pode póde ser. O frade, lido na EscripturaEscritura, sabi/e\ndosabendo que Israel chorou pelas cebolas do EgyptoEgito, teria tambemtambém chorado, e as suas lagrimaslágrimas seriam sairam cairamcaíram negras. Tudo pode ser uso Pode PódePode ser, repito. Este desejo de capturar o tempo é uma necessidade da alma e dos queixos e doe dos queixos; A não ser essa, não lhe vejo outra explicação mas aoao tempo tem sempredá Deus habeas-corpus.

 
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CapituloCapítulo XXI I V IXXIV

Robespierre e LuizLuís XVI.

Tanto cresceram as opiniões politicas de Pedro e Paulo que, um dia, chegaram a incorporar-se em alguma cousa. Iam descendo pela rua da Carioca. Havia alliali uma loja de vidraceiro, com espelhos de variovário tamanha/o\,tamanho, e ee, mais que espelhos;espelhos, tambemtambém haviatinha retratos velhos e gravuras baratas, com e sem caixilho. Pararam alguns instantes, olhando áà toa. Logo depois, Pedro viu pendurado um

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retrato de LuizLuís XVI, entrou e comprou-o logo por oitocentos reisréis; umaera uma simples gravura preza patadaao ao mostrador por duaum barbante. Paulo quizquis ter e/i\gual egualigual fortuna, adequada ásàs suas opiniões, e descobriu um Robespierre. Como o logistalojista pedisse por este mil e duzentos, Pedro exaltou-se um pouco.

− Então o senhor vende mais barato um rei, e um rei martyrmártir?

Hade Ha deHá de perdoar, mas é que este/a\ outro/a\esta outra senhorgravura custou-me mais caro, redarguiu o velho logistalojista. Nós vendemos conforme o preço da compra. Veja; está mais novo/a\nova.

− Lá isso, não, acudiu Paulo. São do mesmo tempo; mas é que este vale ma mais que aquelleaquele.

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− Ouvi dizer que tambemtambém era rei...

− Qual, rei! responderam os dous.

− Ou quiz sel-oquis sê-lo, não sei bem.bem... Que eueu, de historiashistórias, apenas conheço a dos mouros que apprendiaprendi na minha terra, comterra com a avó, a Algumas partesalguns bocados em verso. E elleele ainda n/h\aha mourasmouras lindas; por exemplo, esta; apesar do nome, creio que era moura, ou aindamoura, ou ainda é, se vive... Mal lhe saiba ao marido!

Foi a um canto e trouxe um retrato de Madame de StaelStaël, com o famoso turbante na cabeça. Ó effeito da bellezaOh efeito da beleza! Os rapazes meninosrapazelhos rapazelhosrapazes esqueceram por um instante as opiniões politicaspolíticas e ficaram a olhar longamente a figura de CorinnaCorina. O logistalojista, apezarapesar dos seus setenta annosanos,

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e tinha os olhos derretidos a vista babadaos olhos babados. Cuidava/ou\Cuidou de sublinhar as fórmasformas, os/a\a olhoscabeça, a boca bôca um tanto grossa, mas expressiva, e dizia que não era caro. Como nenhum quizesse quisesse comprala compral-acomprá-la, talvez por ser só uma, disse-lhes que ainda tinha outro, mas esse era «uma pouca vergonha,» phrasefrase que os deuses lhe perderiam,perdoariam, quando soubessem que elleele que querianão quiznão quis mais que aguçar abrir o appettite aos adolescente do par joven par de fregueses. E foi a um armario, que abrir o appetite aosapetite aos rapazesfreguezes.fregueses. E foi a um armário, E foi a um armario, e tirou de lá, e trouxe uma Diana, núanua como vivia cá em baixo, em baixoembaixo outr’oraoutrora, nos mattosmatos. Nem por isso a vendeu. Teve de contentar-se com os retratos políticos.

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QuizQuis ainda ver se colhia algum dinheiro, vendendo-lhes um retrato de Pedro I, encaixilhado, que pendia da parede; mas, Pedro recusou por não ter dinheiro disponiveldisponível, e Paulo disse que não daria um vintemvintém pela «cara de traidores». Antes não dissesse nada! O logistalojista, tão depressa lhe ouviu a resposta como despiu as fórmasformas obsequiosas, vestiu outras indignadas, e bradou que sim, senhor, que o moço tinha razão.

− Tem muita razão. Foi um traidor, máumau filho, mau irmão, mau tudo. Fez todo o mal que pôde a este muit/n\do; e no inferno, onde está, se a religião não mente, deve ainda fazer mal ao Diabo. Este

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senhormoço falou ha pouco em rei mat/r\tyrmartyrmártir, − continuou mostrando-lhes um retrato de D.Dom Miguel de Bragança, meio perfil, sobrecasaca, mão ao peito, − este é que foi um verdadeiro martyr daquellemártir daquele, que lhe roubou o thronotrono, que não era seu, para dal-odá-lo a quem não pertencia; e foi morrer á minguaà míngua , o meu pobre rei e senhor, dizem que na AllemanhaAlemanha, ou não sei onde. Ah! malhados! ah!Ah! filhos do Diabo! Os senhores não podem imaginar o que era aquellaaquela canalha de liberaesliberais.«/.\ Liberaes! LiberaesLiberais! Liberais do alheio!

− É tudo a mesma farinha, reflexionou Paulo.

− Eu não sei se elleseles eram de farinha,

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sei que levaram muita pancada. Venceram, mas apanharam devérasdeveras. Meu pobre rei!

Pedro quizquis responder ao remoque do irmão, e propozpropôs comprar o retrato de Pedro I. Quando o logistalojista tornou a si, começou a negociar a venda, mas não po/u\deram poderam entender-se no preço; Pedro dava os mesmos oitocentos reisréis do outro, o logistalojista pedia dous mil reisréis. Notava-lhe que estava encaixilhado, e LuizLuís XVI não; além disso, era mais novo. E vinha áà porta, a buscar melhor luz, chamava-lhe a attençãoatenção para o rosto, os olhos principalmente, que bellabela expressão que tinham! E o manto imperial...

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− Que lhe custa dar dous mil reisréis?

− Dou-lhe dez tostões; serve?

− Não serve. Mais que isso me custou elleele.

− Pois então...

− Veja sempre. Pois isto não vale até tres treztrês mil reisréis? O papel não está encardido; a gravura é fina.

− Dez tostões, já disse.

− Não, senhor. Olhe, por dez tostões leve este de D.Dom Miguel; o papel está bem conservado, e, com pouco dinheiro, manda-lhe pôr um caixilho. Vá; dez tostões.

− Se eu já est estou arrependido... pelos toesDez tostões po/elo\pelopelo imperador.

− Ah! isso não! Custou-me mil e setecentos ha setecentos, hasetecentos, há três trez semanas; ganhou/o\ganho uns

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trezentos reisréis, quasiquási nada. Ganho menos com o senhor D.Dom Miguel, mas tambemtambém concordo que é menos procurado. Este de D.Dom Pedro I, se passar amanhã, talvez ja o não ache. Vá, sim?

− Eu passo depois.

Paulo já ia andando e mirando Robespierre; Pedro alcançou-o.

− Olhe, leve por sete tostões o senhor D.Dom Miguel!

Pedro abanou a cabeça.

− Seis tostões serve?

Pedro, desenao lado do irmão, desenroláradesenrolara a sua gravura. O velho logista quizlojista quis ainda bradar: «Cinco tostões!» mas iam já longe, f ee ficava mal negociar assim.

 
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CapituloCapítulo XXVIIII XXVII

D.Dom Miguel.

− Assim como assim, ficou pensando o velho, não hade ha dehá de ser enrolado e guardado que o heidehei de vender; vou mandal-omandá-lo encaixilhar; põem-se-lhe aqui umas taboinhastabuinhas velhas...

D.Dom Miguel voltou para elleele os olhos turvos de reproche e tristeza;tristeza e reproche; assim lhe pareceu ao vidraceiro, mas podia ter sido illusãoilusão. Em todo caso, pareceu tambemtambém que os olhos tornavam ao seu logarlugar, fitando áà

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direita, ao longe... Para onde? Para onde ha justiça eterna, cuidou naturalmente o dono. Como estivesse a contemplal-ocontemplá-lo, áà porta, parou um homem, entrou, e olhou commovidocom interesse para o retrato. O logistalojista reparou na expressão; podia ser algum miguelista, mas tambemtambém podia ser um colleccionadorcolecionador...

− Quanto pede o senhor por isto?

− Isto? Hade Ha deHá de perdoar; quer saber quanto peço pelo meu rico senhor D.Dom Miguel? Não peço muito, está um tanto encardido, mas ainda se lhe aprecia bem a figura. Que soberba que ellaela ! é! Não é caro; dou-lhe pelo c custo; se estivesse encaixilhado, valeria

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unsuns quatro mil reisréis. Leve-o por tres treztrês.

O freguezfreguês tirou tranquillamentetranquilamente o dinheiro do bolso, emquantoenquanto o velho enrolava o retrato, e, trocados um por outro, despediram-se cortezescorteses e satisfeitos; um com a prenda, o outro com o o logistalojista, volt depois de ir até áà a porta, tornou áà cadeira do costume. Talvez ficaspensasse no perigomal a que escapáraescapara, se vendesse a/o\o gravretrato por dez tost tostões. Em todo caso, ficou a olhar para fórafora, para longe, para onde ha justiça eterna... Tres TrezTrês mil reisréis!

 
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Capitulo XXVIIICapítulo XXVI

A luta dos retratosretratos.

Quand/si\ QuasiQuási que não é preciso dizer o destino dos retratos do rei e do convencional. Cada um dos pequenos pregou o seu áà cabeceira da cama. Pouco durou esta situação, porque Paulo e Pedroambos faziam pirraças ásàs pobres gravuras, que t não tinhatinham culpa de nada. Eram orelhas de burro, epithet nomeios nomes feios, desenhos de animaesanimais, até que um dia Paulo rasgou a de Pedro, e Pedro a de Pa este a do outro. NaturPedro a de Paulo. Naturalmente, vingaram-se a murro; a mãe

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ouviu rumor e subiu apressada. Conteve os filhos, mas ja os achou arranhados e recolheu-se triste. Nunca mais acabaria aquellaaquela maldição de rivalidade? Fez esta pergunta calladacalada, atirada áà cama, a cara mettidametida no travesseiro, que desta vez ficou seccoseco,./,\ A pagina ficou enxutamas a alma chorou.

Natividade confiava na educação, mas a educação, por mais que ellaela a apurasse, não chegava a limavamapenas lima quebravam as arestas ao caractercaráter dos pequenos, a/o\ subo essencial ficava; as paixões embryonariasembrionárias trabalhavam por viver, crescer, romper, taes quaes ellatais quais ela sentira os dous no propriopróprio seio, durante a gestação... E recordava a crise de então, acabando por maldizer da cabocla do CastelloCastelo. Realmente,

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a cabocla devia ter calado; o mal calado não se muda, mas não se sabe. Agora, pode póde ser que isto de não calar confirme a opinião vulgar de que a cabocla era mandada por Deus para dizer a verdade ao aos homens. Mas tamE afinal o que é que ella disse a Soledade? Agueda?Conceição Não fezque ellaque ela disse a Natividade? Não fez mais que uma pergunta mysteriosamisteriosa; a predicçãopredição é que foi luminosa e clara... E outra vez as palavras do Castello resoaramCastelo ressoaram aos ouvidos da mãe, e a imaginação fez o resto. Eil-osCousas futuras! Eil-osEi-los grandes e sublimes. Algumas brigas em pequenos, que importa? Soledade AguedaConceição Natividade sorriu, ergueu-se, foi áà porta, deu com o filho Pedro, que

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foi á porta; deu com Pedro que vinha explicar-se.

− Mamãe, Pedro e mema Paulo é mau. Se mamãe ouvisse os horrores que elleque ele solta pela boca bôca fórafora, mamãe morria de medo. A mim c/C\usta-meCusta-me muito não ir áà cara delledele; ainda lhe não fureitirei um olho...

− Meu filho, não fallesfales assim, é teu irmão.

− Pois que não se metta commigometa comigo, não me aborreça. Que blasphemiasbasfêmias que elleele dizia! Como eu rezava por alma de LuizLuís XVI, elleele, para machucar-me bem, rezava a Robespierre; compozcompôs uma ladainha chamando santo ao outroao outro e cant

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cantarolava baixinho para que papaepapai nem mamãe ouvissem. Eu sempre lhe dei alguns cascudos...

Ahi está!

− Mas é que elleele é que me dava primeiro, porque eu punha orelhas de burro em Robespierre... Então, eu havia de apanhar callado?calado?

− Nem callado, nem fallando.calado, nem falando.

Mas e/E\ntãoEntão, como? Apanhar sempre nãosempre, não é?

− Não, senhor; não quero pancadas; o melhor é que esqueçam tudo e se queiram bem. Você não vê como seus paespais se querem? As brigas rusgasbrigas acabaram de todo. Não quero ouvir rusgas nem queixas. Afinal que temtêm vocês com um

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sujeito máumau que morreu ha tantos annosanos?

− É o que eu digo, mas elleele não se emenda.

Hade Ha deHá de emendar-se; os estudos fazem esquecer creancicescriancices. Você tambemtambém quando fôr medicofor médico tem muito que brigar com m/a\s molestiasas molestiasas moléstias e a morte; é melhor que andar dando pancada em seu irmão... Que é lá isso? Não quero arremeçosarremessos, Pedro! Socegue; ouça-meSossegue, ouça-me.

− Mamãe é sempre contra mim.

− Não sou contra nenhum, sou por ambos, ambos são meus filhos. E demais gemeosgêmeos. Anda cá, Pedro. Não penses que eu desapprovodesaprovo as tuas opiniões politicaspolíticas. Até góstogosto; são as

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minhas, são as nossas. Paulo hade ha dehá de tel-as tambemtê-las também. Na edadeidade em que estádelledele acceita-seaceita-se quanta tolice ha, mas o tempo corrige. Olha, Pedro, a minha esperança é que vocês sejam grandes homens, mas com a condição de serem gratambemtambém grandes amigos.

− Eu estou promptopronto a ser grande homem, assentiu Pedro com ingenuidade, quasiquási com resignação.

− E grande amigo tambemtambém.

− Se elle fôrele for, sou serei.

− Grandes homens! exclamou Soledade AguedaNatividade, dando-lhe dous abraços, um para elleele, outro para o irmão quando voltasseviesse.

Mas Paulo voltouveiuveio logo, e recebeu

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o abraço inteiro e de verdade. Vinha tambemtambém queixar-se, e sempre resmungou alguma cousa, mas a maemãe não quiz ouvil-oquis ouvi-lo, e falou outra vez a linguagem das grandezas. Paulo consentiu tambemtambém em ser grande.

− Você será medicomédico, disse Soledade AguedaConceiçãoNatividade a Pedro, e você advogado. Quero ver quem faz as melhores curas, e ganha as melhores as peioresas piores demandas.

− Eu, disseram ambos a um tempo.

− Patetas! Cada um terá a sua carreira especial, a sua sciencia differenteciência diferente. Já estão curados do nariz? Já; não ha mais sangue. Agora o primeiro que ferir seu irmão será degradado.

− Eu quero ser degradado.

− Eu tambem.

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Foi um recurso habil separal-oshábil separá-los; um ficava no Rio, estudando medicina, outro ia para S.São Paulo, estudar direito. O tempo faria o resto, não contando que cada um casava e iria com a mulher para o seu lado; lado. Era a paz perpetuaperpétua; mais tarde viria a perpetua amizade. Tal Assim pensava a mãe . perpetua amizade.perpétua amizade.

 
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CapituloCapítulo XXXVIIXXVII

De uma reflexão intempestiva.

Eis aqui entra uma reflexão da leitora: «Mas se duas velhas gravuras os levam a murro e sangue, contentar-se-hão ellescontentar-se-ão eles com a sua esposa? Não quererão a mesma e unicaúnica mulher?»

O que a senhora deseja, amiga minha, é chegar ja ao capitulocapítulo do amor ou dos amores, que é o seu interesse particular nos livros. DahiDaí a habilidade da pergunta, como se

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lembradissesse: «Olhe que o senhor ainda nãonos não mostrou a dama ou damas que temtêm de seremser amadas ou pleiteadas por estes dous jovens inimigos.jovens inimigos. «E estou cançadacansada de saber que os rapazes não se dão ou se dão mal; é a segunda ou terceira vez que assisto ásàs intercessão intervenções da mãe, às blandiciasblandícias della, da mãe ou aos seus ralhos t amigos. Vamos depressa ao amor, ásàs moçasduas, se n se não é uma só a pessoa...»

Francamente eu não gosto de g gente que venha adivinhando e compont/d\ocompondo um livro que apenas começa a ser escriptoestá sendo escripto com methodo.está sendo escrito com método. A insistenciainsistência da leitora em falar de uma só mulher chega

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a ser impertinente. SupponhaSuponha que elles devéraseles deveras gostem de uma só pessoa; não parecerá que eu conto o que a leitora me lembrou, quando a verdade é que eu apenas escrevo o que succedeusucedeu e pode póde ser testemunhado confirmado por dezenas de testemunhas? Não, senhora minha, não puzpus a pennapena na mão, áà espreita do que me viessem suggerindosugerindo. Se quer compor compôr o livro, aqui tem a pennapena, aqui tem papel, aqui tem um admirador; mas, se quer ler somente, sómente, deixe-se estar quieta, vá de linha em linha; dou-lhe que b boceje entre dous capituloscapítulos, mas espere o resto, tenha confiança no relator destas aventuras.

 
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CapituloCapítulo XXVIII A pessoa mais moça

O resto é certo

O resto é certo.

Sim, houve uma pessoa, mais moça que elleseles, um a dous annosanos, que os agrilhoou, áà força de costume ou de natureza, se não foi de ambas as causascousas. Antes dessa, d’essa, pode póde ser que houvesse outras e mais velhas que elleseles, mas de taestais não rezam as notas que servem a este livro. Se brigaram por ellaselas, não ficou memoriamemória disso, mas e é possível, que alguma vez se caso dado que tivessem

sem número
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tido as mesmas preferenciaspreferências; no caso contrario tambemcontrário também, como succediasucedia aos cavalleiroscavaleiros que defendiam a sua dama...

Conjecturas tudo. Era natural que, assim bon bonitos, e/i\guaes eguaes, elegantes, dados áà vida e ao passeio, áà conversação e áà dança, finalmente herdeiros, era natural que mais de uma menina gostasse dellesdeles. As que os viam passar a cavallocavalo, praia fórafora ou rua acima, ficavam namoradas daquelladaquela ordem perfeita de aspecto e de movimento. Os proprios cavallospróprios cavalos eram iguaesinhos eguaesinhosiguaizinhos, quasiquási gemeosgêmeos, e batiam as patas com o mesmo rythmoritmo, a mesma força

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e a mesma graça. Não creias que o gesto da cauda e das crinas fosse simultaneosimultâneo nos dous animae/i\s animaes; não é verdade e pode póde fazer duvidar do resto mais resto. Pois o resto é certo.

 
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CapituloCapítulo XXIX

A pessoa mais moça.  

A pessoa mais moça não entra ja neste capitulocapítulo por uma razão valiosa, que é a convenienciaconveniência de apresentar primeiro os paespais. Não é que se não possa vel-avê-la bem sem elleseles; pode-se, póde-se, os tres treztrês são diversos, acaso contrarioscontrários, e, por mais especial que a acheis, não é preciso que os paespais estejam presentes. Nem sempre os filhos reproduzem os paespais,. Camões affirmouafirmou que de certo paepai só se podia

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esperar tal filho, e a scienciaciência a confirma esta regra poeticapoética. Pela minha parte creio na scienciaciência como na poesia, mas ha excepçõeshá exceções, amigo. Succede, ásSucede, às vezes, que a natureza faz outra cousa, e nem por isso as plantas deixam de crescer e as estrellasestrelas de luzir. O que se deve crer crêr sem erro é que Deus é Deus; e, se alguma rapariga arab arabeárabe me estiver lendo, ponha-lhe AllahAlá,.Todos os caminhos vão dar T Todas as linguasTodas as línguas vão dar ao ceucéu.

 
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CapituloCapítulo XXIXIII

A gente Baptista.    

A gente Baptista conheceu a gente Santos em não sei que fazenda da an provinciaprovíncia do Rio. Não foi no municipio de em MaricáNão foi Maricá, embora alliali tivesse nascido o paepai dos gemeosgêmeos; a provincia tinha outros municipios, e mais ricos, seria foi seria em qualquer delles. outro municipio.outro municipio.outro município. Tambem não sei o motivo daquellas villegiatura férias da gente Santos. FosseFosse qual fosse, alliali é que se conheceram as duas familiasfamílias, e como morassem proximaspróximas em Botafogo, a

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assiduidade consolidou a syme a sympathia vierame a simpatia vieram ajudando o caso fortuito.

Baptista, o paepai da menina,donzella,donzela, era homem de quarenta e tantos annosanos, advogado do civelcível, ex-presidente de provinciaprovíncia e membro do partido conservador. A ida áà fazenda tivera por objecto exactamenteobjeto exatamente uma conferencia politicaconferência política para fins eleitoraeseleitorais, mas tão esterilestéril que elleele tornou de lá sem, ao menos, um ramo de esperança. Apesar de ter amigos no governo, não alcançara alcançára nada, nem deputação, nem presidenciapresidência. Interrompera InInterrompêraInterrompera a carreira desde que foi exonerado daquelledaquele cargo «a pedido», disse o decreto, mas as queixas do exonerado

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fariam crer crêr outra cousa. De factofato, perdera as eleições, e attribuiaatribuía a esse desastre politicopolítico a demissão do cargo.

− Não sei o que é elleque elleque ele queriam/a\queria que eu fizesse mais, dizia elle elleBaptista fallandofalando do ministro. do imperio Cerquei egrejasigrejas; nenhum amigo pediu policiapolícia queque eu não mandasse; processei talvez umas vinte pessoas, outras foram fôram para a cadeia sem processo. Havia de enforcar gente? Ainda assim houve duas mortes no Ribeirão das Moças.

O final era excessivo, porque as mortes não foram fôram obra delledele; quando muito, elleele mandou abafar o inqueritoinquérito, se si se pode póde chamar inqueritoinquérito a uma simples conversação sobre a

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ferocidade dos dous defuntos. Em summasuma, as eleições foram fôram incruentas.

Baptista dizia que por causa das eleições perdera a presidenciapresidência,; mas n/c\orriacorria outra versão, um negocionegócio de aguaságuas, concessão feita a um hes hespanholespanhol, a pedido do irmão da esposa csposa do presidente. O pedido era verdadeiro, a imputação de sociosócio é que era falsa. Não importa; tanto bastou para que a folha da opposiçãooposição dissesse que era um houve naquillonaquilo um bom «arranjo de familiafamília», accrescentandoacrescentando que, como era de aguaságuas, devia ser negocionegócio limpo. A forçafolha da administração retorquiu que, se se aguas que, se aguasque, se águas

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havia, podiamnão eram bastantes para lavar o sujo de do carvão deixado pela ultima presidencia liberalúltima presidência liberal, um fornecimento de vendas palacio.palácio. Não era exactoexato; a folha da opposiçãooposição reviveu o processo antigo e mostrou que a defeza fôradefesa fora cabal. Podia parar aqui, mas continuou que, «como agora estavamosestávamos em Hespanha,» Hespanha»,Espanha», o presidente emendou o poeta hespanholespanhol, autor daquelle epitaphiodaquele epitáfio:

            Cuñados y juntos:

Es cierto que estanestán difuntos;

e emendou-o por não ser obrigado a matar ninguemninguém, antes deu vida a si ae aos seus, dizendo pela nossa lingualíngua:

Cunhados e cunhadissimoscunhadíssimos;

É certo que são vivissimosvivissímos!

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Baptista acudiu depressa ao mal, declarando sem effeitoefeito a concessão, mas isso mesmo servia/u\ á opposiçãoserviu á opposiçãoserviu à oposição para novos commen arremeçosarremessos: «Temos a confissão do reuréu!» foi o principio d titulo dotítulo do primeiro artigo que rendeu áà folha da opposiçãooposição o actoato do presidente. Os correspondentes mandaramtinham ja escriptoescrito para o Rio de Janeiro alludindo á falando da concessão, e o governo acabou por demittirdemitir o seu delegado. Em verdade, só os politicospolíticos falaramcuidaram do negocionegócio. D. ClaudiaDona Cláudia apenas alludiaaludia áà campanha da imprensa, que foi violentissimaviolentíssima.

− Não valia a pena sair daqui, disse Natividade.

− Lá isso não, baronezabaronesa!

E D. Claudia affirmouDona Cláudia afirmou que valia. Soffre-seSofre-se, mas gosta-se pacienciapaciencia.paciência. Era tão bom chegar áà provinciaprovíncia!

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Tudo annunciadoanunciado, as visitas a bordo, o desembarque, a posse, os comprimentos cumprimentos... Ver a magistratura, o funccionalismofuncionalismo, a officialidadeoficialidade, muita calva, muito cabellocabelo pr branco, a flor da terra, as bandeiras fluctuando, e em emfim, com as suasenfim, com as suas corteziascortesias longas e demoradas, todas em anguloângulo ou em curva, e os louvores impre/ssos\impressos. As mesmas descomposturas da opposiçãooposição eram agradaveisagradáveis. Ouvir chamar tyrannotirano ao marido, que ellaela sabia ter um coração de pomba, ia bem áà alma delladela. A sede sêde de sangue que se lhe attribuiaatribuía, elleele que nem bebia vinho, o guante de ferro de um homem que era uma luva de pellicapelica, a immoralidadeimoralidade, a

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desfaçatez, a falta de brio, todos os nomes injustos, mas fortes, que ellaela gostava de ler, como verdades eternas, onde iam elleseles agora? A folha da opposiçãooposição era a primeira que D. ClaudiaDona Cláudia lia em palaciopalácio. Sentia-se vergastada tambemtambém e tinha nisso uma grande volupiavolúpia, como se si fosse na propria pelleprópria pele; almoçava melhor. Onde iam os lategos daquellelátegos daquele tempo? Agora mal podia ler o nome delledele impresso no fim de algumas razões do fôroforo, ou então na lista das pessoas que iam visitar o imperador...imperador.

− Nem sempre, explicar/ou\explicou D. ClaudiaDona Cláudia; Baptista é timidomuito acanhado; vaevai /de\de longe em longe a S.Christovam, S. Christovão,São Cristóvão

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para não parecer que se faz lembrado, como se isto fosse crime; ao contrariocontrário, não ir nunca é que pode póde parecer arrufo. Note que o imperador nunca deixou de recebel-orecebê-lo com muita benevolenciabenevolência, e a mim tambemtambém. Nunca esqueceu o meu nome. Ja deixei Já dcixeiJá deixei de la ir dous annosanos, e quando appareci perguntou-me appareci, perguntou-meapareci perguntou-me logo: «Como vaevai, D. ClaudiaDona Cláudia

AfóraAfora essas saudades do poder, D. ClaudiaDona Cláudia era uma creaturacriatura feliz. A viveza das palavras e das maneiras, os olhos que pareciam não ver nada áà força de não pararem nunca, e o sorriso benevolobenévolo, e a

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admiração constante, tudo nellanela era ajustado a curar as melancolias alheias. Quando beijava ou mirava as amigas era como se as quizessequisesse comer vivas, comer de amor, não de odio, mettel-asódio, metê-las em si, muito em si, no mais fundo de si.

Baptista não tinha as mesmas expansões. Era alto, e a ato ar socegadoo ar sossegado dava forma um bom aspecto de governo. Só lhe faltava acçãoação, mas a mulher podia inspirar-lh’ainspirar-lha; nunca nas occasiões graves da presidencia deixou de consultal-a deixou de consultal-a nasdeixou de consultá-la nas occasiõesmancrises da presidencia.da presidenciada presidência. Agora mesmo, se lhe déssedesse ouvidos, ja teria ido pedir alguma cousa ao governo, mas neste ponto era firme, de uma

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firmeza que nascia do/a\da vexame fraquezafraqueza: «Hão de chamar-me, deixa estar,» dizia elleele a D. ClaudiaDona Cláudia, quando appareciaaparecia alguma vaga de governo provincial. Certo é que elleele sentia a necessidade de tornar áà vida activaativa. NelleNele a politicapolítica era menos uma opinião que uma sarna; precisava coçar-se a miudomiúdo e com força.

folha não numerada

ULTIMO

por

Machado de Assis

(da Academia Brasileira )

 
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CapituloCapítulo XXXIIXXXIV

Flora.

Tal era aquelleaquele casal de politicos.políticos. Um filho, se elleseles tivessem um filho varão, seria podia ser a fuzãofusão das suas qualidades oppostas,opostas, e talvez um homem de Estado. Mas o ceucéu negou-lhes essa cal consolação dynastica .dinástica.

Tinham uma filha unica,única, que era tudo o contrariocontrário delles d’ellesdeles. Nem a paixão de D. ClaudiaDona Cláudia, nem o aspecto governamental de Baptista distinguia a alma ou a figura da da joven

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a alma ou a figura da jovenjovem Flora. Hoje Na com o tempo andado, fez-se robusta e cheia; naquelle quelle anno adolescendo apenas, quem a comparasse a um Quem a conhecesse então por esses dias, poderia comparal-a a umpoderia compará-la a um vaso quebradiço ou áà flor da de uma só manhã, tinhae teria materiamatéria para uma doce elegia.cantiga.elegia. Já então possuiapossuía os olhos grandes e claros, menos sabedores, mas dotados de um mover particular, que não era o espalhado da mãe, nem o apagado do paepai, antes mavioso e pensativo, tão cheio de graça que faria alegreamavelamável a cara de um avarento. Põe-lhe o nariz aquilino, rasga-lhe a boca bôca meio risonha, formando tudo um rosto comprido,

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e regularalisa-lhe os cabellos ruivos,alisa-lhe os cabelos ruivos e ahi tens a moça Flora.

Nasceu em agosto de 1871. A mãe, que datava por ministeriosministérios, nunca negou a idade edade da filha:

− Flora nasceu no ministerioministério Rio-Branco, e foi sempre tão facilfácil de apprenderaprender, que ja no ministerioministério Sinimbú sabia ler e escrever correntemente.

Era retrahidaretraída e modesta, avêssaavessa a festas publicaspúblicas, e foi difficilmentedificilmente ap consentiu em apprendeu/r\aprender a dans/ç\ardançar. Gostava de musicamúsica, e mais do piano que do canto. Ao piano, entregue a si mesma, era capaz de não comer um dia inteiro. Ha ahiHá aí umo

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seu tanto de exagerado, mas a hyperbolehipérbole é deste mundo, e as orelhas da gente andam já tão entupidas que só áà força de muita rhetoricaretórica se pode póde mettermeter por ellaselas um sopro de verdade.

Até aqui nada queha que extraordinariamente se distinga esta moça das outras, suas contemporaneascontemporâneas, desde que a modestia vaemodéstia vai com a graça, e em certa e/i\dade edade é tão d natural o devaneio como a travessura. Flora, aos quinze annosanos, dava-lhe para se metter comsigometer consigo. CamargoAyres,Aires, que a conheceu por esse tempo, em casa de SoledadeNatividade, acreditava que a moça viria a ser uma insaciavelincontentavelindecifravel uma inexplicavel.uma inexplicável.

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− Como diz? inquiriu ainquiriu a mãe.

− Verdadeiramente, não digo nada, emendou CamargoAyres;AyresAires; mas, se me permittepermite dizer alguma cousa, direi que esta sua filha moça resume as raras prendas de sua filh mãe.

− Mas eu não sou insaciavelincontentavel,indecifravel, sou inexplicavel,sou inexplicável, replicou D. ClaudiaDona Cláudia sorrindo.

− Ao contrariocontrário, minha senhora. Tudo está, poremporém, na definição que dermos a esta palavra. Talvez não haja nenhuma certa. SupponhamosSuponhamos uma creaturacriatura para quem não exista na perfeição na terra, e julgue que a mais bellabela alma não passa de um ponto de vista; se tudo muda com a o ponto de vista, a perfeição...

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− Não ha perfeição, atalhou Natividade.

− Tambem é certo, concluiu Ayres.

− A perfeição é copas, insinuou Santos.

Era um convite ao jogo do voltarete. AyresAires não teve animoânimo de a acceitar,aceitar, tão inquieta lhe pareceu Flora, com os olhos nelle,nele, interrogativos, curiosos de saber porquepor que é que ellaela seriera ou viria a ser incontentávelindecifravel inexplicavel.inexplicável. AlemAlém disso, preferia a conversação das mulheres. É delledele esta phrase escripta n/d\o Memorialphrase do Memorialfrase do Memorial: «Na mulher, o sexo corrige a banalidade; no homem, aggravaagrava

Não foi preciso acceitaraceitar nem recusar o convite de Santos; chegaram dous habituados do jogo, e com elles e Baptistaeles e Baptista elles Baptista,

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que estava na saleta proximapróxima, Santos foi ao recreio de todas as noites. Um daquellesdaqueles era o velho Placido,Plácido, doutor em spiritismoespiritismo; o segundo era um corretor da praça, chamado Caval PaduaLopes, que amava as cartas pelas cartas, e sentia menos perder dinheiro que partidas. Lá se foram fôram ao voltarete, emquanto Ayresenquanto Aires ficava no salão, a ouvir a um canto as damas, sem que os olhos de Flora se despegassem delle d’elledele.

 
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CapituloCapítulo XXXII

O aposentado.

Já então este Ayresex-ministro estava aposentado. Regressou ao Rio de Janeiro, depois de um ultimoúltimo olhar ásàs cousas vistas, para aqui viver o resto dos seus annosdias. Podia fazel-ofazê-lo em qualquer cidade, era homem de todos os climas, mas tinha particular amor áà sua terra, e estavaporventura por ventura estava cançadocansado de outras. Não attribuiaatribuía a esta tantas calamidades. A febre amarellaamarela, por exemplo, áà força de a

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desmentir lá fóra,fora, quando minis perdeu-lhe a fé, e cá dentro, quando via publicados alguns casos, estava ja corrompido por aquelleaquele credo que attribueatribui todas as molestiasmoléstias a uma variedade de nomes. Talvez porque era homem sadio.

Não mudáramudara inteiramente; era o mesmo ou quasiquási. Encalveceu mais, é certo, terá menos carnes, algumas rugas; ao cabo, uma velhice rija de sessenta annosanos. Os bigodes continuam a trazer as pontas finas e agudas. O passo é firme, o gesto grave, com aquelleaquele toque de garanteriagalanteria, que nunca perdeu. Na botoeira, a mesma flor eterna.

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TambemTambém a cidade lhenão lhe pareceu que houvesse mudado muito. Achou algum movimento, mais, alguma operaópera menos, cabeças brancas, pessoas defunctasdefuntas; mas a velha cidade era a mesma. A propriaprópria casa delledele no CatteteCatete estava bem conservada. AyresAires despediu o inquilino, tão polidamente como se recebesse o ministro dos negociosnegócios estrangeiros, e metteu-se nellameteu-se nela a si e a um criado, por mais que a irmã teimasse em leval-olevá-lo para AndarahyAndaraí.

− Não, mana Rita, deixe-me ficar no meu buraco canto.

− Mas eu sou a tua sua ultimaúltima parenta, disse ellaela.

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− De sangue e de coração, isso é, concordou elleele; pode póde accrescentaracrescentar que a melhor de todas e a mais pia. Onde estão aquelles cabellos...?aqueles cabelos...? Não precisa baixar os olhos. Você os cortou para mettermeter no caixão de seu finado marido. Os que ahi estão embranqueceram; mas os que lá ficaram eram pretos, e mais de uma viuvaviúva os teria guardado todos para as segundas nupciasnúpcias.

Rita gostou de ouvir aquella referenciaaquela referência. Em tempo, fallara muito daquelle desse acto de saudade; foi talvez o que a consolou um pouco da viuvez. Depois, entrou a sentir tal ou qual vexame, sentiu-se quasi Outr’ora, não;Outrora, não; pouco depois de viuva, tinha vexame de um acto tão sincero; achava-se quasidepois de viúva, tinha vexame de um ato tão sincero; achava-se quási

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quasi d ridicula.ridícula. Que valia cortar os cabelloscabelos por haver perdido o melhor dos maridos? Mas, andando o tempo, entrou a ver que fizera bem, a approvaraprovar que lh’olho dissessem, e, na intimidade, a lembral-o.lembrá-lo. Agora se serviu a lembrançaallusãoalusão para replicarao irmão:

− Pois se eu sou isso, porquepor que é que você prefere viver com extranhosestranhos?

− Não são extranhos;

− Que extranhosestranhos? Não vou viver com ninguem.ninguém. Viverei com o Cattete,Catete, o largo do Machado, a praia de Botafogo e a do Flamengo, não fallofalo das pessoas que aqui moram, mas das ruas, das casas, dos chafarizes e

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das das lojas. Ha cousas exquisitas,esquisitas, mas sei eu se vivera viervenho achar em AndarahyAndaraí uma casa de pernas para o ar, por exemplo? Contentemo-nos do que sabemos. Lá são os meus pés q q andam por si. Ha alliali cousas petrificadas e pessoas immortaes,imortais, como aquelleaquele CustodioCustódio da confeitaria, lembra-se?

− Lembra-me, a Confeitaria do ImperioConfeitaria do Império.

Ha quarenta annosanos que a estabeleceu; era ainda no tempo em que os carros pagavam imposto de passagem. Pois o diabo está velho, mas não acaba;;está tão velho como a Taboleta ainda me hade ha dehá de enterrar. É/P\areceParece rapaz; apparece-meaparece-me lá todas as semanas.

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Como v/V\ocêVocê tambemtambém parece rapaz.

− Não brinque, mana; eu estou acabado. Sou um velho gamenho, pode póde ser; mas não é por agradar a moças, é porque me ficou este geito...jeito...e E a proposito,propósito porquepor que não vaevai você morar commigo?comigo?

Ah.Ah! é para saber que tambemtambém eu gosto de estar entre os meuscommigo.comigo Irei lá de quandovez em quando, mas já não saio daqui d’aqui, se nãosenão para o cemiterio.cemitério.

Ajustaram visitar um ao outro; AyresAires viria jantar ásàs quinta-feiras. D.Dona Rita ainda lhe falou dos casos de molestiamoléstia delle d’elledele, ao que AyresAires replicou que não adoecia nunca, mas d se adoecesse iria paraviria para AndarahyAndaraí; porque pois o coração delladela era « o melhor dos hospitaeshospitais». Talvez que

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em todas essas recusas houvesse pr tambemtambém a necessidade de fugir á contradicçãoà contradição, porque a irmã a sabia inventar occasiõesocasiões de dissidencia.dissidência. NaquelleNaquele mesmo dia (era ao almoçar/o\almoço) elleele achou o café delicioso, mas a irmã disse que era ruim, obrigando-o a um grande pa esforço para tornar atrazatrás e achal-o detestavel.achá-lo detestável.

A principio, Ayresprincípio, Aires cumpriu a solidão, separou-se da sociedade, metteu-semeteu-se em casa, não appareciaaparecia a ninguemninguém ou a raros e de longe em longe. Em verdade estava cançadocansado de çado de homens e de mulheres, de festas e de simples passeios numerosas vigilias.vigílias. Fez um programma.programa. Como era dado a letras classicas,clássicas, achou no padre Bernardes esta traducção daquelletradução daquele psal psalmo:salmo: «Alonguei-me fugindo e morei

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na soedade.» Foi a sua divisa. Santos, se a achasse,lh’alha déssem,dessem, fal-a-ia fal-a-hiafá-la-ia esculpir, áà entrada do salão, para regalo dos numerososseus muitos numerosos amigos. AyresAires deixou-a estar em si. Alguma vez gostava de a repetir ca recitar calado, parte pelo sentido, parte pela linguagem velha: «Alonguei-me fugindo e morei na soedade.»Ecce elongavi fugiens et in mansi solitudine.

E era assim mesmo.a principio assim foi.Visitiva aÁs quinta Assim foi a principio. Ás quinta- Assim foi a principio, Ás quinta-Assim foi a princípio. Às quinta-feiras ia jantar com a irmã. ÁsÀs noites ia passeava pelas praias, ou pelas ruas , a horas mortasdo bairro. O mais do tempo era gasto em ler e reler, compondo compor compôrcompor o Memorial ou rever o composto, para relembrar cousas cousas passadas. EramEstas eram muitas e de feição

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diversa, desde a alegria até a melancolia, os enterramentos e as recepções diplomaticasdiplomáticas, uma braçada de folhas seccas,secas, que lhe pareciam agoraverdes agora. Alguma vez as pessoas eram designadas por um X ou ***, e elleele não acertava logo quem fossem, mas era um recreio proclaprocural-as,procurá-las, achal-asachá-las e completal-as.completá-las.

Mandou fazer um armarioarmário envidraçado, onde metteumeteu as reliquiasrelíquias da vida, retratos velhos, mimos de governos e de particulares, um leque, uma luva, uma fita e outras memoriasmemórias femininas, medalhas e medalhões, camafeus, pedaços de ruinasruínas trazidas de Roma, a de Roma e Greciagregas e romanas, uma infinidade de

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cousas que não nomeio, para não encher papel. As cartas não estavam lá, viviam dentro de uma mala, catalogadas por letras, por cidades, por linguas,línguas, por sexos. Quinze ou vinte davam para outros tantos capituloscapítulos e seriam lidas com interesse e curiosidade. Um bilhete, por exemplo, um bilhete encardido ,e sem orthographia nem data, moço como os bilhetes velhos, assignadoassinado por iniciaes,iniciais, um M. e M et um P. P, que elleele traduzia com saudades. Não vale a pena dizer o nome; melhor é calal-o.nome.

 
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CapituloCapítulo XXXIII

Tambem a solidão cança Tudo o A solidão tambem cança.A solidão também cansa.

Mas Tudotudo cança,cansa, até a solidão. AyresAires entrou a sentir uma ponta de aborrecimento; se não é que o costumebocejava, cochilava, tinha sede de gente viva e extranha viva, extranhaviva, estranha, qualquer que fosse, deliciosa ou insipida. Met alegre oupesada ou agil.alegre ou triste. Met tia se tia-sealegre ou triste. Metia-se por bairros excentricos,excêntricos, trepava aos morros, ia ás e/i\grejas ás egrejasàs igrejas novelhas, ásàs ruas novas, áà Copacabana e áà Tijuca. O mar alliali, aqui o mattomato e a vista accordaramacordavam nellenele uma infinidade de ecos, que pareciam as

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propriaspróprias vozes antigas. Tudo isso escrevia, ásàs noites, para se fortalecer no propositopropósito da vida solitaria.solitária. Mas não ha propositohá propósito contra a necessidade. A gente extranha tinha a vantagem

A gente extranha tinha a vantagemA gente estranha tinha a vantagem de lhe tirar a solidão lhe semsolidão, sem lhe dar a conversação. As visitas quede rigor que elleele fazia eram poucas, breves e apenas falladasfaladas. MasE tudo isso foram fôram os primeiros passos. A pouco e pouco tornou o gostosentiu o sabor dos costumes velhos, a nostalgia das salas, a saudade de/o\do homens homensriso, e não tardou que o aposentado da diplomacia fosse reintegrado no emprego da reintegraçãorecreação. A solidão, tanto no texto biblicobíblico, como na traducçãotradução

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do padre, era archaica.arcaica. AyresAires trocou-lhe uma palavra e o sentido: «Alonguei-me fugindo, e morei entre a gente.»

Assim se foi o lemma programmaprograma da vida nova. Não é que elleele ja a não entendesse nem amasse, ou que não aa não praticasse ainda alguma vez, a espaços, como se faz uso de um remedioremédio que obriga a ficar na cama ou na alcova; mas, convaleciasarava depressa e tornava ao ar livre. Queria ver a goutra gente, ouvil-a, cheiral-a, gostal-a, apalpal-a, applicarouvi-la, cheirá-la, gostá-la, apalpá-la, aplicar todos os sentidos a um mundo que sabiapodia matar o tempo, o immortalimortal tempo.

 
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CapituloCapítulo XXXIV

Incontentavel.InexplicavelInexplicavel.Inexplicável.

Assim o deixamos deixámos, ha p apenas dous capitulos,capítulos, a um canto da sala da gente Santos, em conversação com as senhoras. Hasde Has deHás de lembrar-te que Flora não despegava os olhos delle, anciosadele, ansiosa de saber porquepor que é que a achava incontentavelinexplicavel.inexplicável. A palavra rompia furava-lherasgava-lhe o cerebro,cérebro, ferindo sem penetrar. Incontentavel Ine InexplicavelInexplicável que era? Que se não contenta,explica, sabia; mas que se não contenta deexplica porqueporquê? Provavelmente,

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de nada; mas porque é que se não contentaria de nada?

Quiz perguntal-oQuis perguntá-lo ao conselheiro, mas não achou occasião,ocasião, e elleele saiu cedo. A primeira vez, porém, que AyresAires foi a S.São Clemente, Flora pediu-lhe familiarmente o obsequioobséquio de uma explicaçãodefinição mais desenvolvida. AyresAires sorriu e pegou nas/a\na mão da mocinha, que estava de pé. Foi só o tempo de inventar esta resposta:

− Incontavel/tentavel\ − Inexplicavel– Inexplicável é o nome que sepodemos dar n/ao\saos artistas que pintam sem acabar de pintar. Botam tinta, mais tinta, outra tinta, pouca tmuita tinta, novapouca tinta, nova tinta, e nunca lhes

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muita tinta, nova tinta, e nunca lhes parece que a arvoreárvore é arvoreárvore, nem a choupana choupana. Se se trata então de gente, adeus. Por mais que os olhos da figurara/a\ figura riam,falem, sempre esses pintores cuidam que elleseles não dizem nada. E retocam com tanta paciencia,paciência, que alguns morrem entre dous olhos, outros matam-se de desespero.

Flora achou a explicação obscura; e tu, amiga minha leitora, apezar dese acaso és mais velha e finmais fina que ellaela, pode póde ser que não aa não aches mais clara. ElleEle é que não accrescentouacrescentou nada, para não ficar incluidoincluído entre os artistas daquelladaquela castaespecie.espécie. Bateu paternalmente

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na palma da mão de Flora, e perguntou pelos estudos. Os estudos iam bem; como é que não iriam bem os estudos? E sentando-se ao pé delle,dele, a mocinha confessou que tinha ideia justamente de apprenderaprender desenho e pintura, mas se havia de pôr tinta de mais ou de menos, e acabar não pintando nada, melhor seria ficar só na musicamúsica. A musicamúsica ia bem com ellaela, o francez tambemfrancês também, e o inglez.inglês.

− Pois só a musicamúsica, o inglezinglês e o francez,francês, concordou AyresAires.

− Mas o senhor promettepromete que não me achará incontentavel, ?inexplicavel?inexplicavel?inexplicável? pergunta ellaela com doçura?doçura.

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Antes que elleele respondesse, entraram entrarám na sala d/o\sos dous gemeos.gêmeos. Flora no primeiroesqueceu a um assumptoassunto por outro, e o velho pelos rapazes. AyresAires não se demorou mais que o tempo de a ver rir com elleseles, e sentir al em si alguma cousa parecida com com remorsos. Remorsos de envelhecer, creio.

 
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CapituloCapítulo XLIXXXV

Em volta da moça.

Já então os dous gemeosgêmeos cursavam, um as/a\a aulasFaculdade de d/D\ireito emDireito, em S.São Paulo,Paulo; outro, a Escola de Medicina, no Rio. Eram fériasNão tardaria muito que saissemsaíssem formados e promptos,prontos, um para defender o direito e o torto da gente, outro para ajudal-aajudá-la a viver e a morrer. Todos os contrastes estão no homem.

Não era tanta a politicapolítica que os fizesse esquecer Flora, nem tanta Flora que os fizesse esquecer a politicapolítica. TambemTambém não eram taestais as duas que prejudicassem estudos e recreios. Estavam na edadeidade em que tudo se combina sem quebra dade essenciaessência de cada cousa. Lá que viessem a amar a pequena com egualigual força é o que se podia concluir suspeitaradmittiradmitir desde já, sem ser preciso que ellaela os attrahisseatraísse de v

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vontade. Ao contrario,contrário, Flora ria com ambos, sem rejeitar nem acceitaraceitar especialmente nenhum; pode póde ser até que nem percebesse nada. Paulo vivia mais tempo ausente. Quando tornava pelas férias, como que a achava mais cheia de graça. Era então que Pedro multiplicava as suas finezas para se não deixar vencer do irmão, que vinha chei prodigo dellas.pródigo delas. E Flora recebia-as todas com o mesmo rosto amigo.

Note-se, − eNote-se – e este ponto deve ser tirado áà luz, — note-se que os dous gemeosgêmeos continuavam a ser parecidos e eram cada vez mais esbeltos. Talvez perdessem por estestando juntos, porque

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a semelhança levava adiminuia emdiminuía em cada um dellesdeles a feição originapessoal. De restoDemais, Flora simulava ásàs vezes confundil-osconfundi-los, para rir com ambos. E dizia a Pedro:

− Dr. Paulo!

E dizia a Paulo:

− Dr. Pedro!

Em vão elleseles mudavam mudávam da esquerda para a direita e da direita para a esquerda,. Flora mudava os nomes tambemtambém, e os tres treztrês acabavam acabávam rindo. A familiaridade desculpava aa acçãoação e crescia com ellaela. P Como PedroPaulo gostava mais de conversa que de piano, Florapiano; Flora conversava e. Pedro ia mais com o piano que com a conversa, Floraconversa; Flora tocava. Ou então fazia

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ambas as cousas, e tocava falando, soltandosoltava a rédea aos dedos e á lingua.à língua.

TaesTais artes, postas ao serviço de taestais graças, po eram realmente de entonteceraccenderacender os gemeosgêmeos, e foi o que succedeusucedeu pouco a pouco. A mãe delladela pode cuido que percebeu alguma cousa,cousa; a principio, mas nãomas a principio nãomas a princípio não lhe deu gragrande cuidado. TambemTambém ellaela foi menina e moça, tambemtambém se dividiu a si si sem se dar a ningunada a ninguem.nada a ninguém. Pode Póde ser até que, a seu principioparecer, fosse um exercicio necessarioexercício necessário aos olhos do espiritoespírito e da cara. A questão é que estes se não corrompessem, nem se deixassem

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ir atrazatrás de cantigas, como diz o povo, que assim exprime os feitiços de Orpheu.Orfeu. Ao contrario,contrário, Flora é que fazia de Orpheu,Orfeu, ee ellaela é que era a cantiga. Opportunamente,Oportunamente, escolheria a um dellesdeles, pensava a mãe.

A intimidade tinha grandes intervallosintervalos , grandes, alemalém das ausenciasausências obrigadas de Paulo. ApezarApesar de não sair daqui,sair, Pedro nem sempre a buscava,não a buscava sempre, nem ellaela ia muita vez áà casa da praia. Não se viam dias e dias. Que pensassem alguum no outro, é possivel, possivel;possível; mas p não possuo o menor documento disto. A verdade é que Pedro tinha os seus companheiros

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de escola, os namoros de rua e de aventura, os partidos de theatro,teatro, os passeios áà Tijuca e outros arrabaldes. De restoAo demais, os dous gemeosgêmeos estavam ainda no ponto de fallarfalar delladela nas cartas, louval-a, descrevel-a,louvá-la, descrevê-la, dizer mil cousas doces, sem ciume.ciúme.

 
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CapituloCapítulo XXXVI

A discordiadiscórdia não é tão feia como se pinta.

A discordiadiscórdia não é tão feia , como se pinta, meu amigo. Nem feia, nem esteril.estéril. Conta só os livros que tem produzido, desde Homero, até cá, sem excluir... Sem excluir qual? Ia dizer que este, mas a ModestiaModéstia acena-me de longe que pare aqui. Paro aqui; e viva a ModestiaModéstia, que mal supportasuporta a letra capital que lhe ponho, a letra e os vivas, mas ha de ir com ellaela e com elleseles. Viva a ModestiaModéstia, e excluamos este

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excluamos este livro, fiquem só oslivro; fiquem só os grandes livros epicos eépicos, e tragicos,trágicos, a que a d/D\iscordiaDiscórdia deu vida, e digam-me se tamanhos effeitosefeitos não provam a grandeza da causa. Não, a discordiadiscórdia não é tão feia como se pinta.

Teimo nisto para que as almas sensiveissensíveis não comecem de tremer pela moça ou pelos rapazes. Não ha mister tremer, tanto mais que a discordiadiscórdia dos dous começou por um simples accordo,acordo, , nestanaquellanaquela noite,. vindo da casa della para a sudelles. TinhCosteaCosteavam a praia, calados, pensando só, até que ambos, como se falassem para si, soltaram esta palavraphrasefrase unica:única:

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− Está ficando bem bonita.

E voltando-se uma para outro:

− Quem?

Ambos sorriram; acharam pico ao simultaneosimultâneo da reflexão e da pergunta. Sei que este phenomenofenômeno é tal qual o do cap. capitulocapítulo XXV, quando elleseles disseram da idade edade, mas não me culpem a mim; eram gemeos,gêmeos, podiam ter o falar gemeo.gêmeo. O principal é que não se amofinaram amofináram; não era ainda amor o que sentiam. Cada um expozexpôs a sua opinião ácercaacerca das graças da pequena, o gesto, a voz, os olhos e as mãos, tudo com tão boa sombra, que excluiaexcluía a ideia de rivalidade. Quando muito, divergiam na escolha da melhor prenda, que para

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Pedro eram os olhos, e para Paulo a figura,figura; mas como acabavam achando um total harmonico,harmônico era visto que não brigavam por isso. Nenhum delles attribuiadeles atribuía ao outro a cousa vaga ou o que quer que era que principiavam a sentir, e mais pareciam esthetasestetas que namoradosenamorados.A discordia era ainda De restoAliás, a mesma politicapolítica os deixou em paz essa noite: não brigaram por ellaela. Não é que não sentissem alguma cousa opposta, áoposta, à vista da praia e do logar, ceu quecéu, que estavam deliciosos. Lua cheia, aguaágua quieta, vozes confusas e esparsas, algum tilburytílburi a passo ou a trote, segundo ia vasiovazio ou com gente. Tal ou qual brisa fresca.

A imaginação os levou então ao futuro, a um futuro brilhante, como elles noelleele em aé

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em tal edade.idade. Botafogo teria um papel historico, − uma historico, umahistórico, uma enseada imperial para Pedro, uma Veneza republicana para Paulo, mas sem doge, nem conselho dos dez, ou então um doge com outro titulo,título, um simples presidente, que se casaria em nome do povo com este pequenino Adriatico.Adriático. Talvez o doge fosse elleele mesmo. Esta possibilidade, apezarapesar dos annosanos verdes, enfunou a alma do moço. Paulo viu-se áà testa de uma republica,república, em que o antigo e o moderno, o futuro e o passado se mesclassem, uma Veneza á beira da do canal, uma Roma RomaRoma nova, uma Convenção Nacional, a Republica FrancezaRepública Francesa oue os Estados-UnidosEstados Unidos da America.América.

237 238

Pedro, áà sua parte, construiaconstruía a meio caminho umcomo um palaciopalácio para a representação nacional, outro para o imperador, e via-se a si mesmo ministro, e presidente do conselho. Falava, dominava o tumulto e as opiniões, arrancava um voto áà camara Camaracâmara dos deputados,deputados ou então expedia um decreto de dissolução. É uma minucia,minúcia, mas merece inseril-ainseri-la aqui: Pedro, sonhando com o governo, pensava especialmente nos decretos de dissolução. Via-se em casa, com o actoato assignado,assinado, fer referendado, copiado, mandado aos jornaesjornais e ásàs camaras Camarascâmaras, lido pelos secretarios, archivadosecretários, arquivado nas secretariasna secretaria, e os deputados

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saindo cabisbaixos, alguns resmungando, outros irados. Só elleele estava tranquillo,tranquilo, no gabinete, recebendo os amigos que iam comprimental-ocumprimentá-lo e pedir os recados para a provincia.província.

TaesTais eram as grandes pinceladas da imaginação dos dous. As estrellasestrelas recebiam no ceucéu todas todastodos os pensamentos dos rapazes, a lua seguia quieta e a vaga da praia estirava-se com a preguiça do costume. Voltaram a si ao pé de casa. Tal ou qual impulso quiz leval-osquis levá-los a dissentirdiscutir ácercaacerca do tempo e da noite, da temperatura e da enseada. Algum murmuriomurmúrio vago

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pode póde ser que lhes fizesse mover os beiços e começar a quebrar o silenciosilêncio, mas o silenciosilêncio era tão augusto que concordaram concordáram em respeital-o.respeitá-lo. E logo acharam, de acháram de si para si, que a lua era esplendida,esplêndida, a enseada bellabela e a temperatura divina.

 
247-a240

CapituloCapítulo XLIIVXXXVIII

DesaccordoDesacordo no accordo.acordo.

Lá me ia esquecendo Não esqueça d dizer que, em 1888, uma questão grave e gravissimagravíssima , os fez concordar tambemtambém, ainda que por diversa razão. A data explica o factofato: foi a emancipação dos escravos. Estavam então longe um do outro, mas a opinião uniu-os.

A differença unicadiferença única entre elleseles dizia respeito áà significação da reforma, que para Pedro era um actoato de justiça, e para Paulo era

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o inicioinício da revolução. ElleEle mesmo o disse, concluindo um discurso em S.São Paulo, no dia 20 de maio: «A abolição é a aurora da liberdade,liberdade; esperemos o sol; emancipado o preto, resta emancipar o branco.»

Natividade ficou attonitaatônita quando leu isto; pegou da pennapena e escreveu uma carta longa e maternal. Paulo respondeu com trinta mil expressões de ternura, declarando no fim que tudo lhe poderia sacrificar, inclusive a vida e até a honra; as opiniões é que não. « «Não, mamãe; as opiniões é que não.»

− As opiniões é que não, repetiu Natividade acabando de ler a carta.

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Natividade não acabava de entender os sentimentos do filho, ellaela que tantaalguma vez sacrificárasacrificara as opiniões aos principios,princípios, e continuoucomo no caso de AyresAires, e continuou a viver sem macula.mácula. Como então não sacrificar...? Não achava a Não achava explicação. Relia a phrasefrase da carta e a do discurso; tinha medo de o ver perder a carreira politicapolítica, se era a politicapolítica que o faria grande homem. «Emancipado o preto, resta emancipar o branco,» branco», era uma ameaça ao imperador e ao imperio.império.

Estava então no jardim, no banco de madeira e olhava para o chão, parecendo-lhe que a areia tinha a mesma phrase escripta com folhas e gravetos; mas era illusão

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Não atinou... Nem sempre as mães atinam. Não atinou que a phrasefrase do discurso não era propriamente do filho; não era de ninguem. Alguemninguém. Alguém a proferiu um dia, em discurso ou conversa, em gazeta ou em viagem de estrada de terraterra ou de mar. Outrem a repetiu, até que muita gente a fesfez sua. Era nova, era energica,enérgica, era expressiva, ficou sendo patrimonio commum.patrimônio comum.

Ha phrasesHá frases assim felizes. Nascem modestamente, como a gente pobre; quando menos pensam, estão governando o mundo, áà semelhança das ideias. As propriaspróprias ideias nem sempre conservam o nome do pae;pai;

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muitas apparecem orphãs,aparecem orfãs nascidas de nada e de ninguem.ninguém. Cada um pega dellasdelas, verte-as como pode póde, e vae leval-as ávai levá-las à feira, onde todos as temtêm por suas.

 
245

CapituloCapítulo XXXVIII

Chegada a proposito.propósito.

No/Q\uando,Quando, ásàs duas horas da tarde do dia seguinte, Natividade se metteumeteu no tramwaybonde, para ir na não sei que compras na rua do Ouvidor, levava a phrase comsigo.frase consigo. O resto deA vista da enseada não a distraiu, nem a gente que passava, nem os incidentes da rua, nada; a phrasefrase ia de/i\antediante e dentro della,dela, com o seu aspecto e somtom de ameaça. No Cattete, alguemCatete, alguém entrou de salto, sem

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fazer parar o vehiculo.veículo. AdivinhasAdivinha que era o conselheiro; adivinhasadivinha tambemtambém que, posto o pé no estribo, e vendo logo adiante Nati a nossa amiga, caminhou para lá rapido, e aceitou rapido e acceitourápido e aceitou a ponta do banco que ellaela lhe offereceu.ofereceu. Depois dos primeiros comprimentos:cumprimentos:

− Pareceu-me vel-avê-la olhar assustada, disse AyresAires.

Naturalmente; nãoNaturalmente, não imaginei que fosse capaz deste actoato de gymnastica.ginástica.

− Questão de costume. As pernas saltam por si mesmas. Um dia, deixam-me cair, as rodas rodam passam por cima...

− Seja− Fosse como fosse, chegou a proposito.– Fosse como fosse, chegou a propósito.

246-a

− Acertou; sente-se

− Sente-se aqui. Porque Mas porque suppoz isso?

− Chego sempre a proposito.propósito. Já lhe ouvi isso, uma vez, ha muitos annos,anos, ou foi a sua irmã... Ora, espere, não me esqueceu o motivo; fallavam, creio, fallavamcreio que falavam da cabocla do Castello;/.\Castello.Castelo. n/N\ãoNão se lembra de uma tal ou qual cabocla que morava no CastelloCastelo, e adivinhava a sorte da gente? Eu estava aqui de licença, e ouvi dizer cousas do arco da velha. Que ComoEu fim terá levado? velha. Como eu sempre tive fé em Sybillas,Sibilas, acreditei na cabocla;/.\cabocla. ainda mais por ser nacional. Que fim lev levou? Casou, Morreu, talvez; ou morresse... casou... talvez casasse… Que fim levou ella?Que fim levou ela?

Natividade olhou para elleele, como receiandoreceando

252 247

se teria adivinhado então a consulta que ellaela fez á cabol/c\la.á cabocla.à cabocla. Pareceu-lhe que não, sorriu e chamou-lhe incredulo. Ayresincrédulo. Aires negou que fosse incredulo;incrédulo; ao contrario,contrário, sendo tolerante, professava virtualmente todas as crenças . deste mundo. E E concluiu:

− Mas, emfim,enfim, porquepor que é que chego a propositopropósito?

Ou o passado, ou a pessoa, com as suas maneiras discretas e espiritoespírito repousado, ou tu ambas as cousastudo isso juntas/o\,junto, davam agoradava a este homem, relativamente a Soledade esta senhora,esta senhora, uma confiança , que ellaela não achava em agora em ninguemninguém, ou acharia em poucos. Falou-lhe u/d\ede uma papel confidencia,confidência, um papel , que não mostraria ao marido.

25/4\8

− Quero um conselho, do conselheiro; e demais, para que incommodarincomodar a meu marido? Quando muito, contarei o negocionegócio a mana PerpetuaPerpétua. A Agostinho acho melhor não dizer nada.Acho melhor não dizer nada a Agostinho.

AyresAires concordou que não valia a pena aborrecel-o,aborrecê-lo, se era caso disso, e esperou. Soledade ConceiçãoNatividade, sem falar da cabocla, contou primeiro a rivalidade dos filhos, já manifesta em politicapolítica, e, tratandoe tratando especialmente de Paulo, mostrou-lhe arepetiu-lhe a phrase darepetiu-lhe a frase da carta e perguntou o que cumpria compria fazer mais util.útil. AyresAires entendeu que eram ardores da mocidade. Que não teimasse; teimando, elleele mudaria de palavras, mas não de sentimentos.

25/4\9

− Então crê que Paulo será sempre isto,? pergunpergu

− Sempre, não digo; tambemtambém não digo o contrario. Baroneza,contrário. Baronesa, a senhora exige re respostas definitivas, mas diga-me o que é que ha definitivo neste mundo, a não ser o voltarete de seu marido? Esse mesmo falha. Ha quantos dias não sei o que é uma licença? É verdade que não tenho apparecido.aparecido. E depois, o prazer da conversação paga bem o das cartas. Aposto que os homens casados que cá vem não são da minha opinião?lá vão lá vão são de outro pa parecer?

− Talvez,. respondeu ella com os olhos fixos.

− Só os solteirões podem avaliar as ideias das mulheres. Um viuvoviúvo sem filhos, como

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eu, vale por um solteirão; minto, aos sessenta , e tantos annos,annosanos, como eu, vale por dous ou trez.três. Quanto ao jovenjovem Paulo, não pense mais no discurso. TambemTambém eu discursei em rapaz.

− Já cuidei em casal-os.casá-los.

− Casar é bom, assentiu Camargo.AyresAires

− Não digo casar ja, mas daqui a dous ou trez annos.três anos. Talvez faça antes uma viagem com elleseles. Que lhe parece? Vamos lá, não me responda repetindo o que eu digo. Quero o seu pensamento verdadeiro. Acha que uma viagem...?viagem?...

− Acho que uma viagem...

− Acabe.

− As viagens fazem bem, mormente na

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e/i\dade edade dellesdeles. Formam-se para o annoano, não é? Pois então! Antes de começar qualquer carreira, casados ou não, é utilútil ver outras terras... Mas que necessidade tem a senhora de ir com elleseles?

− As mães...

− Mas eu tambemtambém (desculpe interrompel-ainterrompê-la) mas eu tambemtambém sou seu filho. Não acha que o costume, o bom rosto, a graça, a affeiçãoafeição e todas as prendas grisalhas que a adornam compõem uma especieespécie de maternidade? Eu confesso-lhe que ficaria orphão.órfão.

− Pois venha comnosco.conosco.

− Ah! viscondessa,baroneza,baronesa, para mim já não ha mundo que valha um bilhete de passagem. Vi p tudo por varias variasvárias

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linguas.línguas. Agora o mundo começa aqui no caescais da GloriaGlória ouou na rua do Ouvidor e acaba no am cemitecemitério de S.São João Baptista. Ouço que ha uns mares tenebrosos para os lados da Ponta do Caju Cajú, mas eu sou um velho incredulo,incrédulo, como a senhora dizia ha pouco, e não aceito acceito essas noticiasnotícias sem prova cabal e visual, e para ir averigual-as,averiguá-las, faltam-me pernas.

− Sempre gracioso! Não as vi treparem agora? Sua irmã disse-l/m\edisse-me outro dia que o senhora anda como aos quartrinta annosanos.

− Rita exagera. Mas, voltando áà viagem, a senhora ainda não comprou os bilhetes?

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− Não.

− Não os encommendouencomendou sequer?

TambemTambém não.

− Então, pensemos em outra cousa. Cada dia traz a sua occupação, quanto mais as semanas e os mezes.meses. e ess Pensemos em outra cousa, e deixe lá o Paulo pedir a republica.república.

Natividade achou comsigoconsigo que elleele tinha razão; depois, pensou em outra cousa, e esta foi a ideia do principio.princípio. Não disse logo o que era; preferiu conversar alguns minutos. Não era difficildifícil com este sujeito. Uma das suas qualidades era fallarfalar com mulheres, sem descair na banalidade nem subir ásàs nuvens; ou trocaria tinh tinha um modo

254 219 254 234

particular, que não sei se estava na ideia, se no gesto, se na palavra. Não é que fallasse falasse mal de ninguemninguém, e aliás seria uma distracção.distração. Quero crer crêr que não dissesse mal por indifferençaindiferença ou cautella;cautela; provisoriamente, ponhamos caridade.

− Mas, a senhora ainda me não disse o que queria de mim, alemalém do conselho;. o/O\uOu não quer mais nada nada?

− Custa-me pedir-lhe.

− Peça sempre.

− Sabe que os meus dous gemeosgêmeos não combinam em nada, ou só em pouco, por mais esforços que eu tenha feito para os trazer a tal ou qualcerta harmonia. Agostinho

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não me ajuda; tem outros cuidados. Eu mesma ja não me sinto com forças, e então pensei que um amigo, um homem moderado, habil, um homem de sociedade, habil,hábil, fino, cautelloso, intelligente, instruido...cauteloso, inteligente, instruído...

− Eu, em summa?suma?

− Adivinhou.

− Não adivinhei; é o meu retrato em pessoa. Mas então que lhe parece que possa fazer?

Pode Póde corrigil-oscorrigi-los por boas maneiras, fazel-osfazê-los unidos, ainda quando discordem, e que discordem pouco ou nada. Não imagina; parece até p propositopropósito. Não discordam da cor côr da lua, por exemplo, mas aos onze

257 231256 266

annosanos, Pedro descobriu que as sombras da lua representavam uma carneiroborboleta e Paulo um elephanteeram nuvens, e Paulo que eram falhas da nossa vista, e atracaram-se; eu é que os separei. Imagine em politicapolítica...

− Imagine em amores, diga logo; mas não pro é propriamente para este caso...

− Oh! não!

− Para os outros é igualmente egualmente inutil,inútil, mas eu nasci para servir, ainda inutilmente. Baroneza, Viscondessa,Baroneza,Baronesa, o seu pedido equivale a nomear-me aio ou preceptor... Não faça gestos; não me dou por diminuido.diminuído. Contanto Comtanto que me pague os ordenados... E não se assuste; peço pouco, pague-me em

fólio repetido
257

palavras; as suas palavras são de ouro. Já lhe disse que toda a minha acçãoação é inutilinútil.

Porque?Porquê?

− É inutilinútil.

− Uma pessoa de autoridade, como o senhor, pode póde muito./,\muito, Com comtantocontanto que os ame, por que ellesporque eles são bons, creia. Conhece-os bem?

− Pouco.

− Conheça-os mais e verá.

AyresAires concordou rindo. Para Natividade valia por uma tenta tentativa nova. Confiava na acçãoação do conselheiro, e para dizer tudo... Não sei se diga... Digo. Natividade contava com a antiga inclinação do velho diplomata.

263258

As canscãs não lhe tirariam o desejo de a servir. Não sei quem me lê nesta occasião.ocasião. Se é homem, talvez não entenda logo, mas se é mulher pode sercreio que entenderá. Se ninguemninguém , entender, paciencia;paciência; baste saber que elleele prometteuprometeu o que ella quizela quis, e tambemtambém prometteuprometeu calar-se; foi a condição que ellaa outra lhe poz.pôs. Tudo isso polido, sincero e incredulo.incrédulo.

 
259

CapituloCapítulo XXXIX

Um gatuno.

Chegaram ao largo da Carioca, ap apearam-se e despediram-se; ellaela entrou pela rua da CariGonçalves Dias, elleele enfiou pel pela da Carioca. No meio desta, AyresAires encontrou um magote de gente , parada, logo depois andando naem direcçãodireção ao largo. AyresAires quizquis arrepiar caminho, não de medo, mas de horror. Tinha horror áà multidão. Viu que a gente era pouca, cincoentacinquenta ou sessenta pessoas, e ouviu que bradava

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contra a prisão de um homem. Entrou n’umnum corredor, áà espera que o magote passasse. Duas praças de policiapolícia traziam o preso pelo braço. De quando em quando, este resistia, e então era preciso arrastal-oarrastá-lo ou forçal-oforçá-lo por outro methodo.método. Tratava-se, ao que parece, do furto de uma carteira.

− Não furtei nada! bradava o preso detendo-se o passo. É falso! Larguem-me! sou um cidadão livre! Protesto! protesto!

− Siga para a estação!

− Não sigo!

− Não podesiga! bradava a gente anonyma.anônima. Não podesiga! não podesiga!

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Uma das praças quizquis explicarconvencer áa multidão que era verdade, que o sujeito furtárafurtara uma carteira, e o sossego desassocegodesassossego pareceu minorar um pouco; mas, indo a praça a andar com a outra e o preso, − cada uma pegando-lhe um d dos braços, − a braços, a multidão recomeçou a bradar «que «não podia» e o homemcontra a violencia. Ocontra a violência. O ,preso sentiu-se animado, e, e ora lastimoso, ora aggressivo,agressivo, buscava animar convidava a defeza.defesa. Foi então que uma dasa outra praças/a\praça desembainhou a espada para fazer um claro. A gente voou, não airosamente, como a andorinha ou a pomba, em busca do alimentoninho ou do alimento,

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voou de atropello,atropelo, pula aqui, pula alliali, pula acolá, para todos os lados. A espada entrou na bainha, e o preso seguiu com as praças. Mas logo os peitos tomaram vingança das pernas, e um bradoclamor ingente, largo, desaffrontado,desafrontado, encheu a rua e a alma do preso. A multidão fez-se outra vez compacta e caminhou para a estação policial. AyresAires seguiu em sen e direcção á praça Tiradentesseguiu caminho.

A vozeria morreu pouco a pouco, e AyresAires entrou na Secretaria do Interior ImperioImpério. Não achou o ministro, parece, ou a conferenciaconferência foi curta. Certo é que, saindo áà praça, encontrou partes do magote que tornavam commentandocomentando

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a prisão e o ladrão. Não diziam ladrão, mas gatuno, fiando que era mais doce, e tanto bradavam ha pouco contra a acçãoação das praças, como riam agora das lastimaslástimas do preso.

− Ora o cabrasujeito!

Mas então...?então?... perguntarás tu. AyresAires não perguntou nada. Ao cabo, havia um fundo de justiça naquellanaquela manifestação dupla e contradictoria;contraditória; foi o que elleele pensou. Depois, imaginou que a grita da multidão protestante era filha de um velho instinctoinstinto de resistencia áresistência à autoridade. Advertiu que o homem, uma vez cri/e\adocreadocriado, desobedeceu logo ao Creador,Criador, que aliás lhe dera um paraisoparaíso para viver;

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mas não ha paraisoparaíso que valha o gosto da opposição.oposição. Que o homem se acostume ásàs leis, vá; que incline o collo ácolo à força e ao bel-prazer, vá tambemtambém; é o que se dá com a planta, quando sopra o vento. Mas que abençoe a força e cumpra as leis sempre, sempre, sempre, é violar a liberdade primitiva, a liberdade do velho Adão. Ia assim cogitando o conselheiro AyresAires. , e a descendo a caminho de S. Clemente

Não lhe attribuamatribuam todas essas ideias. Pensava assim, como se falasse alto, áà mezamesa ou na sala de alguemalguém. Era um processo de criticacrítica , mansa e delicada, tão convencida em apparencia,aparência, que algum

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ouvinte, áà cata de ideias, acabava por lhe apanhar algumauma ou duas... e não

Ia a caminho de S. Clemente quandodescer pela rua SéteSete de Setembro, quando a lembrança da vozeria trouxe a de outra, maior e mais remota.

 
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CapituloCapítulo XLIV

Recuerdos.

Essa outra vozeria maior e mais re remota não caberia aqui, e não a aponto senão parase não fosse a necessidade de explicar o gesto repentino com que AyresAires parou na calçada. Parou, tornou a si e continuou a andar , com os olhos no chão out outra e a alma em Caracas. Foi em Caracas, onde elleele serviaservira na qualidade de addidoadido de legação. Estava em casa, de palestra com uma actrizatriz da moda, pessoa chistosa e garrida. De repente, ouviram um

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garrida. De repente, um clamor surdo ouviram um clamor grande, t vozes tumultuosas, vibrantes, crescentes...

— Que rumor é este, Carmen? perguntou elleele entre doc/uas\duas beijos carinhos. caricias.carícias.

— Não se assuste, amigo meu; é o governo que cae.cai.

— Mas eu ouço acclamações...aclamações...

— Então é o governo queque sobe. Não se assuste. Amanhã é tempo de ir comprimental-ocumprimentá-lo.

CamargoAyresAires deixou sedeixou-se ir rio abaixo daquella memoriadaquela memória velha, que lhe surdia agora do alarido de cincoentacinquenta ou sessenta pessoas. Essa l especieespécie de lembranças tinham/a\tinha mais effeito nelleefeito nele que outras. Dahi o trabalho gosto em recompôrRecompoz a hora, o logarRecompôs a hora, o lugar

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e a pessoa da sevilhana. Carmen era de SevilhaSevilla. O ex-rapaz ainda agora recordava a cantiga popular que lhe ouvia, no momentoá despedida,à despedida, depois de rectificarretificar as ligas, compor compôr as saias, e cravar o pente no p cabellocabelo, − no momento em que ia deitar a mantilha, meneando o corpo com graça:

TieneTienen las sevillanas,

En la mantilla,

UmUn letrero que dice:

¡Viva Sevilla!

Não posso dar a toad toada, mas AyresAires ainda a trazia de cór,cor, e vinha a repetil-a comsigo,repeti-la consigo, vagarosamente, como ia andando. Outrosim,Outrossim, meditava na ausenciaausência de vocação diplomaticadiplomática.

269276

A ascenção de um governo, — de um regimenregímen que fosse, — com as suas ideias novas, os seus homens frescos, leis e acclamações,aclamações, valiam menos para elleele que o riso e da jovenjovem comediante. Onde iria ellaela? E A ideia lembrançasombra da moça varreu tudo o mais, a praia, a rua, a gente, o gatuno, para ficar só deantediante do velho AyresAires, dando deaos quadris e cantarolando a velha trova andaluza:

TieneTienen las sevillanas

En la mantilla...

 

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CapituloCapítulo XLIII

Caso do burro.

Se AyresAires obedecesse ao seu gosto, e eu a elleele, nem elleele iria jantar a S. Clemente continuaria a andar, nem eu começaria este capitulo; ficariamoscapítulo; ficaríamos no outro, sem n nunca mais acabal-o.acabá-lo. Mas não ha n/h\a ha na memoria memória que dure, se outro negocionegócio mais forte puxa pela attenção,atenção, e um simples burro fez desa desapparecerdesaparecer Carmen e a sua trova.:

Tiene las sevillanas

En la mantilla...

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Foi o caso que uma carroça estava parada, no meio da ruaao pé da travessa de S. Francisco,ao pé da travessa de São Francisco sem deixar passar um carro, e o carroceiro dava muita pancada no burro da carroça. Vulgar embora, este espectaculoespetáculo fez parar o nosso AyresAires, não menos condoidocondoído do burroasno que do homem. A força despendida por este era grande, porque o burro, com a sua liberdade de indiferença,asno ruminava se devia ou não deixarsair do logarlugar; mas, não obstante esta superioridade, apanhava que era o diabo. Já havia algumas pessoas paradas, mirando. Se não houvesse tambem outros vehiculos, no logar, o carro seguiria caminho, mas era tal o ajuntamento delles, que só

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desviada a carroça, poderia o carro abrir caminho.mirando. Cinco ou seis minutos durou esta situação; finalmente o burro preferiu a marcha áà pancada, e tiroupancada, tirou a carroça do logarlugar e foi andando.

Nos olhos redondos do animal leuviu AyresAires uma gr expressão profunda de ironia e paciencia.paciência. Pareceu-lhe o gesto largo de espirito invencivel.espírito invencível. Depois leu nellesneles este monologo:monólogo «Anda, patrão, atulha essa a carroça de carga para ganhar o capim de que me alimentas. Vive de pé no chão para comprar as minhas ferraduras. Nem por isso me impedirás/ias\impedirás que te chame um nome feio, se eumas eu não te

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chamo nada; ficas sendo sempre o meu querido patrão. Em quanto EmquantoEnquanto te esfalfas em ganhar a vida, eu vou pensando que o teu dominiodomínio não vale muito, uma vez que me não tiras a liberdade de teimar...

− Vê-se, quasiquási que se lhe ouve a reflexão, notou AyresAires comsigoconsigo.

Depois riu de si para si, e foi andando. InventáraInventara tanta cousa , no serviço publico,diplomatico,diplomático, que talvez ouv acabasse de inventar/sse\inventasse o monologomonólogo do burro. Ver AsAssim foi; não lhe leu nada nos olhos, a não ser a ironia e a paciencia,paciência, mas não se pôde ter que se lhes não déssedesse a esta uma forma da palavra humana, com fórma de palavra, comforma de palavra, com as suas regras de

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syntaxe.sintaxe. A propriaprópria ironia estaria acaso na retina delle.dele. O olho do homem serve de photographiafotografia ao invisivel,invisível, como o ouvido serve de eco ao silencio.silêncio. Tudo é que o dono tenha um lampejo de imaginação para ajudar a memoriamemória ea esquecer Caracas e Carmen, os seus beijos e experiencia politicaexperiência política.

 
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CapituloCapítulo XLII

Uma hypothese.hipótese.

Visões e reminiscenciasreminiscências iam assim comendo o tempo e o espaço ao ex-ministro,conselheiro, a ponto de lhe fazerem esquecer o pedido de Natividade; mas não o esqueceu de todo, e as palavras trocadas no jardim ha poucohá pouco d surdiam-lhe das pedras da rua. Considerou que não perdia muito em estudar os rapazes. Chegou a apanhar uma hypothesehipótese, especieespécie de andorinha, que avoaça entre arvores,árvores, abaixo e acima, pousa aqui,

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pousa alliali, arranca de novo um surto e toda se despeja em movimentos. Tal foi a hypothesehipótese vaga , e colorida, a saber, que se os gemeosgêmeos fo tivessem nascido delledele talvez não divergissem tanto nem nada, graças ao equilibrioequilíbrio do seu espirito.espírito. A alma do velho entrou a ramalhar não sei que desejos a retrospectivos, e a rever essa hypothesehipótese, outra Caracas, outra Carmen, elleele pai/e\,pae,pai, estes meninos seus, toda a andorinha que se dispersava n’umnum farfalhar calado g de gestos.

 
278 †277

CapituloCapítulo XLIV XLIII

O discurso.

ConceiçãoNatividade é que não teve distracção/ões\distracçõesdistrações de especieespécie alguma. Toda ellaela estava nos filhos, e agora especialmente na carta e no discurso. Começou por não dar resposta ásàs effusões politicasefusões políticas de Paulo; foi um dos conselhos do conselheiro. Quando o filho tornou pelas férias ferias tinha esquecido a carta que escrevêra.escrevera.

O discurso é que elleele não esqueceu, mas quem é que esquece os discursos que

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faz? Se são bons, a memoriamemória os grava em bronze; se ruins, deixam tal ou qual amargor que nunca mais acabadura muito. O melhor dos remedios,remédios, no segundo caso, é suppol-os excellentes,supô-los excelentes e, se a razão não acceitar acceitaaceita esta imaginação, consultar pessoas que a acceitem,aceitem, e crer crêr nellasnelas. A opinião é um velho xarope indestructivel oleo incorruptivel.óleo incorrutível.Consi

Paulo tinha talento. O discurso daquelledaquele dia podia peccarpecar aqui ou alliali por alguma emphasis,ênfase, e uma ou outra ideia vulgar e exhausta.exausta. A phrase que tanto assustou a mãe, por exemplo, não era delle como ja ficou dito no cap. XXXII ; mas de um diario da opposição. Paulo o que fez foi vestir-lhe um sentidoTinha

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talento Paulo. Em summasuma, o discurso era bom. Santos achou-o excellente,excelente, leu-o aos amigos no banco,e resolveu transcrevel-otranscrevê-lo nos jornaes.jornais. Natividade não se oppoz,opôs, mas entendia que algumas palavras deviam ser cortadas.

— Cortadas, porqueporquê? perguntou Santos, e ficou deesperando a resposta.

— Pois você não vê, Agostinho; estas palavras temtêm sentido republicano, explicou ellaela relendo a phrasefrase que a affligira.afligira.

Santos ouviu-as ler, leu-as para si, e não deixou de lhe achar razão. Entretanto, não havia de mandaras supprimir.as suprimir.

—   Pois não se transcreve o discurso.

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— Ah! isso não! O discurso é magnifico,magnífico, e não hade ha dehá de morrer em S.São Paulo; é preciso que a capit Corte CôrteCorte o leia, e as provincias tambemprovíncias também, e até não se me daria fazel-ofazê-lo traduzir em francezfrancês. Em francezfrancês, pode póde ser que fique ainda melhor.

— Mas, Agostinho, isto pode póde fazer mal áà carreira do rapaz; o i/I\mperadorimperador pode póde ser que não goste...

Pedro, que assistia ent assistia desde alguns instantes ao debate, interveiuinterveio em padocemente para dizer que nãoos receios da mãe não tinham fundamento;base; o imperador o imperador era bom pôr por a phrasefrase toda, e, a rigor, podnão differiadiferia do quemuito do que os liberaesliberais diziam em 1848.

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— Um monarchistamonarquista liberal pode póde muito bem assignarassinar esse trecho, concluiu elleele depois de reler as palavras do irmão.

— Justamente! assentiu o paepai.

ConceiçãoNatividade, que em tudo via a inimizade dos gemeosgêmeos, suspeitou que a/o\o intençãointuito de Pedro fosse justamente compromettercomprometer Paulo. Olhou para elle, a elle aele a ver se lhe descobria essa intenção torcida, mas a cara do filho tinha então o aspecto do enthusiasmo.entusiasmo. Pedro lia trechos do discurso, accentuandoacentuando as bellezas,belezas, repetindo as phrasesfrases mais felizes,novas, cantando as mais redondas, revolvendo-as na boca bôca, tudo com tão boa sombra carasombra que a mãe perdeu a suspeita, e a

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reimpressão do discurso foi resolvida. TambemTambém se tirou uma edição em folheto, e o paepai mandou encadernar ricamente sete exemplares, que levou aos ministros, e um ainda mais rico para a Pris Regente.

— Você diga-lhe, a ensinuou aconselhou Natividade, que o nosso Paulo é liberal ardente...

— Liberal de 1848, completou Santos lembrando-se daslembrando as palavras de Pedro.

Santos cumpriu tudo áà risca. A entrega se fez naturalmente, e, no palaciopalácio Isabel, a definição do «liberal de 1848,» saiu1848» saiu mais viva que as outras palavras, ou para diminuir o cheiro republicanorevolucionariorevolucionário da phrasefrase

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condemnadacondenada pela mulher, ou porque traziam/a\trazia valor historico.histórico. Quando elleele voltou a casa, a primeira cousa que lhe disse foi que a Regente perguntáraperguntara por ella,por ela, mas por maes apezar deapesar de lisongeadalisonjeada com a lembrança, Natividade quizquis saber da impressão que lhe fizera o discurso, se ja o lera lêra.

— Parece que foi boa. Disse-me que ja havia lido o discurso. Nem por isso deixei de lhe dizer que os sentimentos de Paulo eram bons; Pode que, se lhes notavamosnotávamos certo ardor, comprehendiamoscompreendíamos sempre que elleseles eram os de um liberal de 1848...

PapaePapai disse isso? perguntou Pedro.

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PorquePor que não, se é verdade? Paulo é o que se pode póde chamar um liberal de 1848, repetiu Santos querendo convencer o filho.

 
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CapituloCapítulo LI XI IV IXLIV

Pelas fériasO salmão.

Pelas férias é que Paulo soube da interpretação que o paepai dera ao imperadorá Regenteà Regente daquelledaquele trecho do discurso. Protestou contra ellaela, em casa; quiz fazel-oquis fazê-lo tambemtambém em publico,público, mas ConceiçãoNatividade interveiuinterveio a tempo. AyresAires pôz aguapôs água na fervura, dizendo ao futuro bacharel:

— Não vale a pena, moço; o que importa é que cada um tenha as a suas ideias e se bata por ellaselas, até que ellaselas se modifiquem.vençam. Agora que outros as

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interpretem mal é cousa que não deve affligirafligir o autor.

AffligirAfligir, sim, senhor; pode póde parecer qué/e\que é assim mesmo... Vou escrever um artigo a propositopropósito de qualquer cousa, e não deixarei duvidas!... duvidas…dúvidas...

— Porque — Para que ?quê? redar inquiriu . Ayres.Aires.

— Não quero que supponham...suponham...

— Mas quem duvidar/a\duvida dos seus sentimentos?

— Podem duvidar.

— Ora, qual! Em todo caso vácaso, vá primeiro almoçar commigocomigo um dia destes... Olhe, vá domingo, e seu irmão Pedro tambemtambém. Seremos tres treztrês áà mezamesa, um almoço de rapazes. Beberemos certo vinho que me deu o ministro da Allemanha...Alemanha...

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No domingo foram fôram os dous ao CatteteCatete, menos pelo almoço que pelo amphytrião.anfitrião. AyresAires era amado dos dous; gostavam de ouvil-o,ouvi-lo de interrogal-o,interrogá-lo, pediam-lhe anecdotasanedotas políticas politicas de outro tempo, descripção descripçãodescição de festas, noticiasnotícias de moças antigas passadas, agora velhas, ou mortas.sociedade.

— Vivam os meus dous jovens, disse o conselheiro, com um arvivam os meus dous jovens que não esqueceram o amigo velho. PapaePapai como está? E mamãe?

— Estão bons, disse umPedro.

Paulo accrescenta/ou\accrescentouacrescentou que ambosambos lhe mandavam lembranças.

— E tia PerpetuaPerpétua?

TambemTambém está boa, disseram ambos disse Pedro Paulo.

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— Sempre com a homoepathiahomeopatia e as suas historiashistórias do Paraguay, accrescentouParaguai, acrescentou Pedro.

Pedro estava alegre, Paulo preoccupado.preocupado. Depois das primeiras saudações e noticias,notícias, AyresAires notou essa differença,diferença e achou que era bom para tirar a monotonia da semelhança; mas emfim não mas, emfim, nãomas, enfim, não queria caras fechadas, e indagou do estudante de direito o que é que elleele tinha.

— Nada.

— Não pode póde ser; acho-lhe um ar meio sorumbatico.sorumbático. Pois eu accordeiacordei disposto a rir, e desejo que ambos riam commigocomigo.

Paulo rosnou uma ou duas palavras/a\palavra que nenhum dellesdeles entendeu e saccousacou do bolso um

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maço de tirasfolhas de papel. Era um artigo...

— Um artigo?

— Um artigo em que tiro todas as duvidasdúvidas a meu respeito, e peço ao senhor que me ouça, é pequeno. Escrevi-o a noite passada.

AyresAires propozpropôs ouvi-lo depois do almoço, mas o rapaz pediu que fosse logo, e Pedro concordou com este alvitre, allegandoalegando que, sobre o almoço, podia perturbar a digestão, como ruim droga que devia ser, naturalmente. Ayres metteuAires meteu o caso áà bulha e acceitouaceitou ouvir o artigo; ., com a condição se não de ser curto longo.

— Tem sete tiras. — É pequeno, sete tiras.

—Letra miuda?miúda?

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— Não, senhor; assim, assim.

Paulo leu o artigo. Tinha por epigrapheepígrafe isto de Amós: «Ouvi esta palavra, vaccasvacas gordas que estaesestais no monte de Samaria...» As vaccasvacas gordas eram o pessoal do regimenregímen./,\ Paulo não explicou Paulo. Não attacavaatacava o imperador, por attenção áatenção à mãe, mas com o principioprincípio e o pessoal politicoera violento e aspero. Ayresáspero. Aires sentiu-lhe aquilloaquilo que, em tempo, se chamou «a bossa da combatividade». Quando o rapazPaulo acabou, Pedro disse em ar de mofa:

— Conheço tudo isso, são ideias paulistas.

— As tuas são ideias coloniaes,coloniais, replicou Paulo.

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Deste introito podiam nascer peorespiores palavras, mas a Fortuna,felizmente um creadocriado á chegou áchegou à porta annunciandoanunciando que o almoço estava na mezamesa. AyresAires ergueu-se e disse que áà mezamesa daria a sua opinião.

— Primeiro o almoço, tanto mais que temos um salmão, cousa especial. Vamos a elleele.

AyresAires queria cumprir de verdadedeveras o officioofício que ace aceitára acceitaraaceitara de ConceiçãoNatividade. Quem sabe se a ideia de paepai espiritual dos gemeos, paegêmeos, pai de de desejo somente, paepai que não foi, pae quefoi, que teria sido, não lhe dava uma cast affeiçãoafeição particular e um dever mais alto que o de

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simples amigo? Nem é fórafora de propositopropósito que elleele buscasse somente sómente materiamatéria nova para as paginaspáginas ainda brancas nuas dode seu Memorial. Tudo Leitor Caro leitor, tudo é possivel, neste mundo e no outro.

Ao almoço, ainda se falou do artigo, Paulo com amor, Pedro com desdem,desdém, AyresAires sem uma cousa nem outra cousa. O almoço ia fazendo o seu officioofício. AyresAires estudava os dous rapazes e suas opiniões. Talvez estas não passassem de uma erupção de pellepele da e/i\dadeidade edade ;/.\ um sarampão de varia especie. E sorria, e fazia-osE sorria, fazia-os comer e beber, chegou a falar de moças, mas aqui os rapazes, vexados e respeitosos, não disseram nadaacompanharam o

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ex-ministro. A politicapolítica veiuveio morrendo. Na verdade, Paulo ainda se declarou capaz de derribar a monarchiamonarquia com dez homens, e Pedro de extirpar o germengérmen republicano com um decreto. Mas o ex-ministro, sem mais decreto que uma caçarola, nem mais homens que o seu cozinheiro, envolveu os dous regimensregímens no mesmo salmão delicioso.

 
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CapituloCapítulo LIIXLVII

Musa, canta…

No fim do almoço, AyresAires deu-lhes uma citação de Homero, aliás duas, um uma para cada um, começando por lhes dizerdizendo-lhes que o velho poeta os cantáracantara separd/a\damenteseparadamente, Paulo no começo da Illiada:Ilíada:

— «Musa, canta a ch coleracólera de Ac Achilles,Aquiles, filho de Peleu, a coleracólera funesta aos gregos, que precipitou á estanciaà estância de Plutão tantas almas válidas de heroesheróis, entregues os corpos

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ásàs aves e aos cães...» cães..,»,

Pedro estava no começo da Odysséa OdysseaOdisseia:

— «Musa, canta aquelleaquele er heroeherói astuto, que errou por tantos tempos, depois de destruidadestruída a santa Illion...Ílion...»

Era um modo de definir o caractercaráter de ambosambos, e nenhum dellesdeles levou a mal a applicação.aplicação. Ao contrariocontrário, a citação poeticapoética valia por um diploma particular. O factofato é que ambos sorriram de fé, de aceitação acceitação, de agradecimento, sem que achassem uma palavra ou syllabasílaba com que contestassem a applicaçãodesmentissem a/ o\o adequado dos versos. Que elleele, o ministroconselheiro, depois de os citar em

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prosa , citou nossa, repetiu-os no propriopróprio texto grego, egrego e os dous gemeosgêmeos sentiram-se ainda mais epicosépicos, tão certo é que traducçõestraduções nãonão valem menos que originaes.originais. O que elleseles fizeram foi dar dar um sentido deprimente áoao citação que era applicavelaplicável ao irmão:

— Tem razão, Sr .Senhor Conselheiroconselheiro, — disse Paulo, — Pedro é um velhaco...

— E você é um furioso...

— Em grego, meninos, em grego e em verso, que é melhor que á/a\a fórma da nossa lingualíngua e a prosa do nosso tempo.

 
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CapituloCapítulo LIVLIIIXLVI II

Entre um actoato e outrooutro.

AquellesAqueles almoços repetiram-se, os mezesmeses passaram,-se vieram férias, acabaram-se férias, e AyresAires penetrava bem os gemeosgêmeos. Escrevia-os no Memorial, onde se lê que a consulta ao Pantoja velho Placidovelho Plácido dizia respeito aos dous, e mais a ida áà cabocla do CastelloCastelo e a briga antes de nascer, casos velhos e descorados, agora relembrados, ligados e decifrados. Tudo se fazia assim um problema, e os mezes iam passando obscuros, queobscuros que elle relembrou, ligou e decifrou.ele relembrou, ligou e decifrou.

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EmquantoEnquanto os mezesmeses passam, faze de conta que estás no theatro,teatro, entre um actoato e outro, conversando. Lá dentro preparam a scena,cena e os artistas mudam de roupa. Não vás lá; deixa que a dama, no camarim, ria com os seus amigos o que chorou cá fórafora com os espectadores. Quanto ao jardim que se está fazendo, não te exponhas a vel-ovê-lo pelas costas; é pura lona velha sem pintura, porque só a parte do espectador é que tem os verdes e flores. Deixa-te estar cá fórafora no camarote desta senhora. Examina-lhe os olhos; tem ainda as lagrimaslágrimas que lhe arrancou a dama da peça. Fala-lhe da peça e dos

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artistas. Que é obscura. Que não sabem os papeis.papéis. Ou então que é tudo sublime. Depois percorre os camarotes com o binoculo, distribuebinóculo, distribui justiça, chama bellas ásbelas às bellasbelas e feias ásàs feias, e não te esqueças de contar anedo anecdotasanedotas que desfeia/em\desfeiem as bellasbelas, e virtudes que resgatem a feal componham as feias. Aquellas devem ser As virtudes devem ser grandes e as an an anecdotasanedotas engraçadas. TambemTambém as ha banaes,banais, mas a mesma banalidade na boca bôca de um bom narrador faz-se rara e preciosa. E verás como as lagrimas séccamlágrimas secam inteiramente, e a realidade substituesubstitui a ficção. Falo por imagem; sabes que tudo aqui é verdade pura e sem choro.

folha não numerada

ULTIMO

por

Machado de Assis

(da Academia Brasileira )

 
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CapituloCapítulo XLIII XLVIIIXLIXXLXL IX XLVII

S. Matheus,São Mateus, IV, 1-101-10.

Se ha muito riso quando um partido sobe, tambemtambém ha muita lagrimalágrima do outro que desce, e do riso e da lagrimalágrima se faz o primeiro dia da situação, como no Genesis.Gênesis. Venhamos ao evangelista que serve de epi† titulotítulo ao capitulo.capítulo. Os liberaesliberais ,quando es foram chamados fôram chamadosforam chamados ao poder, que os conservadores tiveram de deixar. Não é mister dizer que o abatimento de Baptista foi enorme.

— Justamente agora que eu tinha

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esperanças, disse elleele áà mulher.

— De quê?

— Ora de quê! Dede uma presidencia.presidência. Não disse nada, porque podiam falhar, mas é quasiquási certo que não. Tive duas conferencias,conferências, com não com ministros, mas com pessoa influente que sabia, e era negocionegócio de esperar um mezmês ou dous...

PresidenciaPresidência boa?

— Boa.

— Se você tivesse trabalhado bem...

— Se tivesse trabalhado bem, podia estar ja de poss posse, mas vinhamosvínhamos agora a toque de caixa.

— Isso é verdade, concordou D. ClaudiaDona Cláudia olhando para o futuro.

Baptista passeava, as mãos nas

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costas, os olhos no chão, suspirando, sem prever o tempo em que os conservadores tornariam ao poder. Os liberaesliberais estavam fortes e resolutos. As mesmas ideias avoaçavampairavam na cabeça de D. ClaudiaDona Cláudia. Este casal só não era egualigual na vontade; as ideias eram muitas vezes taestais que, se apparecessemaparecessem fóra,fora, ninguemninguém diria quaesquais eram as delle,dele, nem quaesquais as delladela, pareciam vir de um cerebro unico.cérebro único. NaquelleNaquele momento nenhum achava esperança prompta immediataimediata ou remota. foiUma só ideia vaga... E foi aqui que a vontade de D. ClaudiaDona Cláudia fincou os pés no chão e cresceu. Não fallofalo só por imagem; D. ClaudiaDona Cláudia levantou-se

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da cadeira, rapida,rápida, e disparou esta pergunta ao marido:

— Mas, Baptista, você o que é que espera mais dos conservadores?

Baptista parou com um ar digno e respondeu com simplicidade:

— Espero que subam.

— Que subam? Espera oito ou dez annosanos, o fim do seculo,século, não é? E nessa occasiãoocasião você sabe se será aproveitado? Quem se lembrará de você?

— Posso fundar um jornal.

— Deixe-se de jornaes.jornais. E se morrer?

— Morro no meu posto de honra.

D. ClaudiaDona Cláudia olhou fixa para elleele. Os seus olhos miudosmiúdos enterraram-seenterravam-se pelos

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delledele abaixo, como duas longas verrumas pacientes. De Subito,Súbito, levantando as mãos abertas:

— Baptista, você nunca foi conservador!

O marido empallideceuempalideceu e recuou, como se ouvira a propriaprópria ingratidão de um partido. Nunca fora fôra conservador? Mas que era elleele então, que podia ser neste mundo? Que é que lhe dava a estima dos seus chefes? Essa agora Não lhe faltava mais nada... D. ClaudiaDona Cláudia não attendeuatendeu a explicações; repetiu-lhe as palavras, e accrescentou:acrescentou:

— Você estava com elleseles, como a gente está n’umnum baile, onde não é preciso ter as mesmas ideias para dançar a mesma quadrilha.

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Baptista sorriu leve e rapido;rápido; amava as imagens graciosas,graciosas e aquellaaquela pareceu-lhe graciosissima,graciosíssima, tanto que concordou logo; mas a sua estrellaestrela inspirou-lhe uma refutação prompta.pronta.

— Sim, mas a gente não dança com ideias, dança com pernas.

— Dance com que fôr,for, a verdade é que todas as suas ideias iam para os liberaesliberais; lembre-se que os dissidentes na provincia accusavamprovíncia acusavam a você de apoiar os liberaesliberais...

— Era falso; o governo é que me recommendavarecomendava moderação. Posso mostrar cartas.

— Qual moderação! Você é liberal.

— Eu liberal?

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— Um liberalão, nunca foi outra cousa.

— Pense no que diz, Claudia.Cláudia. Se alguemalguém a ouvir é capaz de crer crêr, e dahidaí a espalhar...

— Que tem que espalhe? Espalha a verdade, espalha a justiça, porque os seus verdadeiros amigos não o hão de deixar na rua, agora que tudo se organisa.organiza. Você tem amigos pessoaespessoais no ministerioministério; porquepor que é que os não procura?

Baptista recuou com horror. Isto de subir as escadas do poder e dizer-lhe que estava ásàs ordens não era concebivelconcebível sequer. D. Claudia admittiuDona Cláudia admitiu que não, mas um amigo faria tudo, um amigo intimoíntimo do governo que dissesse

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ao Ouro-Preto: «Visconde, você porquepor que é que não convida o Baptista? Foi sempre liberal nas ideias. Dê-lhe uma presidenciapresidência, pequena que seja, e...»

Baptista fez um gesto de hombros,ombros, outro de mão que se calasse. A mulher não se calou; foi dizendo as mesmas cousas, agora mais graves pela insistenciainsistência e pelo tom. Na alma do marido a catástrophe catastrophecatástrofe era ja tremenda. Pensando bem, não hesitava em tranrecusava/ria\recusaria epassar o Rubicon; mas sentisó lhe faltava-lhe a força a necessaria.necessária. e QuizeraQuisera querer. QuizeraQuisera não ver nada, nem passado, nem presente, nem futuro, não saber de homens nem de cousas, e obedecer aos dados da sorte, mas não podia.

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E façamos justiça ao homem. Quando elleele pensava só na fidelidade aos amigos sentia-se melhor; a mesma fé existia, o mesmo costume, a mesma esperança. O mal vinha de olhar para o lado de lá; e era D. ClaudiaDona Cláudia que lhe mostrava com o dedo a carreira, a alegria, a vida, a marcha certa e longa, a presidenciapresidência, o ministerio... Elleministério... Ele torcia os olhos e ficava.

A sós comsigo,consigo, Baptista pensou muita vez na situação pessoal e politicapolítica. Apalpavam /-\seApalpava-se moralmente. ClaudiaCláudia podia ter razão. Que é que havia nellenele propriamente conservador, a não ser esse instinctoinstinto de toda creatura,criatura, que a ajuda a levar este mundo? Viu-se conservador em

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politicapolítica, porque o paepai o era, o tio, os amigos , da casa, o vigariovigário da parochia,paróquia, e elleele começou na escola a execrar os liberaesliberais. E depois não era propriamente conservador, mas saquarema, como os liberaesliberais eram luzias. Baptista aggarrava-seagarrava-se agora a estas designações obsoletas e deprimentes que mudavam o estyloestilo aos parentespartidos; donde vinha que hoje não havia entre elleseles o grande abysmoabismo de 1842 e 1848. TamEE lembrava-se do visconde de Albuquerque ou de outro senador que dizia em discurso não haver nada mais parecido com um conservador que um liberal, e vice-versa. E evocava exemplos, o partido progressista, Olinda,

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Nabuco, Zacharias,Zacarias, que foram fôram elleseles senão conservadores, que comprehenderamcompreenderam os tempos novos e tiraram ásàs ideias liberaesliberais aquelleaquele sangue das revoluções, para lhes pôr uma côrcor viva, sim, mas serena. Nem este o mundo era dos emperrados... Neste ponto passou-lhe um frio pela espinha. Justamente nessa occasião appareceuocasião apareceu Flora. Bap O paepai abraçou-a com amor, e perguntou-lhe se queria ir para alguma presidencia provincia,província, sendo elleele presidente.

— Mas os conservadores não caíram cairam?

Caíram Cairam, sim, mas suppõesupõe que...

Oh!Ah! não, papaepapai!

— Não, porquê?

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— Não desejo sair da/o\do CorteRio de Janeiro.

NãoTalvez a/o\o provínciaCorte Rio de Janeiro para ellaela fosse Botafogo, e propriamente a casa de SoledadeConceiçãoNatividade. O paepai não apurar/ou\apurou as causas da recusa; suppol-as politicassupô-las políticas, e achou novas forças para resistir ásàs tentações de D. ClaudiaDona Cláudia: « Vae-te, Satánaz Vae-te, SatanazVai-te, Satanás; porque escriptoescrito está:, Ao Senhor teu Deus adorarás, e a elleele servirás.» E seguiu-se como na Escriptura:Escritura: «Então o deixou o Diabo; e eis que chegaram os anjos e o serviram.» Os anjos foram fôram só um, que valia por muitos; e o paepai lhe disse beijando-a carinhosamente:

— Muito bem, muito bem, minha filha.

— Não é, papaepapai?

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Não, não foi a filha que tolheu a deserção do paepai. Ao contrario, contrario.contrário. Baptista, se tivesse de ceder, cederia áà mulher ou ao Diabo, synonimossinônimos neste capitulo.capítulo. Não cedeu de fraqueza. Não tinha a força necessariaprecisa de trahirtrair os amigos, por mais que estes parecessem havel-ohavê-lo abandonado. Ha dessas virtudes feitas de acanho e timidez, e nem por isso menos lucrativas, moralmente , e até spiritualmente pecuniariamente falando. Não valem só es/s\toicosstoicosestoicos e martyres.mártires. Virtudes meninas tambemtambém são virtudes. A verdade éÉ certo, porém, que a linguagem delle,dele, em relação aos liberaesliberais, não era ja de odioódio ou resenimpacienciaimpacienciaimpaciência; chegava á tolerancia,à tolerância, roçava pela justiça. Concordava que a alternação

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dos partidos era um principioprincípio de necessidade publica.pública. O que fazia era animar os amigos. Tornariam cedo ao poder. Mas D. ClaudiaDona Cláudia opinava o contrario;contrário; para ellaela, os liberaesliberais iriam ao fim do seculo.século. Sao Quando muito, admittiuadmitiu que não/a\na primeira entrada não dariam déssemdessem logarlugar a um converso da ultimaúltima hora; mas queera preciso esperar um annoano ou dous, uma vaga na camara,câmara, uma commissão,comissão, a vice-presidenciavice-presidência do Rio...

 
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CapituloCapítulo LXLVIII

Terpsichore.Terpsícore.

Nenhuma dessas cousas preoccupavapreocupava a boa Natividade. Mais depressa cuidaria do baile da ilha Fiscal, que se realisourealizou em novembro para honrar os officiaesoficiais chilenos. Não é que ainda dançasse, mas sabia-lhe bem ver dançar os outros, e tinha agora a opinião de que a dança é um prazer d dos olhos. Esta opinião é um dos mau effeitosefeitos daquelledaquele mau costume de envelhecer. Não pegues tal costume, leitora. Ha va outros

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um tal máu costume, leitora. Ha outros tambemtambém ruins, nenhum peorpior, este é po pessimo.péssimo. Deixa lá philosdizerem philosophosfilósofos que a velhice é um estado sublime utilútil pela experienciaexperiência e outras vantagens. Não envelheças, amiga minha, por mais que os annosanos te convidem a deixar a primavera; quando muito, acceitaaceita o estio. O estio é bom, callido,cálido, tem rajadasas noites são breves, é certo, é certo. mas as madrugadas não trazem neblina, e o sol ceucéu appareceaparece logo azul. Assim dançarás sempre.

Bem sei que ha gentes/e\gente em quempara quem a dança é antes um prazer dos olhos. Nem as bailadeiras ,que as francezas cunharam em bayadères

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e mandam aos seus cambistas daqui são outranem ellassão outra cousa mais que mulheres de officio. Tambemofício. Também eu, se é licitolícito citar alguemalguém a si mesmo, tambemtambém eu acho que a dança é antes prazer dos olhos que dos pés, e a razão não é só dos annosanos longos e grisalhos, A r é tambémmas tambemtambém outra que não digo., por não valer a pena. De restoAo cabo, não conto aquiestou contando a minha vida, nem as minhas opiniões, nem nada que não seja das pessoas que entram no livro. Estas é que preciso pôr aqu aqui integralmente com as suas imperfeições e defeitos virtudes e e imperfeições, se osas temtêm. Entende-se isto, sem ser preciso d notal-o,notá-lo, mas não

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se perde nada em repetil-o.repeti-lo.

Por exemplo, D. ClaudiaDona Cláudia. TambemTambém ellaela pensava no baile da ilha Fiscal, sem a menor ideia de dançar, mas anem a razão esthen/e\ticaestheticaestética da outra. Para ellaela, o baile da ilha era um facto politico,fato político, era o baile do ministerioministério, uma baile festa liberal, que podia abr abrir ao marido as portas de alguma presidencia.presidência. Via-se ja com a familiafamília imperial. Ouvia a princeza:princesa:

— Como vae,vai, D.Dona Isabel Claudia?Cláudia?

— Perfeitamente bem, SerenissimaSereníssima senhora.

E Baptista conversaria com o imperador, a um canto, deantediante dos olhos invejosos que tentariam ouvir

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ouvir o dialogodiálogo, áà força de os fitarem de longe. O marido é que... Não sei que diga do marido relativamente ao baile da ilha. Contava lá ir, mas não se achava/ria\acharia a gosto; pode póde ser que t os seustraduzissem esse actoato por meia conversão. Não é que fossem liberaesliberais ao baile, tambemtambém iriam conservadores, e aqui cabia eu bem o aphorismoaforismo de D. ClaudiaDona Cláudia que não é preciso ter as mesmas ideias para dançar a mesma quadrilha.

Santos é que não precisava de ideias para dançar. Tambem nãoNão dançaria sequer. Em moço, valdançou muito, quadrilhas e pol quadrilhas, polkas,quadrilhas, polcas,valsas valsas, a valsa arrastada e a valsa pulada,

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como diziam os da sua rentão, sem que eu possa definir melhor a differença;diferença; Presumo presumo , que na primeira os pés não sah saíam do saiam de saiam do chão, e na segunda não † não saiam andavam aos saltos s/c\ aíam do ar.caiam do ar. Tudo isso até os vinte e outo cinco annosanos. Então os negociosnegócios pegaram delledele e o metteram naquellameteram naquela outra contradança, em que nem sempre se volta ao mesmo logarlugar ou nunca se se sae sáesai dahidelle.dele. Santos saiu e ja sabemos onde está. Ultimamente teve a fantasia de ser deputado; Soledade ConceiçãoNatividade abanou a cabeça, por mais que elleele explicasse que não queria ser orador nem ministro, mas tão somente sómente ir fazer da camaracâmara um degrau para o senado, onde possuiapossuía amigos, pessoas

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de consideração,valimento,merecimento, e que era eterno.

— Eterno? interrompeu ellaela com um sorriso fino e descorado.

Vitalicio,Vitalício, quero dizer.

SoledadeConceiçãoNatividade teimou que não, que a posição delledele era commercialcomercial e bancaria.bancária. «Politica e AccrescentouAcrescentou que politicapolítica era uma cousa e industriaindústria outra. Santos citavareplicou, citando o barão de Mauá, que as fundiu ambas. Então a mulher notou declarou por um modo seccoseco quee duro que aos sessenta annosanos ninguemninguém começa a ser deputado.

— Mas é de passagem; os senadores são idosos edosos.

— Não, Agostinho, concluiu a baronezabaronesa com um gesto definitivo.

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Não conto AyresAires, que provavelmente não dançaria, a despeito dos annosanos; tambemtambém não fallofalo de D. PerpetuaDona Perpétua, que nem iria lá. Pedro iria, e é natural que dançasse, e muito, não obstante o afinco dos seusseus e paixão dos seus estudos. Vivia enfeitiçado pela medicina. No quarto de dormir, alemalém do busto de Hippocrates HyppocratesHipócrates, tinha os retratos de algumas summidades medicassumidades médicas do/a\da mundoEuropa, muito esqueleto gravado, muita molestiamoléstia pintada, pescoçospeitos cortados verticalmente para se lhe verem os vasos, um e á vista cerebros descobertos,cérebros descobertos, um cancercancro de lingualíngua, alguns aleijões, cousas todas que a mãe, por

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seu gostogosto, mandaria deix/t\ardeitar ao lixo fóra,fora, mas era a scienciaciência do filho, e bastava. Contentava-se de não olhar para os quadros.

Quanto a Flora, se não era verdeFlora, ainda verde para os meneios de Terpsychore TerpsichoreTerpsícore, era acanhada ou arrepiada, como dizia a mãe. E isto era o menos; o mais era que , com pouco se enfan/a\daria,enfadaria, e, se não pudesse vir logo para casa, ficaria adoentada o resto d †da noite do tempo. E Note-seNote-se que, estando na ilha, teria o mar em volta, e o mar era um dos seus encantos; mas, se lembralhe lembrasse o mar, ,e se consolasse com elle a esperança de o vero mirar, advertiria tambemtambém que a

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noite escura tolheria a consolação. Que multidão de dependenciasdependências na vida, leitor! Umas cousas enroscam-se nasnascem de outras, enroscam-se, atam-se, desatam-seenroscam-se, desatam-se, confundem-se, perdem-se, e o tempo andandovai andando sem se perder a si.

Mas donde viria o tediotédio a Flora, se viesse? Com Pedro no baile, o tedio era improvavel; ou ja impossivel, a/P\edrobaile, não; este era, como sabes, um dos dous que lhe queriam bem,. Salvo se ellaela queria justamenteprincipalmente ao que estava em S.São Paulo. Mas es arriscadaConclusão duvidosa, pois não é certo que preferisse um a outro. Se ja a vimos fallarfalar a ambos com a mesma a sympathia,simpatia, o que fazia agora a

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Pedro na ausenciaausência de Paulo, e faria a Paulo na ausenciaausência de Pedro, não me faltará leitora que presuma um terceiro... Um terceiro explicaria tudo, um terceiro que não fosse ao baile, algum estudante pobre, sem outro amigo nem mais casaca que o coração verde e quente. Pois nem essa/e\esse, leitora curiosa, nem terceiro, nem quarto, nem quinto, ninguemninguém mais. Uma exquisitona,esquisitona, como lhe chamava a mãe.

Não importa; a exquisitonaesquisitona foi ao baile da ilha f Fiscal com a mãe e o paepai. Este, no meio das luzes Conceição, Assim tambem Natividade,Assim também Natividade, o marido e Pedro, assim AyresAires, assim a demais gente convidada para a grande festa. Foi uma bellabela ideia do governo, leitor. Dentro e fóra,fora, de do mar e de terra, era como um sonho veneziano; se tal adjectivo exprime o que presumo. Mas esse toda aquellatoda aquela

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outro; o principal é que diga que toda aquella sociedade viveu algumas horas sumptuosas,suntuosas, moçasnovas para uns, saudosas para outros, e de futuro para todos, — ou, quando menos, para a nossa amiga Conceição e e o ††vador Natividade e o conser casalNatividade – e para o conservador Baptista.

AquellaAquela considerava o destino dos filhos, — cousas futuras! Pedro bem podia inaugurar, como ministro, o seculoséculo XX e o terceiro reinado. ConceiçãoNatividade imaginava outro e maior baile naquellanaquela mesma ilha. Compunha a festa,ornamentação, e via as pessoas e as danças, toda uma festa magna que entraria na historia.história. e na Tambem ellaTambém ela alliali estaria, sentada a um canto,

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sem se lhe dar do peso dos annosanos, uma vez que visse a grandeza e a prosperidade dos filhos. Era assim que enfiara os olhos pelo tempo adiante, descontando no presente a felecidadefelicidade futura, para o caso de vircaso viesse a a morrer antes das profecias prophecias. Tinha a mesma sensação que lh ora lhe dava aquellaaquela cesta de luzes no meio da escuridão tranquillatranquila do mar.

A imaginação de Baptista era menos vivalonga que a de Conceição. Não sei se me exprimo bem. Quero dizer Natividade. Quero dizer que viaia e ouvia antes do principioprincípio do se seculoséculo, Deus sabe se antes do fim do annoano. Ao som da musica,música, áà vista

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das galas, ouvia umas feiticeiras cariocas, que se pareciam com as escossezas;escocesas; em todo caso,pelo menos, as palavras eram as mesmas. Uma por umaque saudaram analogas ás que saudaramanálogas às que saudaram a Macbeth: — «Salve, Baptista, ex-presidente , de provinciaprovíncia.!» — «Salve, Baptista, proximopróximo presidente de provinciaprovíncia!» — «Salve, Baptista, tu serás ministro um dia!» A linguagem dessas profecias prophecias era liberal, sem sombra de sole solecismo. Verdade é que elleele se arrependia de as escutar, e forcejava por traduzil-astraduzi-las no velho idioma conservador, mas já lhe iam faltavam/ndo\faltando diccionariosdicionáriosdesta lingua. A primeira palavra ainda trazia o sotaque antigo: «Salve, Baptista, ex-presidente de provinciaprovíncia!» mas

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a segunda e a ultimaúltima eram ambas daquelladaquela novaoutra lingualíngua liberal, que sempre lhe pareceu lingualíngua de preto. De resto EmfimEnfim, a mulher, como lady Macbeth, dizia nos olhos o que esta dizia pela boca bôca, isto é, que ja sentia em si aquellasaquelas futurações. O mesmo lhe repetia/u\repetiu na manhã seguinte, em caza. casa. Baptista, com um sorriso disfarçado, descria das feiticeiras, mas a memoriamemória guardava as palavras da ilha: «Salve, Baptista, proximopróximo presidente!» Ao que elleele respondia com um suspiro: «Não, não, filhas do Diabo...

Ao contrariocontrário do que ficou dito atraz,atrás, Flora não se aborreceu na ilha. Conjecturei mal; emendo-me a tempo. PoConjecturei mal, emendo-me a tempo. Podia aborrecer-se pelas razões que lá ficam, e ainda outras que poupei ao leitor apressado; mas, em verdade, passou bem a noite. A novidade da festa, a visinhançavizinhaça do mar, os navios perdidos na sombra, a cidade defronte com os seus lampiões de gaz,gás, embaixo e em cima, nasna

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praia e nos outeiros, eis ahi aspectosaí aspectos novos que a encantaram durante aquellasaquelas horas rapidas.rápidas.

Não lhe faltavam pares, nem conversação, nem alegria alheia e propria.própria. Toda ellaela compartia da felicidade d dos outros. Ria. OuviaVia, ouvia, sorria corriaembora a lição do manuscrito não seja inequívoca, a comparação com outras palavras começadas por c e s aponta para que se esteja perante um s inicial, sendo a palavra sorria. Creio que a lição corria terá sido um erro do tipógrafo na 1ª edição, não corrigido por Machado nas provas, dado ser uma variante adiáfora, pelo que opto pela lição do manuscrito., esquecia-se do resto para se metter comsigometer consigo.;/.\e era nesses lapsos o que TambemTambém invejava a princezaprincesa imperial, a qualque viria a ser imperatriz um dia, com o absoluto poder de despedir ministros e damas, visitas e requerentes, e ficar só, no mais reconditorecôndito do paço, fartando-se de contemplação ou de musica.música. Taes ideias passa passavam depressa. Vinham outras Era assim que ella Flora definia o officio de governar. Taes ideias passavamFlora definia o officio de governar. Taes ideias passavamFlora definia o ofício de governar. Tais ideias passavam

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e tornavam. De uma vez al alguemalguém lhe disse, como para lhe dar força: «Toda alma livre é impetrizimperatriz

Não foi outra voz, semelhante áàs que das feiticeiras do paepai nem ásàs que fallavamfalavam interiormente a Natividade, ácercaacerca dos filhos. Não; seria pôr aqui muitas vozes de mysterio,mistério, cousa que, alemalém do fastio da repetição, mentiria áà realidade d dos factos.fatos. A voz que falloufalou a Flora saiu da boca bôca do velho AyresAires, que se fôrafora sentar ao pe della pé d’ellapé dela e lhe perguntara perguntára:

— Em que é que está pensando?

— Em nada, respondeu Flora.

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Ora, o conselheiro tinha visto no rosto da moça a expressão de alguma cousa e insistia em querer saber o que erapor ella.por ela. Flora disse como pôde e soube a inveja que lhe mettiametia a princeza a vista da princezavista da princesa, não para brilhar ou e mandar um brilhar um dia, mas para fugir ao brilho e ao mando, sempre que quizessequisesse ficar subditasúdita de si mesma mesma. AyresFoi então que elleele lhe murmurou, como acima:

— Toda alma livre é imperatriz.

A phrasefrase era boa, sonora, parecia conter toda aa maior sommasoma de verdade que ha na terra e nos planetas. Valia por uma paginapágina de Plutarcho.Plutarco. Se algum politicopolítico

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a ouvisse poderia guardal-aguardá-la para os seus dias de opposiçãooposição ao governo, quando viesse o terceiro reinado. Foi o que elleele mesmo escreveu no Memorial, comMemorial. Com esta nota: «A meiga creatura acreditou nesta/e\s cinco palavras» vocabulos creatura agradeceu-me estas cinco palavras»criatura agradeceu-me estas cinco palavras.

 
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CapituloCapítulo XLIX

TaboletaTabuleta velhavelha.

Toda a gente se recovoltou da ilha com o baile na cabeça, muita sonhou com elleele, alguma dormiu mal ou nada. AyresAires foi dos que accordaramacordaram tarde; eram honze horas. Ao meio dia almoçou; depois escreveu no Memorial as impressões da vespera,véspera, notou algum varias espaduas,varias espaduasvárias espáduas fez reparos politicospolíticos e acabou com as palavras que lá ficam no p cabo do outro capitulo.capítulo. Fumou, leu, até que resolveu ir áà rua do

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do Ouvidor. Como chegasse áà vidraça de uma das janellasjanelas da frente,da frente, viu de áà porta da confeitaria uma figura inesperada, o velho Custodio cheio Custodio, cheioCustódio, cheio de melancolia. Era tão novo o espectaculoespetáculo que alliali se deixou estar por alguns instantes; foi então que o confeiteiro, levantando os olhos, deu com elleele apezar das cortinas,entre as cortinas, e emquantoenquanto AyresAires voltava para dentro, CustodioCustódio atravessou a rua e entrou-lhe em casa.

— Que suba, disse o conselheiro ao criado. que lhe

CustodioCustódio foi recebido com a benevolenciabenevolência de outros dias e um pouco mais de interesse. AyresAires queria saber o que é que o entristecia.

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— Vim para contal-ocontá-lo a V. Ex V.-Ex.Vossa Excelência; é a ta taboletatabuleta.

— Que taboletatabuleta?

— Queira V. Ex V.-Ex.Vossa Excelência ver por seus olhos, disse o confeiteiro, pedindo-lhe o favor de ir áà janella.janela.

— Não vejo nada.

— Justamente, é isso mesmo. Tanto me aconselharam que fizesse reformar a taboletatabuleta que afinal consenti, e fil-afi-la tirar por dous empregados. A visinhançavizinhança q veiuveio para a rua assistir ao trabalho e parecia rir de mim. Já tinha falado a um pintor da rua da Assembléa;Assembleia não ajustei o preço porque elleele queria ver primeiro a obra. Hontem,Ontem áà tarde, lá foi um caixeiro, e sabe V. Ex. V.-Ex.Vossa Excelência o

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que me mandou dizer o pintor? Que a taboatábua está velha, e precisa outra; a madeira não aguenta tinta. Lá fui ásàs carreiras.; Não pude convencel-o convenccl-oconvencê-lo de pintar na mesma madeira; mostrou-me que estava rachada e comida de d de de bichos. Pois cá debaixo não se via via. Teimei que pintasse assim mesmo; respondeu-me que era artista e não faria obra que se estragasse logo.

— Reforme— Pois reforme tudo. Pintura nova em madeira velha não vaevale nada. Agora verá que dura pelo resto da nossa vida.

— A outra tambemtambém durava; bastava só avivar as letras. São luxos de pintor

Era tarde, a ordem fora expedida, a madeira devia estar comprada, ia ser serrada e pregada, pintada/o\pintado o fun fundo para então se desenhar e pintar o titulo.título. CustodioCustódio não disse que o artista lhe perguntáraperguntara pela côrcor das letras, se vermelha, se amarellaamarela, se pre verde em cima de branco ou vice-versa, e que elleele, cautelosamente, indagáraindagara do preço de cada cor côr para

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escolher as mais baratas. Não interessa saber quaesquais foram fôram.

QuaesquerQuaisquer que fossem as cores côres, eram tintas novas, taboas aboastábuas novas, uma reforma que elleele, mais por economia que por econo affeição,afeição, não quizeraquisera fazer; mas a affeiçãoafeição valia muito. Agora que ia trocar de taboletatabuleta sentia perder algo do corpo, — cousa que outros do mesmo ou diverso ramo de negocionegócio não comprehenderiam,compreenderiam, tal gosto acham em renovar as cazascaras e fazer crescer com ellaselas a nomeada. São natu naturezasnaturezas. AyresAires pensou em escrever quando soube disto, ia ia pensando em escrever uma PhilosofiaFilosofia das TaboletasTabuletas, na qual poria estas taestais e outras obs

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observações, mas nunca deu começo à á a obra,. por preguiça

V. Ex. V.-Ex.Vossa Excelência hade-me ha de-mehá de me perdoar o incommodoincômodo que lhe dei,trouxe, vindo falar-lhe disto,contar-lhe isto, mas V. Ex V.-Ex.Vossa Excelência é sempre tão bom commigo,comigo, fala-me com tanta amizade, que eu me atrevi... Perdoa-me, sim?

— Sim, homem de Deus.

ComquantoConquanto V. Ex V.-Ex.Vossa Excelência approveaprove a reforma da taboletatabuleta, sentirá commigocomigo a separação da outra, a minha amiga velha, que nunca me deixou, que eu, nas noites de luminariasluminárias, por S.São Sebastião e outras, fazia appareceraparecer aos olhos da gente. V. Ex V.-Ex.Vossa Excelência, quando se aposentou, veiu achal-aveio achá-la a/no\no mesmo logarlugar

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em que aa deixou por occasiãoocasião de ser nomeado. E tive alma para me separar delladela!

— Está bom, la vaevai; agora é receberreceber a outranova, e verá como daqui a pouco são amigos.

CustodioCustódio saiu recuando, como era seu costume, e desceu tropegotrôpego as escadas. DeanteDiante da confeitaria parou deteve sedeteve-se um instante, e olhou ppara ver o logarlugar onde estivera a taboletatabuleta velha. DevérasDeveras, tinha saudades.

 
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CapituloCapítulo LIII

O tinteiro de padre FeijóEvaristo.

—... Este caso prova que tudo se pode póde amar muito bem, ainda um pedaço de madeira velha. Creiam que não era só a despezadespesa que elleele naturalmente sentia, eram tambemtambém a saudades. NinguemNinguém se despega assim de um objectoobjeto tão intimoíntimo, que faz parte de integral da cazacasa em que morae da pelle,e da pele, porque a taboletatabuleta f não foi sequer arriada um dia. CustodioCustódio não teve occasiãoocasião de ver se e estava estragada. Vivia alliali como as portadas e a parede.

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Era ao jantar, em Botafogo. Só quatro pessoas, as duas irmãs, Santos e AyresAires. Pedro fora fôra jantar a S.São Clemente, com a familiafamília Baptista.

D. Perpetua approvouDona Perpétua aprovou os sentimentos do confeiteiro. Citou, a propositopropósito, o tinteiro de Evaristo. A irmã sorriu para o marido, e este para a mulher, como se dissessem: «lá vem elleele!» Era um tit tinteiro de tinteiro que servira ao famoso jornalista do primeiro reinado e da RegenciaRegência, obras simples, feitas/a\feita de barro, igual egual aos tinteiros que a gente chã comprava nas lojas de papel daquelledaquele e deste tempo. O sogro de D. PerpetuaDona Perpétua, que lh’olho dera em lembrança, tivera um da mesma idade edade, massa e feição.

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VeiuVeio assim de mão em mão parar ásàs minhas. Não chega aos tinteiros do mano Agostinho nem de Natividade, que são luxuosos, mas tem grande valor para mim.

— Sem duvidadúvida, concordou AyresAires, valor historicohistórico e politicopolítico.

— Meu sogro dizia que delle sairamdele saíram os grandes artigos da Aurora. A falar verdade, eu nunca li taestais artigos, mas meu sogro era homem de verdade. Conhecia a vida de Evaristo, que ouvira outror por ouvil-apor ouvi-la lh a outros, e fazia-lhe louvores que não acabavam mais...

Natividade buscou desviou/ar\desviar a conversação para o baile da vespera.véspera. Tinham ja falado delledele, mas não achou outro derivativo.

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pa Entretanto, o tinteiro ainda ficou algum tempo. Era Não era só uma das lembranças de D. PerpetuaDona Perpétua, reliquiarelíquia de familia,família, era tambemtambém uma de suas ideias. Prometteu mostral-oPrometeu mostrá-lo ao conselheiro. ElleEle prometteu vel-oprometeu vê-lo com muito gosto. Confessou que tinha veneração aos objectosobjetos de uso dos grandes homens. EmfimEnfim, o jantar acabou, e elleseles vi passaram ao salãoVindo para a frente, A salão. AyresAires, fand falando da enseada:

— Aqui está uma obra, que é mais velha que o tinteiro do Evaristo e a taboletatabuleta do CustodioCustódio, e, não obstante, parece mais moça, não é verdade, D. PerpetuaDona Perpétua? A noite é clara ée quente;

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podia ser escura e fria, e o effeitoefeito seria o mesmo. A enseada não differedifere de si. Talvez os homens venham algum dia atulhal-aatulhá-la de terra e pedras para levantar casas em cima, um bairro novo, com um grande circo destinado a corrida de cavalloscavalos. Tudo é possivelpossível debaixo do sol e da lua. A nossa felicidade, barão, é que morreremos antes.

— Não fale em morte, conselheiro.

Sim, A morte é uma hypothesehipótese, redarguiu Ayres,redarguiu Ayres,redarguiu Aires, talvez uma lenda. NinguemNinguém morre de uma boa digestão, e os seus charutos são deliciosos.

— Estes são— Estes são novos. Parecem-lhe bons?

— Deliciosos. Onde os compra?

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Santos estimou ouvir este louvor; achava-lhe uma intenção directa ádireta à sua pessoa, aos seus meritos,méritos, ao seu nome, áà posição que tinha na sociedade, áà casa, á chacaraà chácara, ao Banco, aos colletescoletes. É talvez muito; seria um modo emphaticoenfático de explicar a força da ligação delledele aos charutos. Vin/al\Valiam pela taboletatabuleta e pelo tinteiro, com a differençadiferença que estes sif/g\nificavamsignificavam affeiçãoafeição e veneração, e aquellesaqueles, valendo pelo sabor e pelo preço, tinham a superioridade do milagre, pela reproducçãoreprodução de todos os dias.

TaesTais eram as impressões de Ayres, olhando mansamideias suspeitas que vagavam pelo no cerebro deno cérebro de AyresAires, emquanto elleenquanto ele olhava mansamente para o

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amphytrião.anfitrião. AyresAires não podia negar a si mesmo o/a\atedio aversão que este lhe inspirava. Não lhe queria mal, de certodecerto; podia até querer-lhe bem, se houvesse um muro entre ambos. Era a pessoa, eram as sensações, os dizeres, os gestos, o riso, a alma toda que lhe fazia mal.

 
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CapituloCapítulo LIII

Aqui presentepresente.

Perto das nove horas, ou logo depois, chegou Pedro com o casal Baptista e Flora.

ViemosVimos trazer o seu menino, disse Baptista a Natividade.

— Obrigado, doutor, acudiu Santos, mas elleele já não está em idade edade de se perder por essas ruas, antes de se, se se perder, acha-se logo, concl accrescentouacrescentou sorrindo.

Natividade não gostou da graça, tratatando-setratando-se do filho e ao pé delladela. Era talvez

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excesso de pudor. Ha muito excesso nesse sentido, e o acertado é perdoal-operdoá-lo. Ha tambemtambém excessos contrarioscontrários, condescendias condescendenciascondescendências faceis,fáceis, pessoas que entram com prazer na troca de allusõesalusões picantes. TambemTambém se devem perdoar. Em summasuma, o perdão chega ao ceucéu. Perdoai-vos uns aos outros, é a lei do Evangelho.

ElleEle, o rapaz, é que não ouviu nada; interrompera a conversa , e que trazia com Flora, e ,mal , logo teve tempo de falar ao conselheiro, reatou o fio a trocadas algumas palavras, os dous foram fôram reatar o fio a um canto. AyresAires reparou na attitudeatitude dos dous;de ambos; ninguemninguém mais lhes prestava attençãoatenção. De restoAo cabo, a conversa era em voz urd surda; não os poderiam ouvir. EllaEla os escutava, elleele

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falava; depois era o contrariocontrário, ellaela é que f que falava, elleele é que ouvia, tão absortos que pareciam não attenderatender a ninguemninguém, mas attendiam. Possuiamatendiam. Possuíam o sexto sentido dos conspiradores e dos namorados. Que conversassem de amores, não sei; mas é possivel; masé possível; mas que conspirassem, éconspiravam, é certo. Quanto á materiaà matéria da conspiração, é o que, só podereis sabel-asabê-la depois, brevemente, daqui a um capitulocapítulo. O proprio Ayrespróprio Aires não descobriu nada, por mais que quizessequisesse fartar os olhos naquelle dialogonaquele diálogo de mysteriosmistérios. Persuadiu-se que não era grave, porque elleseles sorriam com frequenciafrequência; mas podia ser intimoíntimo, escondido, pessoal, e acaso extranho.estranho. SuppõeSupõe um fio de anecdotasanedotas ou uma historia compridahistória comprida,

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e acaso estranho. Suppõe uma anecdota ou duas, uma historia comprida, qualquer qualquer cousacousa alheia; ainda assim podia ser dellesdeles somente sómente, porque ha estados da alma em que a materiamatéria da narração é nada, o gosto de a fazer e de a ouvir é que é tudo. Naturalmente era Tambem podia serTambém podia ser isto.

Vede Vêde, porém, como a natureza encaminha as cousas minimasmínimas ou maximasmáximas, mormente se a fortuna a ajuda. A conversação tão doce, ao que parecia, começou por uma briga . arrufo.enfado. A causa foi uma carta de Paulo, escriptaescrita ao irmão, e que este se lembrou de mostrar a Flora, dizendo-lhe que tambemtambém a mostráramostrara áà

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mãe, e a mãe se zangárazangara muito.

— Com o senhor?

/C\omCom Paulo.

— Mas que dizia a carta?

Pedro leu-lhe o trechoponto principal, que era quasiquási toda a carta; falava da «questão militar». Havia umaJá havia a Já havia a a «questão militar», por esse tempo, um conflictoconflito de generaesgenerais e ministros, e o partido d a linguagem de Paulo era contra os ministros.

— Mas porquepor que é que o senhor foi mostrar essa carta a sua mãe? p

— Mamãe quizquis saber o que é que elleele me dizia.

— E sua mãe zangou-se, ahi está; vaevai talvez reprehendel-orepreendê-lo.

— Tanto melhor; Paulo precisa ser

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emendado; mas, diga-me, porquepor que é que a senhora defende sempre a meu irmão?

Não Para ter o direito de defender tambemtambém ao senhor.

— Então elle ja elle jáele já lhe f tem falado mal de mim?

Flora quizquis dizer que sim, depois que não, afinal calou. Desconversou, perguntando se/po\rqueporquepor que elleseles se davam mal. Pedro negou que se dessem mal. Ao contrariocontrário, viviam bem. Não teriam as mesmas opiniões, e tambemtambém podia q ser que tivessem o mesmo gosto... Daqui a dizer q que que ambos gostavam dellaa amavam era uma virgulavírgula; Pedro pingou o ponto final. Esse astuto era tambemtambém timido.tímido. Mais tarde,

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comprehendeucompreendeu que, calando, andou melhor, e deu á/a\a si si mesmo o applausoaplauso do/a\da silencioescolha; mas era falso, não escolhera nada. Calou por medo. Nãonada. Não digo isto para fazel-ofazê-lo desmerecer; sim, porque o medo acerta muitas vezes, e é mister deixar aqui esta reflexão.

VeiuVeio a zanga. Flora não replicou mais nada, e, por seu gosto, não teria jantado, á meza, a tal ponto sentia piedade do outro. Felizmente, o outro era este mesmo, aqui presente, com os olhos presentes, as mãos presentes, as palavras presentes. Não tardou que a zanga fugisse deantediante da graça, da brandura e da adoração. BemaventuradosBem-aventurados os que ficam, porque elleseles serão eleitoscompensados.

 
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CapituloCapítulo LIIV

Um segredo.

Eis agora a materiamatéria da conspiração. Na rua, ao virem de S.São Clemente, foi que Pedro, gastado o melhor do tempo com a carta e o jantar, pôde re revellar revelar árevelar à moça um segredo:

— Titia , disse lá em casa que D. ClaudiaDona Cláudia lhe contáracontara p em segredo (não diga nada) que seu paepai vaevai ser nomeado presidente de provinciaprovíncia.

— Não sei nada disso, mas não creio, porque papaepapai é conservador.

sem número

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D. ClaudiaDona Cláudia disse a titia que elleele é liberal, quasiquási radical. Parece que a presidenciapresidência é certa; ellaela pediu segredo, e titia, quando nos contou, tambemtambém pediu segredo. Eu tambemtambém lhe peço que não diga nada, mas é verdade.

— Verdade, como? PapaePapai não vaevai com liberaesliberais; o senhor não sabe como papaepapai é conservador. Se elleele defende os liberaesliberais é porque é conservador tolerante.

— Se a provinciaprovíncia fosse a do Rio de Janeiro, porque eu gostaria, porque não era preciso ir morar la, e, se elle fossena Praia Grande, e, se e see, se elleele fosse, a viagem é só de meia hora, eu podia ir todos os dias.

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— Era capaz?

— Apostemos.

Flora, depois de um instante:

— Para que,quê, se não ha presidenciapresidência?

Supponho SupponhaSuponha que ha.

— É preciso suppor suppôrsupor muito, — que ha presidenciapresidência e que a provinciaprovíncia é a do Rio. Não, não ha nada.

— Então supponhasuponha só metade, — que ha presidenciapresidência e que é MattoMato Grosso.

Flora teve um calefrio. Sem admittiradmitir a nomeação, tremeu ao nome da provinciaprovíncia. Pedro lembrou ainda o Amazonas, Pará, PiauhyPiauí... Era o infinito, mormente se o paepai fizesse boa administração, porque não sairia voltariavoltaria tão cedo. Ja agora a moça resistia

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menos, achava possivelpossível e abominavelabominável, mas dizia isto para si, dentro do coração. De repente, Pedro, quasiquási estacando o passo:

— Se elleele fôrfor, eu peço ao governo o logarlugar de secretario, e secretario esecretário e vou tambemtambém.

A luz intermittenteintermitente das lojas, reflectindo lojas reflectindolojas refletindo no rosto da moça, áà medida que elleseles impiam passando por ellaselas, ajudava a dos lampiões da rua, e mostrava no na meninaa emoção daquelladaquela promessa. Sentia-se que o coração de Flora devia estar batendo muito. Em breve, porém , cocomeçoucomeçou ellaela a pensar outra pensar em outra cousa. Natividade não consenteriaconsentiria nunca; depois, um estudante... Não podia ser. Pensou em algum escandaloescândalo. Que elleele fugisse,

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embarcasse, fosse atraz dellaatrás dela...

Tudo isto era visto ou pensado em silenciosilêncio. Flora não se admirava de pensar tanto e tão atrevidamente; era como o peso do corpo, que não sentia;sentia: andava,andava, pensava, como transpirava. Não calculou sequer o tempo que ia gastando em imaginar e desfazer ideias. Que isto lhe déssedesse mais prazer que desprazer, é certo. Ao pé delladela, Pedro ia naturalmente cuidando, com os olhos nos sapatos pés epés, e os pés nas nuvens. Não sabia que dissesse no meio de tão longo silenciosilêncio. Entretanto, a solução parecia-lhe unicaúnica. Já não pensava na presidenciapresidência do Rio. Queria-se com ellaela, no ponto mais remoto do imperioimpério,

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sem o irmão. A esperança de se desterrarem assim de Paulo verdejou na alma de Pedro. Sim, Paulo não iria tambemtambém; a mãe não se deixaria ficar desamparada. Que perdesse um filho, vá; mas ambos...

A quem quer que todo este final do monologomonólogo intimo pareça egoistaegoísta, peço-lhe pelas almas dos seus parentes e amigos, que estão no ceucéu, peço-lhe que não des culpe considereconsidere bem as cousascausas. Considere o estado da alma do rapaz, a proxi contiguidade da moça, as raízes raizes e as flores da paixão, a propriaprópria idade edade de Pedro, o mal da terra, e /o\o bem da mesma terra. , e a necessidade de ambos,... Considere Considere mais a vontade do ceucéu, que vela

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por todas as creaturascriaturas que se querem, salvo se uma só é que quer a outra, porque então o ceucéu é um poço abysmoabismo de iniquidades, e não telhe a imagem, se importe esta imagem. Considere/a\Considere tudo, amigo; deixa-medeixe-me ir contando só e contando mal o que se passou naquellenaquele curto tranzito transitotrânsito entre as duas casas. Quando la chegaram, falavam um com fade boca. bôca.boca.

Em cima, como viste, continuaram a falar, até que o assumptoassunto da presidenciapresidência voltou. Foi e/E\ntão ella que uma ideia rutilou no espirito de Flora. Não foi assi veiu á toa, mas depois que de notar que Ayres parecia occupar-se mais com elles que com os outros. Ayres podia... sim... podia.... Era seu amigo, della, Flora notou então a cautelosa insistenciainsistenciainsistência comcom que queque AyresAyresAires olhava paraolhava para elles,elles,eles, como se buscasse adivinhar acomo se buscasse adivinhar a materiamateriamatéria da conversação. Sentia que não estivesseda conversação. Sentia que não estivesse alli tambem,ali também, ouvindo e falando, finalmenteouvindo e falando, finalmente

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promettendoprometendo fazer alguma cousa por ellaela. AyresAires podia, sim, — era seu amigo e todos o tinham em grande conta, — podia intervir e destruir o projecto da presidencia.presidência. Sem

Sem querer nem saber, diziadiria isto mesmo com os olhos ao velho diplomata. Retirava-os, mas elleseles d iam de si mesmos repetir o monologomonólogo, e acaso perguntar alguma cousa que elle AyresAires não percebia e devia ser interessante. Pode Póde ser que reflectissemrefletissem algum a angustiaa angústia ou o que quer que era que lhe doía doia dentro. Pode Póde ser; a verdade é que Pode AyresAires começou a ficar curioso, e não tardoutão depressa Pedro deixou o logarlugar para acudir ao chamado da

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mãe, deixou elleele Natividade para ir falar áà moça.

Flora, ja de pé, mal teve tempo de trocar duas palavras, porque a mãe despedia-se da dona da casa e da irmã; Precisava precisava de repousa/o\. As duas palavras, porém, eram dessastrocar duas palavras, dessas que se não podem interromper sem dor dôr ou prurido, ao menos. AyresAires perguntava-lhe se nunca lhe disséradissera que sabia adivinhar. Que não

— Não, senhor.

— Pois sei; adivinhei agora mesmo que me quer dizer um segredo.

Flora ficou espantada. e vexada Não querendo negar nem confessar, respondeu-lhe que só adivinháraadivinhara metade.

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— A outra é...?

— A outra é pedir-lhe um obsequioobséquio de amizade.

— Peça.

— Não, agora não;, e depoisjá nos vamos embora; mamãe e papaepapai estão fazendo as despedidas. Só se fôrfor na rua. Quer vir comnoscoconosco a S.São Clemente?

— Com o maior prazer.

 
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CapituloCapítulo LV LIII

Confidencias

De confidenciasconfidências.

Entenda-se que não. Não era com prazer maior nem menor. Era imposição de sociedade, desde que Flora o pedira, não sei se discretamente. Que a isto se ligasse tal ou qual desejo de saber algum segredo, não serei eu que o negue, nem tu, nem elleele mesmo. Ao cabo de alguns d instantes, AyresAires ia sentindo como esta pequena lhe accordavaacordava umas vozes mortas, ou falhadas ou não nascidas, nascidas, vozes de paepai. Os gemeosgêmeos não

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lhe deram um dia a mesma sensação, senão porque eram filhos dade Natividade antiga. Aqui não era a mãe, de era a mesma Flora, o seu gesto, a sua fala, e porventura por ventura a sua fatalidade.

— Mas quer-me parecer que desta vez ellaela está pegada;presa; escolheu emfimenfim, pensou AyresAires.

Flora disse-lhe o que ja sabes, falou-lhe da presidencia,falou-lhe da presidência, mas não lhe pediu segredo, como as outras pessoas; ao contrario confessou-lhe que não queria ir daqui, fosse para onde fosse, e acabou dizendo que tudo estava nas mãos delledele. Só elleele podia despersuadir o paepai de acceitaraceitar a presidencia.presidência. AyresAires achou tão absurdo este pedido que esteve a pique de quasi aquási a rir, mas susteve-se bem. A

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palavra de Flora era grave e triste. , quasi lacrymoza . Ayres AyresAires respondeu, com brandura, que não podia não/ada\nada.

Pode Póde muito, todos attenção/dem\attendematendem aos seus conselhos.

— Mas eu não dou conselhos a ninguem ninguem,ninguém, acudiu AyresAires. Conselheiro é um titulotítulo que o imperador me deu,conferiu, por achar que não o mereço mais. E só lhe posso dar o merecia, mas não obriga a dar conselhos; a elleele mesmo só lh’oslhos darei, se m’osmos pedir. Isto ao m Imagine agora se eu vou áà casa de um homem ou mando chamal-ochamá-lo áà minha para lhe dizer que não seja presidencia/te\presidente de provinciaprovíncia. Que razão lhe daria?

Não tinha razõesrazões a moça; tinha

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necessidade. AppellouApelou para os talentos do ex-ministro, que acharia uma razão boa. Nem se precisavam razões, bastava o falar delledele, a arte com que Deus lhe dera de agradar a toda a gente, de a arrastar, de influir, de obter o que quizessequisesse. AyresAires viu que ellaela exagerava para o attrairatrair, e não lhe pareceu mal. Não obstante, contestou taos taestais meritosméritos e virtudes. Deus não lhe dera arte nenhuma, disse elleele, mas a moça ia sempre affirmandoafirmando, em tal maneira que AyresAires suspendeu a contestação, e fez uma promessa:promessa.

— Vou pensar; amanhã ou depois, se achar algum recurso, tentarei o negocio;/.\negocio.negócio. mas hade guardar segredo.

367 fólio repetido
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Era um palliativopaliativo. Era tambemtambém um modo de fazer cessar a conversação, estando a casa proximapróxima. Não cont podia contar contava com o paepai de Flora, que áà fina força lhe quizquis mostrar, áquellaàquela hora, uma novidade, importante, aliás uma velharia, um documento de valor diplomaticodiplomático. «Venha, suba, cinco minutos apenas, conselheiro.»

AyresAires suspirou em segredo, e deixou-se levar pelo curvou a cabeça ao Destino. Não se luta contra contra elleele, dirás tu; o melhor é deixar que nos pegueque pegue pelos cabelloscabelos e nos arraste até onde lhe ap queira alçar-nos ou despenhar-nos. Baptista nem lhe deu tempo de reflectirrefletir; era todo desculpas.

— Cinco minutos e está livre de mim, mas verá que lhe pago o obsequio sacrificiosacríficio.

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O gabinete estava bemera pequeno; poucos livros e bons, os moveismóveis graves, um retrato pelo de Baptista com a farda de presidente, um almanackalmanaque sobre a mesa, um mappamapa na parede, algumas alembrançaslembranças do governo da provinciaprovíncia. EmquantoEnquanto AyresAires circulava os olhos, Baptista foi buscar o documento. Abriu uma gaveta, tirou uma pasta, abriu a pasta, tirou o documento, um um p então só, mas com outros papeis. Este conhecia-seque não estava só, mas com outros. Conhecia-se logo, por ser um papel velho, amarelloamarelo, em partes roidoroído. Era uma carta do conde de OeyrasOeiras, escriptaescrita ao represeministro de Portugal na HollandaHolanda. A a a Carta importante, mas lon longa † mas o conselheiro podia

— É o dia das reliquias, antiquidades,antiguidades, pensou Ayres; a taboleta, o tinteiro, este autographo..., pensou Aires, a tabuleta, o tinteiro, este autógrafo...

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— A carta é longaimportante, mas longa, disse Baptista, não podemos lel-alê-la agora. Quer leval-alevá-la?

Não lhe deu tempo de responder; pegou de uma sobrecarta grande e metteumeteu dentro o manuscriptomanuscrito, com esta nota por fórafora: «Ao meu Ex.mo excellentissimoexcelentíssimo amigo Conselheiro Ayres». conselheiro Ayres. »conselheiro Aires.» EmquantoEnquanto elleele fazia isto, AyresAires passa/va\passava os olhos pelos/a\pela livros.lombada de alguns livros. Entre elleseles havia dousdous RelatoriosRelatórios da presidenciapresidência de Baptista, ricamente encadernados.

— Não me attribuaatribua esse luxo, acudiu o exp/-\presidenteex-presidente; foi um mimo da secretaria do Governo que nunca fez isto a a ninguemninguém. Era um pessoal muito distinctodistinto.

E foi áà estante e tirou um dos relatoriosrelatórios para ser melhor visto. Aberto,

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mostrou a impressão e as vinhetas; lido, podia mostrar o estyloestilo por um lado, e, por outro, a prosperidade das finanças. Baptista limitou-se aos algarismos totaestotais: despeza,despesa, 1,294: 790$000; receita , 1,55/4\4: 209$000; saldo, 294: 419$mil duzentos e noventa e quatro contos, setecentos e noventa mil reisréis; receita, mil, quinhentos quarentae quarenta e quatro contos, duzentos contos duzentos e nove mil reisréis; saldo, duzentos e quarenta e nove contos, quatrocentos e dezenove mil reisréis. Verbalmente, explicou o saldo, que alcançou pela modificação de alguns serviços, e por um pequeno augmentoaumento de impostos. Reduziu a dividadívida provincial queprovincial, que achou em trezentos e oitenta e quatro contos, e

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deixou em trezentos e cincoentas cincoentacinquenta contos. Fez obras iniciobras, iniciounovas e concertos novas e consertos importantes; iniciou uma ponte...Quiz mostrar outras providencias, quando ouviram,

— A encadernação corresponde á materiaà matéria, disse AyresAires para concluir a visita.

Baptista fechou o livro, e redarguiu que ja agora não iria sem lhelhe resolver uma consulta.

— Tudo ásàs avessas, concluiu; eu, deeu de manhã resolvo consultas, agora áà noite sou eu que as faço.

Tal foi o introito, mas do introito ao c/C\redoCredo ha sempre um passo estirado, e o principal da missa para elleele estava no c/C\redoCredo. Não achando o texto do missal, explicou-lhe uma penna sinete,

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deu uma pennapena de ouro, um exemplar do CodigoCódigo Penal.Criminal. O codigo CodigoCódigo, posto que velho, valia por trinta novos, não que tivesse melhor textorosto, se nãosenão que trazia annotações manuscriptasanotações manuscritas de um grande manuscript advogado tendojurista, Fulano. Tendo passado longa parte da vida no exterior, o Conselheiroconselheiro mal conheciamal conhecera o autor das notas, mas desde que ouviu chamar-lhe grande, assumiu a expressão adequada. Pegou do codigoCódigo com veneração, e abriu levou as folhas com cuidado leu cuidado, leu algumas dasmargens notas com veneração.

Durante esse tempo, Baptista ia tomando criando, folego criando folegocriando fôlego. e criando folego. CompozCompôs uma phrasefrase para iniciar a consulta, e só esperava que o ou AyresAires fechasse o livro

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para soltal-a; massoltá-la; mas o outro ia demorando o exame do CodigoCódigo. Podia ser uma pontinha de malignidade, mas não era. Os olhos de AyresAires tinham uma faculdade particular, menos particular do que parece, porque outros a possuirãm/o\possuirão calados. Vinha a ser que elleseles não saíam da pagina, mas em verdade ja lhe prestava menos attençãoatenção; o tempo, a gente, a vida, cousas passadas, surdiam a espial-oespiá-lo por detrazdetrás do livro com que tinham vid/v\ida/o\vivido, e AyresAires vinha ia tornando a ver um Rio de Janeiro que não era este, ou a apenas o faria lembrado?fazia lembrado. Nem cuides que eram só reosréus e juizes, pallidos e togados, era juizes, erajuízes, era o passeio, a rua, a festa, p velhos patuscos e mortos, rapazes a

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frescos e agora enferrujados, comoenferrujados como elle. Quando † elleele. Baptista tossiu,tossiu. AyresAires voltou a si , e leu alguma das notas que o outro devia trazer de córcor, mas eram tão profundas! EmfimEnfim, viu a data a vi da impressão, achou o livro bem consmirou a encadernação, e achou o livro bem conservado, e/f\echou-ofechou-o e pousou-o a estante. restituiu-o á bibliotheca.restituiu-o à biblioteca.

Baptista não perdeu um minuto,instante, correu immediato inmediatoimediato ao assumptoassunto, com medo de o ver pegar em outro livro.

— Confesso-lhe que tenho o temperamento conservador.

TambemTambém eu guardo presentes antigos.

— Não é isso; refiro-me ao temperamento politicopolítico. Verdadeiramente ha opiniões e temperamentos. Um homem

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pode póde muito bem ter o temperamento opposto ásoposto às suas ideias. As minhas ideias, se as cotejarmos com os programmas politicosprogramas políticos do mundo, são antes liberaesliberais e algumas liberrimaslibérrimas. O suffragiosufrágio universal, por exemplo, é para mim a pedra angular augular de um bom regimenregímen representativo. Ao contrariocontrário, os liberaesliberais pediram e fizeram a/o\o eleição voto censitariovoto censitariovoto censitário.,esqueci Hoje estou mais adiantado que elleseles; acceitoaceito o que está, por ora, mas antes do fim do seculoséculo é preciso rever alguns artigos da c/C\onstituiçãoConstituição, dous eou treztrês.

AyresAires escondia o espanto... Convidado assim áquellaàquela hora... Uma profissão de fé politicapolítica... Baptista tambem não cria muito, mas insistiu na insistiuinsistia na

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igual distincção dodistinção do temperamento que pelase das ideias. Alguns amigos velhos, que conheciam esta dualidade moral e mental, é que teimavam em querer que elleele aceitasse acceitasse uma presidenciapresidência; com elleele não queria. Francamente, que lhe parecia ao conselheiro ?

— Francamente, acho que não tem razão.

— Que não tenho razão em quê?

— Em recusar.

— Propriamente, não recusei ainda ninguem me trouxe propostas, mas sei que trabalham, e eu que o que desejo, de nada; ha um grandenada; há um grandegrande trabalho neste sentido, e o meu desejo, (acrest accrescentouacrescentou com mais cl clareza, — é que os bons amigos sagazes me digam se tal cousa é acertada; não me parece que seja...

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— Eu penso que é.

— De maneira que, se o caso fosse com o senhor...

Commigo Commigo,Comigo não podia ser. Sabe que eu ja não sou deste mundo, e politicamente nunca figurei em nada. A diplomacia tem esta/e\este mal effeitoefeito que separa a/o\o gente funccionariofuncionário dos seu partidos e o deixa tão alheio a elleseles, que por ficar fica impossivelimpossível de opinar com verdade, ou, quando menos, com certeza.

— Mas não me disse que acha...

— Acho.

— ...Que posso acceitaraceitar uma presidenciapresidência, se me offereceremoferecerem?

Pode Póde; uma presidencia acceita-se.presidência aceita-se.

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— Pois então saiba tudo; é a unicaúnica pessoa de sociedade com quem me abro assim francamente. A presidenciapresidência foi-me offerecidaoferecida.

Acceite, acceiteAceite, aceite.

— Está acceitaaceita.

— Já?

— O decreto assigna-se sabbadoassina-se sábado.

— Então acceiteaceite tambemtambém os meus parabensparabéns.

— Propriamente, a lembrança não f foi do ministerioministério; ao contrariocontrário, o ministerioministério não se resolveu antes de saber se effectivamenteefetivamente fiz uma eleição contra os liberaesliberais, ha annosanos; mas logo que soube que por não os perseguir é que fui demittidodemitido, acceitouaceitou a indicação

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de alguns chefes politicospolíticos, e reced/b\irecebi pouco depois este bilhete.

O bilhete estava no bolso, dentro da carteira. Qualquer outro, alvoroçado com a nomeação proximapróxima, levaria tempo a achar o bilhete no meio dos papeispapéis; mas Baptista possuiapossuía a/o\o bossa da veneração. tacto dos textos.tato dos textos. Tirou a carteira, abriu-a descançadodescansado e com os dedos saccousacou o bil bilhete do ministro convidandoconvidando-o Baptista a uma conversação. Na conversação ficou tudo assentado.

 
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CapituloCapítulo LIVI

EmfimEnfim, só!

EmfimEnfim, só! Quando AyresAires se achou na rua, só, livre, solto, entregue a si mesmo, sem grilhões nem considerações, respirou largo. Fez um monologomonólogo, que dahi d’ahidaí a pouco interrompeu por se lembrar da/e\de Flora. Tudo o que ellaela não quizeraquisera ia acontecer; lá ia aoo paepai a uma presidenciapresidência, e elle/a\ellaela com ella/e\elleele, e estaa recente inclinação ao jovenjovem Pedro vinha parar a meio caminho. Entretanto, não se arrependia

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do que dissera e ainda menos do que não dissera. Os dados estavam lançados. Agora era cuidar de outra cousa.

 
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CapituloCapítulo LVII

«A mulher é a desolação do homem»homem.»

Ao despir-sedespedir-se, fez AyresAires uma reflexão, que ponho aqui, para o caso de que algum leitor a tenho feito tambemtambém. A reflexão foi obra de espanto, e o espanto nasceu de ver como um homem tão difficildifícil em ceder ásàs instigações da esposa ( Vae-te, SatanazVai-te, Satanás, etc. cap. etc.; capitulo XLVII)etc.; capítulo XLVII) XLIX) XLVII) deitou tão facilmente o habito áshábito às

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ortigas. Propriamente não foi reflexão, foi pergunta, e o nosso Ayres não na lhe achou logo resposta. Nem a acharia port/v\entura, seortigas. Não achou explicação, nem a acharia, se não soubesse o que lhe disseram mais tarde, a saber, quetarde, que os primeiros passos da conversão do homem foram fôram dados pela mulher. «A mulher é a desolação do homem», dizia não sei que philosophofilosófo socialista, creio que Proudhon. Foi ellaela, a viuvaviúva da presidenciapresidência, que por meios variosvários e secretos, ia conseguir contrahir stramou passar a segundas nupciasnúpcias. Quando o marid Baptista elle soubeele soube do namoro, ja os banhos estavam corridos; não havia mais que consentir e casar tambemtambém.

Ainda assim, custou-lhe mu muito. O clamor dos seus aturdia-lhe de antemão os ouvidos, a alma ia

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cega, e/t\ontatonta, mas a esposa servia -lhe de guia e amparo, e, com poucas horas, Baptista viu claro e ficou firme.

— Estamos áà porta orta do terceiro reinado, ponderou D. ClaudiaDona Cláudia, e certamente o partido liberal não deixa tão cedo o poder. Os seus homens são válidos, a inclinação dos tempos é para o liberalismo, e você mesmo...

— Sim, eu... suspirou Baptista.

D. ClaudiaDona Cláudia não suspirou, cantou victoriavitória; a reticenciareticência do marido era a primeira figura de acquiescenciaaquiescência. Não lhe disse isto assim, nu e cru; tambemtambém não revelou alegria descomposta; falou sempre a linguagem da razão fria e da vontade certa. Baptista, sentindo-se

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apoiado, caminhou para a o abysmoabismo e deu o salto nas trevas. Não o fez sem graça, nem com ellaela. Posto que a vontade que trazia fosse de emprestimoempréstimo, não lhe faltava desejo a que a outra deu vida e fortaleza e dahivontade da esposa deu vida e fortalezaalma. DahiDaí a autoria de que elle se acabou por investir-se se investiu e acabou confessando.

Tal foi a conclusão de AyresAires, segundo se lê no Memorial. Tal será a do leitor,† se, em verdade, sabe tambem se gosta tambem de concluir alguma cousa. Note que aqui lhe ponho se gosta de concluir. Note que aqui lhe poupei o trabalho de AyresAires; não o obriguei a achar por si o que, de outras vezes, é obrigado a fazer. O leitor attentoatento, verdadeiramente ruminante, tem quatro estomagosestômagos no cerebrocérebro, e por

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elleseles faz passar e repassar os actosatos e os factosfatos, até que os explica. por den delles deduz a verdade, que estava, ou parecia estar escondida.

 
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CapituloCapítulo LVIX

O golpe.

O dia seguinte trouxe áà menina Flora a grande novidade. SabbadoSábado seria assignadoassinado o decreto; a presidenciapresidência era no norte. D. ClaudiaDona Cláudia não lhe viu a pallidezpalidez, nem sentiu as mãos frias, continuou a falar do caso e do futuro, até que Flora, querendo sentar-se, quasiquási caiu. A mãe acudiu-lhe: «Que

— Que é? Que tens?

— Nada, mamãe, não é nada.

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A mãe fel-afê-la sentar-se.

— Foi uma tonteira, passou.

D. ClaudiaDona Cláudia deu-lhe a cheirar um pouco de vinagre, esfregou-lhe os pulsos; Flora sorriu.

— Este sabbadosábado? perguntou.

— O decreto? Sim, este sabbadosábado. Mas não digas por ora a ninguemninguém; são segredos de gabinete. É cousa certa; emfimenfim, alguemalguém nos fez justiça; provavelmente o imperador. Amanhã irás commigocomigo a algumas encommendasencomendas. Faze uma lista do que precisas.

Flora precisava não ir e só pensava nisso. Uma vez que o decreto estava prestes a ser assignadoassinado, não havia ja desaconselhar a nomeação; restava-lhe

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a ellaela ficar. Mas como? Todos os sonhos são propriospróprios ao somnosono verde de uma creançacriança. Não era facilfácil, mas não seria impossivelimpossível. Flora cria tudo; não tirava o pensamento de AyresAires, e ja agora de Natividade tambemtambém. Os podous podiam fazel-ofazê-lo, ou antes os tres treztrês, se contardes tambemtambém o barão, e se vier a cunhada deste, quatro. Juntai aos quatro , as cinco estrellasestrelas do Cruzeiro, as nove musas, anjos e archanjosarcanjos, virgens e martyresmártires... Juntai-osJuntai-os tod todos, e todos poderiam fazer esta simples acçãoação de impedir que Flora fosse p para a presidencia provinciaprovíncia. TaesTais eram as esperanças vagas, rapidasrápidas, que vinhamcorriam a substituir as tristezas do rosto da moça,

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em qqa emquantoenquanto a mãe, attribuindoatribuindo o effeitoefeito ao vinagre, ajustava a rolha de vidro ao frasco, e restituiarestituía aoo frasco ao toucador.

— Faze uma lista do que precisas, repetiu áà filha.

— Não, mamãe, eu não preciso nada.

— Precisas, sim, eu sei doo que precisas.

 
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CapituloCapítulo LVIII LIX LVII

Das encommendasencommendas.encomendas.

Não escreveria este capitulocapítulo, se elleele fosse propriamente das encommendasencomendas, mas não é. Tudo são instrumentos nas mãos da Vida. As duas sairamsaíram de casa, uma lepidalépida, a outra melancolicamelancólica, e lá foram fôram a escolher uma infinidade quantidade de objectosobjetos de viagem e de uso pessoal. D. ClaudiaDona Cláudia pensava nos vestidos da primeira recepção e de visitas; também ideou o do desembarque. Tinha ordem do marido para comprar algumas gravatas. Os chapeoschapéus,

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entretanto, foram fôram o principal artigo da lista. Ao parecer de D. ClaudiaDona Cláudia, o chapeochapéu da mulher é que dava a nota verdadeira da/o\do elegancia,gosto, das maneiras e da cultura da/e\de uma sociedade. Não valia a pena acceitaraceitar uma presidenciapresidência para levar chapeoschapéus do anno p sem graça, dizia ellaela sem convicção, porque intimamente pensava que a presidenciapresidênciadavagraça a tudo.

Estavam justamente na loja de chapeoschapéus, rua do Ouvidor, sentadas, os olhos fórafora e longe, quando a verdadeira materiamatéria deste capitulo appareceucapítulo apareceu. Cham Não era Pedro, era Era o gemeoEra o gêmeo Paulo, que chegara pelo trem nocturnonoturno, e sabendo que ellaselas andavam a compras, viera procural-asprocurá-las.

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— O senhor! exclamaram.os dous. as duas.

— Cheguei esta manhã.

Flora tinha-se levantado, com o alvoroço que lhe deu a vista inesperada de Paulo. ElleEle correu a ellaselas, apertou-lhes as mãos, indagou da saudesaúde, e reconheceu que pareciam vender saudesaúde e alegria. Realm CerA impressão era exactaexata; Flora tinha agora uma agitação, que contrastava com a apathiao abatimento daquelladaquela triste manhã, e um riso que a fazia alegre.

— Tive sempre noticiasnotícias das senhoras, que mamãe me dava,, e Pedro tambemtambém, ásàs vezes. Da senhora, continuou elleele falando a D. ClaudiaDona Cláudia, recebi duas cartas. Como vaevai o doutor?

— Bem.

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— Ora, emfimenfim!, cá estou!

E Paulo dividia os olhos com as duas, mas a melhor parte ia naturalmente para a filha. Pouco depois era todo e pouco para esta. D. Claudia voltáraDona Cláudia voltara áà escolha dos chapeoschapéus, e Flora, que até então opinava de cabeça, perdeu este ultimoúltimo gesto. Paulo sentou-se na cadeira que um empregado lhe trouxe, e ficou a olhar para a moça; falavam-se de cousas minimasmínimas, alheias ou propriaspróprias, tudo o que bastasse para os reter disfarçadamente na contemplação um do outro. Paulo viera o mesmo que fora fôra, o mesmo que Pedro, sempre com alguma nota particular, que se ellaela não podia aclaachar claramente,

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nemmenos ainda definir. Era um mysteriomistério; Pedro teria o seu.

D. ClaudiaDona Cláudia interrompia-os, de vez em quando, a propositopropósito de chapeosda escolha; mas, tudo acaba, até a escolha de chapeoschapéus. Foram dalli Fôram d’alliForam dali aos out vestidos aos vestidos. Paulo, não sabendo da presidenciapresidência, estimou esta casualidade para as acompanhar de loja em loja. Contava anecdotasanedotas de S.São Paulo, sem grande interesse para ella;Flora; as noticiasnotícias que ellaela lhe dava, àcerca dava ácercadava acerca das amigas, eram mais ou menos dispensaveisdispensáveis. Tudo valia pelos dous interlocutores. A rua ajudava aquella absorpção reciprocaaquela absorção recíprocaaps; as pessoas que iam ou vinham, damas ou cavalheiros, parassem ou não, serviam

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de ponto de partida a alguma digressão. As digressões davamentraram a dar as mãos ao silenciosilêncio, e os dous seguiam com a mãe os os olhos espraiados e a cabeça alta, elleele mais que ellaela, porque uma pontinha de melancolia começava a espancar do rosto da moça a satisfação da ultimalegria da hora recente.

Na rua Gonçalves Dias, indo para o largo da Carioca, Paulo viu dous ou tres treztrês politicospolíticos de S.São Paulo, re republicanos, parece que fazendeiros. Havendo-os deixado lá, admirou-se de os ver aqui, sem advertir que a ultimaúltima vez que os viu vira ia ja a alguma distanciadistância.

Conhecia/em\Conhecem? perguntou ásàs duas.

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Não, não os conheciam. Paulo disse-lhes os nomes. A mãe talvez fizesse alguma pergunta política, mas deu por falta de um objectoobjeto, advertiu que o não compráracomprara, e propozpropôs voltarem atrazatrás. Tudo era acceitoaceito por ambos, com dolicidocilidade, apezarapesar do veuvéu de tristeza, que se ia cerrando mais no rosto da moça. AquellasAquelas encommendasencomendas tinham ja um ar d de bilhetes de passagem, não tardava o paquete, iam correr ásàs malas, aos arranjos, ásàs despedidas, ao camarote de bordo,ao ao enjoo enjôo de mar, e áquelleàquele outro de mar e terra, que a mataria, com certeza, cuidava Flora. DahiDaí o silenciosilêncio

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crescente, que Paulo mal podia vencer de quando em quando; e comtudocontudo ellaela estava bem com elleele, gostava de lhe ouvir dizer cousas soltas, algumas novas, outras velhas, recordações anteriores áà partida daqui para S.São Paulo.

Assim se deixaram ir, guiados por D. ClaudiaDona Cláudia, quasiquási esquecida de dellesdeles. No meio daquelladaquela conversação truncada, mais entretida por elleele que por ellaela, Paulo sentia impetosímpetos de lhe perguntar, ao ouvido, na rua, se pensára nellepensara nele, ou, ao menos, sonhárasonhara com elleele algumas vezesnoites. Ouvindo que não, daria expansão espansão á coleraà cólera, dizendo-lhe os ultimos improperiosúltimos impropérios;

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se ellaela corresse, correria tambemtambém, até pegal-apegá-la pelas fitas do chapeochapéu ou pela manga do vestido, e, em vez de a esganar, dançaria com ellaela uma valsa de Strauss ou uma polkapolca de ***. Logo depois, d ria destes deliriosdelírios, porque, a despeito da melancolia da moça, os olhos que ellaela erguia para elleele eram d de quem sonhou e pensou muito na pessoa, e agora cuida de descobrir se é a mesma do sonho e do pensamento. Assim p lhe parecia ao estudante de direito; pelo que, quando elleele desviava o rostorosto, era para repetir a experienciaexperiência e tornar a ver-lhe os olhos aguçados do mesmo espiritoespírito

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criticocrítico e de livre exame. Quanto ao tempo que os tres treztrês gastaram nessa agitação de compras e escolhas, visões e comparaçoescomparações, não ha memoriamemória delledele, nem propriamente necessidade. Tempo é propriamente officioofício de relogiorelógio, e nenhum dellesdeles consultou o relogiorelógio que trazia.

 
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CapituloCapítulo VIX LVIII

Matar saudades. 

Ora bem, acabas de ver como Flora recebeu o irmão de Pedro; tal qual recebia o irmão de Paulo. Am de Paulo. Ambos eram apostolosapóstolos. Paulo achava-a agora mais bonita que alguns mezesmeses antes, e disse-lh’odisse-lho nessa mesma tarde em S.São Clemente, com umaesta palavra cordfamiliar e cordial:

— A senhora está enfeitando muito.enfeitou muito.

Flora achavajulgava a mesma cousa, relativamente ao estudante de direito; mas

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calou a impressão. Em caza sentiuOu a tristeza que trazia, ou qualquer outra sensação particular, fel-afê-la acanhada, depoisa principio.a princípio. Não tardou, porém, que achasse outra vez o gemeogêmeo no gemeogêmeo, e que elleele e ellaela matassem saudades.

Como é que se matam saudades não é cousa que se explique de um modo claro. ElleEle não ha ferro nem fogo, corda nem veneno, e todavia as saudades expiram, para resuscita a ressurreição, no terceiro dia depoisalguma vez antes do terceiro dia. Ha quem creia que, ainda mortas, são doces, mais que doces. Esse ponto, no nosso caso, não pode póde ser ventilado, nem eu quero desenvolvel-odesenvolvê-lo, como aliás cumpria. Vamos andando ao passo do capitulo, que é curto. Vamos andandoao passo do estylocumpria.

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As saudades morreram, não todas, nem logo, logo, mas em parte e tão vagarosamente que Paulo acceitouaceitou o convite de la jantar. Era o dia da chegada; Natividade quizera tel-o comsigoquisera tê-lo consigo áà mesa, ao pé de Pedro, para cimentar a pacificação começada pela distanciadistância. Paulo nem se deu ao trabalho de lá mandar; deixou-se estar com a bella creaturabela criatura, entre o paepai e a mãe que pensavam em outra cousa, proximapróxima no tempo e remota no espaço. Sabendo o que era, Flora passava do prazer ao tediotédio, e Paulo não entendia essa alternação de sentimentos. De quando em quando, vendo a mãe agitada e preoccupadapreocupada, mas

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com outra expressão, Paulo interrogava a filha. Em vez de dar uma explicação qualquer, Flora passou a/u\mauma vez asa mão pelos olhos e ficou alguns instantes sem os descobrir. A acçãoação do estudante de direito, devia ser arredar-lhe a mão, encaral-aencará-la de perto, mais perto, totalmente perto, e repetir a pergunta por um modo em que a eloquenciaeloquência do gesto dispensasse a fala. Se tal ideia teve, não saiu cá fórafora. Nem ellaela lhe consentiu mais tempo que o da pergunta:

— Que é que tem?

— Nada, respondeu Flora.

— Tem alguma cousa, insistiu elleele

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querendo pegar-lhe na mão.

Não acabou o gesto, não o começou sequer; não o esboçou;abriu e fechou os dedos apenas, emquanto ellaenquanto ela sorria para sacudir tristezas, e deixou-se estar a matar saudades.

 
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CapituloCapítulo LXI LIX

Noite de 1414.

Tudo se explicou áà noite, em casa da gente familiafamília Santos. O ex-presidente de provinciaprovíncia confessou as esperanças de uma investidura nova; a esposa affirmouafirmou a iminência imminencia eminencia do acto.do ato. DahiDaí a publicidade da noticianotícia, que pouco antes D. ClaudiaDona Cláudia só dizia em segredo. Já não havia segredos que calar.

Paulo soube então tudo, e Pedro, que mal conhecia alguns preliminares, acabou sabendo o resto. Ambos naturalmente

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sentiram a separação proximapróxima. A dor dôr os fez amigos por instantes; é uma das vantagens dessa grande e nobre sensação. Já me não lembra quem affirmavaafirmava, ao contrariocontrário, que um odio commumódio comum é o que mais liga duas pessoas. Creio que sim, mas não descreio do meu postulado, por esta razão que uma cousa não tolhe a outra, e ambas podem ser verdadeiras.

De restoDemais, a dor dôr delles não era propriamenteainda o desespero. Havia até uma consolação para os dous gemeosgêmeos: é que a moça ficaria longe de ambos, uma vez que a provincia escolhida não era fosse era S. Paulo nem Rio de Janeiro. Nenhumambos. Nenhum dellesdeles teria o gosogozo

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exclusivo da presença proximaao pé da porta. Não ha mal que não traga um pouco de de bem, e por isso é que o mal é utilútil, muita vez indispensavelindispensável, alguma vez delicioso. Os dous quizeramquiseram falar áà boa amiga, amiguinha, em particular, para sondal-a ácerca daquellasondá-la acerca daquela separação, , ja agora certa, mas nenhum conseguiu este desejo. Vigiavam-se, isso sim. Quando lhe falavam, era sempre juntos, e de cousas elegantes ou somentefamiliares e ordinariasordinárias. O gesto de Flora não traduzia o estado da alma; esp/t\eeste podia ser lepido,lépido, ou melancolicomelancólico, acasoou indifferenteindiderente, não vinha cá fórafora. Em verdade, ellaela falava pouco. Os olhos tambemtambém não diziam muito. Mais

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de uma vez, Pedro deu com ellaela fitando Paulo, e gemeu com a preferenciapreferência, mas tambemtambém elleele era prefe era preferido depois, e achava a compensação; Paulo então é que rangia os dentes, figuradamente. Natividade, toda entregue áà sua recepção, que era a ultimaúltima do annoano, não acompanhou de perto as agitações moraes daquellemorais daquele trio. Quando deu por ellaselas, chegou a sentil-as tambemsenti-las também.

Pouco a pouco, a gente se foi dispersando. Não era muita, e dominava a nota intima.íntima. Quando a maioria parte fica saiu, ficou só a porção mais intimaíntima, tres treztrês ou quatro homens a um canto da sala, falando e rindo

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de ditos e anecdotasanedotas. Não conversavam de politicapolítica, e aliás não faltaria materiamatéria. As mil moças, aliás pela segunda ou terceira vez, trocavam as impressões do grande baile recente. TambemTambém falavam de musicasmúsicas e theatrosteatros, das f festas proximaspróximas de PetropolisPetrópolis, e da gente que a ia naquellenaquele annoano, e da que só iria em Janeiro. Natividade dividia-se com todos, até que, podendo ficar alguns instantes com AyresAires, confiara -lhe ainda o seu temorreceio ácercaacerca do amor dos filhos, e ao mesmo tempo o prazer que lhe trazia a esperança de uma longa separação de Flora. O conselheiro não desdizia do receio, nem da esperança. , e concluia:

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— É uma felicidade que o Baptista seja nomeado e leve a filha daqui, disse ella.— É uma felicidade que o Baptista seja nomeado e leve a filha daqui, disse ela.

— Certamente, mas...

— Mas quê?

— Certamente a levará, mas a senhora pode póde não conhecer bem aquellaaquela menina.

— Penso que é boa.

TambemTambém eu penso assim. A bondade, porém, não tem nada com o resto da pessoa. Flora é, como ja lhe disse ha tempos, uma creaturainexplicavelinexplicavelinexplicável. Agora é tarde para lhe explicardizer expôrexpor os fundamentos da minha impressão; depois lhe direi. Note que góstogosto muito delladela; acho-lhe um sabor particular naquellenaquele contraste de uma pessoa assim, tão humana e tão fórafora do mundo, tão ethereaetérea e

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tão ambiciosa, ao mesmo tempo, de uma ambição reconditarecôndita... Vá perdoando estas palavras mal embrulhadas, e até amanhã, concluiu elleele, estendendo-lhe a mão. Amanhã virei explical-asexplicá-las.

— Explique-as agora, emquantoenquanto os outros parecem rir de algum dito engraçado.

EffetivamenteEfetivamente, os homens riam de umalgum dito ou de um trocadilho; AyresAires quizquis falar, mas reteve a lingualíngua, e desculpou-se. A explicação era difficil; ella lin longa e difficil dificildifícil, viria d e não era urgente, disse elleele.

— Eu mesmo não sei m/s\ese me entendo, baronezabaronesa, nem se penso a

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verdade; pode póde ser. Em todo caso, minha boa amiga, até Petropolisamanhã ou até PetropolisPetrópolis. Quando espera subir?

— Lá para o fim do annoano.

— Então ainda nos veremos algumas vezes.

— Sim, e, se me não vir a mim, quero que veja os meus rapazes, que os receba e estime. e guie Elles oEles o temtêm em grande conta; não lhe fazem senão justiça. Pedro acha que o senhor é o espiritoespírito mais fino, e Paulo o mais rijo da nossa terra...

— Veja como a senhora os educa, ensinando-lhes a pensar errado, disse AyresAires sorrindo e fazendo um gesto

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de agradecimento. Eu rijo?

— O mais rijo e o mais fino.

Os d ultimosúltimos habituados da casa vieram dar boa noite áà dona. Dez minutos depois, AyresAires despedia-se do casal Santos.

A noite era clara e tranquilla.tranquila. Ayres recompozAires recompôs de memoria uma parte do serão para escrevel-aescrevê-la no Memorial. Poucas linhas, mas interessantes, nas quaesquais Flora era a principal figura: «Que o Diabo a entenda, se puder; eu, que sou menos que elleele, não acabareiacerto de a entender nunca. HontemOntem parecia querer a um, hoje quizquis ao outro; pouco antes das despedidas, queria a ambos. Encontrei

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outr’oraoutrora desses sentimentos alternos e simultaneossimultâneos; eu mesmo fui uma e outra cousa, e nunca deixei de me entender.sempre me entendi a mim. Mas aquellaaquela menina e moça... A condição dos gemeosgêmeos explicará esta inclinação dupla; pode ser tambem tambem que póde ser tambem quepode ser também que alguma qualidade falte a um que sóbresobre a noutro, e vice-versa, e ellaela, pelo gosto de ambas, não chacaba de escolher de vez. É phantasticofantástico, sei; maismenos phantasticofantástico ainda será se é se elleseles, destinados áà inimizade, achemacharem nesta mesma creaturacriatura um campo estreito de odio,ódio, mas isto os explicaria a elleseles, não a ellaela... Seja o que fôrfor, a nossa organisação politicaorganização política é

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util;útil; a presidenciapresidência de provinciaprovíncia, arredando Flora daqui, por algum tempo, tira esta moça da situação em que se acha, como a asna de Buridan. Quando voltar, a aguaágua estará bebida e a cevada comida. Um decreto ajudará a natureza.»

Isto feito, Ayres metteu-seAires meteu-se na cama, rezou uma ode do seu HoracioHorácio e fechou os olhos. Nem por isso dormiu. Tentou então uma paginapágina do seu Cervantes, outra do seu Erasmo, fechou novamente os olhos, até que dormiu. Pouco foi; ásàs cinco horas e quarenta minutos estava de pé. Em novembro, sabes que é dia.

 
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CapituloCapítulo XI LXIIVLX

Manhã de 1515.

Quando lhe acontecia o que ficou contado, era costume de AyresAires sair cedo, e ir a alguma distracção. Nem semprea espairecer. Nem sempre acertava. Desta vez foi ao Passeio PublicoPúblico. Chegou ásàs sete horas e meia, entrou, subiu ao terraço e olhou para o mar. O mar estava crespo. AyresAires começou a passear ao longo do terraço, ouvindo as ondas, e chegando-se áà borda, de quando em quando, para vel-asvê-las bater e recuar. Gostava

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dellasdelas assim; achava-lhes uma especieespécie de alma grande,forte, que as movia para mettermeter medo áà terra. A aguaágua, enroscando-se em si mesma, dava-lhe uma sensação, mais que de vida, de pessoa tambemtambém, a que não faltavam nervos nem musculosmúsculos, nem a voz que bradava as su suas zangas coleras.cóleras.

Afinal,Emfim,Enfim, cançoucansou e desceu, foi-se ao lago, tran parado, a manquieto, ao arvoredo e passeou áà toa, cit recitando versos e prosas revivendo homens e cousas, até que se sentou em um banco. Notou então que a pouca gente que havia alliali não estava sentada, como de costume, olhando áà toa, lendo gazetas

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ou cochilando a vigiliavigília de uma noite sem cama. Estava de pé, falando entre si, e a outra que entrava par ia pegando na conversação sem conhecer os interlocutores; assim lhe pareceu, ao menos. Chegou a ouvirOuviu algumas umas palavras soltas, Deodoro, batalhões, campo, , ministerio ministério, etc. Algumas, ditas em voztom alta/o\alto, vinham acaso para elleele, a ver se lhe espertavam a curiosidade, e se obtinham mais uma orelha ásàs noticiasnotícias. Não juro que assim fosse, porque o dia vaevai longe, e as pessoas não eram conhecidas. O propriopróprio AyresAires, se tal su/co\usacousa suspeitou, não a disse a ninguemninguém; tambemtambém não afiou o

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ouvido para alcançar o resto. Ao contrariocontrário, lembrando-lhe algo particular, tir escreveu a lapislápis uma nota na carteira. Tanto bastou para que os curiosos se dispersassem, não sem algum epithetoepíteto de louvou/r\louvor, aouns ao governo, outros ao exercitoexército: Ayres podia ser espiãoamigo de um ou de outro.

Quando AyresAires saiu do Passeio PublicoPúblico, suspeitava alguma cousa, e caminhou a péseguiu até o largo da Carioca. Poucas palavras e sumidas, gente parada, caras espantadas, outras medrosas vultos que arrepiavam caminho, mas nenhuma noticianotícia clara nem completa. Não tendo almoçado, metteu-se no primeiro tilbury Na rua do Ouvidor, soube que os militares tinham

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descido victoriososfeito uma revolução, ouviu descripçõesdescrições , mda marcha e das pessoas, e noticiasnotícias desencontradas. Voltou ao largo, onde treztrêslhe tilburystílburis o disputaram; elleele entrou se umno que lhe ficou mais áà mão, e mandou tocar para o CatteteCatete. Não perguntou nada ao Co cocheiro; este é que lhe disse tudo e o resto. Falou de uma revolução, de dous ministros mortos, um fugido, os demais presos. O imperador, capturado em PetropolisPetrópolis, vinha descendo a serra.

AyresAires olhava para o cocheiro, cuja palavra saía com amordeliciosa de novidade. Não lhe era desconhecido este/a\ homem creatura. Vira-o/a\ de casaca e de fraque, ao jogo e á missa, de decotada e perolas nasdesconhecida esta creatura. Já a vira, sem o tilbury, na rua ou na sala, á missa ou a bordo, nem sempre homem, alguma vez mulher, vestida de seda oudesconhecida esta criatura. Já a vira, sem o tílburi, na rua ou na sala, à missa ou a bordo, nem sempre homem, alguma vez mulher, vestida de seda ou

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olh orelhas. As novas saia de chita. Quiz saber mais,de chita. Quis saber mais, mostrou-se interessado e curioso, e acabou perguntando , se realmente houvera o que dizia. O cocheiro contou que ouvira tudo a um homem que trouxera da rua dos InvalidosInválidos e leváralevara ao largo da GloriaGlória, por signalsinal que estava assombrado, não podia falar, pedia-lhe que corresse, que lhe pagaria o dobro; e pagou.

— Talvez fosse de algum dos parimplicadodos comba no barulhoimplicado no barulho, barulho, suggeriu Ayressugeriu Aires.

TambemTambém pode póde ser, porque elleele levava o chapéochapéu derrubado, e a principioprincípio pensei que tinha sangue nos dedos, mas reparei e vi que era barro; com certeza, vinha de descer

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algum muro. Mas, pensando bem, creio que era sangue; barro não tem aquellaaquela côr.cor. A verdade é que elleele pagou o dobro da viagem, e com razão, porque a cidade não está segura, e a gente corre grande risco levando pessoas de um lado para outro...

EraChegavam justamente áà porta de AyresAires; este mandou parar o vehiculoveículo, pagou pela tabellatabela e desceu. Subindo a escada, ia naturalmente pensando nos acontecimentos possiveispossíveis. No alto achou o criado que sabia tudo, e lhe perguntou se era certo...

— O que é que não é certo, José? É mais que certo.

— Que te se tem matado gente?mataram tres matáram trezmataram três ministros?

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— Tres? Creio que sim Parece que est ha quatro feridos — Não; ha só um ferido.— Não; há só um ferido.

— Eu ouvi que mais gente tambemtambém, falaram em dez mortos...

— A morte é um phenomenofenômeno igual egual áà vida; talvez os mortos vivam. Em todo caso, não lhes rezesrézesrezes por alma, porque não és bom catholicocatólico, José.

 
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CapituloCapítulo LXVIII LXI

Lendo Xenofonte Xenophonte.Xenofonte.

Como é que, tendo ouvido falar da morte de dous e tres treztrês ministros, Ayres affirmouAires afirmou apenas o ferimento de um, ao rectificarretificar a noticianotícia do criado? Só se pode póde explicar de dous modos, — ou pelo sentimentopor um nobre sentimento de piedade que muita vez coroa remata uma longa vida, ou por esta regrapela opinião de que toda a noticia publicanotícia pública crescecresce de umdous terços, ao menos. A Qualquer que fosse a causa, a versão do ferimento era a unicaúnica verdadeira. Pouco depois

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passava pela rua do CatteteCatete a padiola que levava um ministro, ferido. Ja então a noticia da revolução eraSabendo q que os outros ministros estavam soltosvivos e sãos e o imperador era esperado de PetropolisPetrópolis, não acreditou de todo na mudança de regimenregímen annuque ouvira ao cocheiro de tilbury, ao criado José e depois ao Custodio da Co confeitaria tilbury e ao criado Josétílburi e ao criado José. Reduziu tudo a um movimento, quemovimento que ia acabar com a simples mudança de pessoal.

— Temos gabinete novo, disse comsigoconsigo.

Almoçou tranquillotranquilo, lendo uma pagina de Xenofonte Xenophonte: «Considerava eu um dia quantas republicas temrepúblicas têm sido derribadas por cidadãos que desejam outra especieespécie de governo, e quantas monarchiasmonarquias e olygarchiasoligarquias foramsão destruidasdestruídas pela

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sublevação dos povos; e de quantos sobem ao poder, uns são depressa derribados, outros, se duram, são admirados por habeishábeis e felizes...» Sabes a conclusão do autor, em prol da thesetese de que o homem é difficildifícil de governar; mas logo depois a pessoa de Cyro destróe aquellaCiro destrói aquela conclusão, mostrando um só homem que regeu milhões de outros, os quaesquais não só o temiam, mas ainda lutavam por lhe fazer as vontades. Tudo isto em grego, e com tal pausa que elleele chegou ao fim do almoço, sem chegar ao fim do segundoprimeiro capitulocapítulo.

 
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CapituloCapítulo LXII

«Pare no d. I»

Mas, S. Ex.Mas Sua Excelência está almoçando, dizia o criado no patamar da escada a alguemalguém que queria pedia para falar ao conselheiro.

Era falso, AyresAires acabava justamente de almoçar; mas o criado sabia que o amo gostava de saborear o charuto depois do almoço, sem interrupção. Agora estava no canapé e ouviu o dialogodiálogo do patamar. A pessoa insistia em dizer uma palavrinha.

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— Não pode póde ser.

— Bem, eu espero; logo que S. Ex.Sua Excelência acabe...

— O melhor é voltar dep logo;depois; não mora alliali defronte? Pois volte daqui a uma hora ou duas...

A pessoa era o CustodioCustódio da Cone foi para para casa, mas o velho diplomata, sabendo quem era, não esperou que acabasse o charuto; mandou-lhe dizer que viesse. CustodioCustódio saiu, correu, su subiu e entrou assombrado.

— Que é isso, Sr. CustodioSenhor Custódio? disse-lhe AyresAires. O senhor anda a fazer revoluções?

— Eu, senhor? Ah! senhor! Se V. Ex.Vossa Excelência soubesse...

— Se soubesse o quê?

CustodioCustódio explicou-se. Vá, resumamos a explicação. 

Na vesperavéspera, tendo de ir abaixo, CustodioCustódio foi áà rua da AssembléaAssembleia, onde se pintava a taboletatabuleta. Era já tarde; o pintor suspendera o trabalho trabalho. Só algumas das letras ficaram pintadas, — a palavra Confeitaria e a letra Dd. A letra o e a palavra imperioimpério estavam só debuxadas a giz. Gostou da tinta

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e da côrcor, reconciliou-se com a reforma fórmaforma, e apenas perdoou a despeza. Recommendoudespesa. Recomendou pressa. Quisera Queria inaugurar a taboletatabuleta no domingo.

Ao acordar na sexta-feira de manhã não soube logo do que houvera na cidade, mas pouco a pouco vieram vindo as noticiasnotícias, viu passar um batalhão, e creu que lhe diziam a verdade os que affirmavamafirmavam a revolução e vagamente a republicarepública. A principioprincípio, no meio do espanto, esqueceu-lhe a taboletatabuleta. Quando se lembrou delladela, comprehendeu que sustarviu que era preciso preciso sustar a pintura. Escreveu ásàs pressas um bilhete e mandou um caixeiro ao pintor. O bilhete

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dizia só isto: «Pare no D.» Com effeito,efeito, não era preciso pintar o resto, que seria perdido, nem perder o principioprincípio, que podia valer. Sempre haveria palavra que occupasseocupasse o logarlugar das letras restantes. «Pare no D.»

Quando o portador d voltou trouxe a noticianotícia de que a taboletatabuleta estava promptapronta.

— Você viu-a promptapronta?

— Vi, patrão.

— Tinha escriptoescrito o nome antigo?

— Tinha, sim, senhor: «Confeitaria do imperio.»império».

CustodioCustódio enfiou um casaco de alpaca e voou áà rua da AssembléaAssembleia. Lá estava a taboletatabuleta, por signalsinal

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que coberta com um pedaço de chita; alguns rapazes que a tinham visto, ao passar na rua, quizeramquiseram rasgal-a, rasgal-a;rasgá-la; o pintor, depois de a defender com boas palavras, achou mais efficaz cobril-aeficaz cobri-la. Levantada a cortina, CustodioCustódio leu: «Confeitaria do imperio império.» Era o nome antigo, o propriopróprio, o d celebrecélebre, mas era a destruição agora; não podia conservar um dia a taboletatabuleta, ainda que fosse em beccobeco escuro , quanto mais emna rua do CatteteCatete...

— O senhor vaevai despintar tudo isto, disse elleele.

— Não entendo. Quer dizer que o senhor paga primeiro a despezadespesa. Depois, pinto outra cousa.

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— Mas que perde o senhor em substituir a ultimaúltima palavra por por outra? A primeira f pode póde ficar, e mesmo o D d... Não leu o meu bilhete?

— Chegou tarde.

— E porquepor que pintou, quandodepois de tão graves acontecimentos?

— O senhor tinha pressa, e eu accordei ásacordei às cinco e meia para servil-oservi-lo. Quando me contaram as cousas deram as noticias,deram as notícias a taboletatabuleta estava promptapronta. Não me disse que queria pendural-apendurá-la domingo? Tive de pôr muito seccantesecante na tinta, e, alemalém da tinta, gastei tempo e trabalho.

CustodioCustódio quizquis repudiar a obra,

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mas o pintor ameaçou de pôr o numeronúmero da Confeitariaconfeitaria e o nome do do dono na taboletatabuleta, e expol-aexpô-la assim, para que os revolucionariosrevolucionários fo lhe fossem quebrar as vidraças do CatteteCatete. Não teve remedioremédio se nãosenão capitular. Que esperasse; ia pensar na substituição; em todo caso, pedia algum abate no preço. Alcançou a promessa do abate e corvoltou a casa. Em caminho, pensou no que perdia mudando de titulotítulo, — uma casa tão conhecida, desde annosanos e annosanos! Então, lembrou-lhe consultar o visinho Ayres e correu a vel-oDiabos levassem a revolução! Que nome lhe poria agora? Nisso lembrou-lhe o visinho Ayresvizinho Aires e correu a ouvil-oouvi-lo.

 
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CapituloCapítulo LXIII

TaboletaTabuleta novanova.

Referido o que lá fica atrazatrás, CustodioCustódio confessou tudo o que perdia no titulotítulo e na despezadespesa, o mal que lhe trazia a conservação do nome da casa, a impossibilidade de achar outro, um abysmoabismo, em summasuma. Não sabia que buscasse; faltava-lhe invenção e paz de espiritoespírito. Se pudesse, liquidava a confeitaria. E afinal que tinha elleele com politicapolítica? Era um simples fabricante de docese vendedor de doces, estimado,

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afreguezadoafreguesado, respeitado, e principalmente respeitador da ordem publicapública...

— Mas o que é que ha? perguntou AyresAires.

PareceA Republica republicarepública está proclamada.

— Já ha governo?

— Penso que ja; mas diga-me V. Ex.Vossa Excelência ouviu alguem accusar-mealguém acusar-me jamais de attacaratacar o governo? NinguemNinguém. Entretanto... Uma fatalidade! Venha em meu soccorrosocorro, ExcellentissimoExcelentíssimo. Ajuda-meAjude-me a sair deste brejo embaraço. A taboletatabuleta está promptapronta, o nome todo pintadopintado. — «Confeitaria do ImperioImpério», a tinta é viva e bonita. O pintor teima em que lhe pague o trabalho, para então fazer outro. Eu, se a obra não estivesse acabada,

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mudava de titulo,título, por mais que me custasse, mas heidehei de perder o dinheiro que gastei? V. Ex.Vossa Excelência crê que, se ficar « Imperio,»Império», venham quebrar-me as vidraças?

— Isso não sei.

— Realmente, não ha motivo; é o nome da casa, nome de trinta quarentatrinta annos, annos.anos. ninguemNinguém a conhece de outro modo…

— Mas pódepode pôr «Confeitaria da RepublicaRepública...»

— Lembrou-me isso, em caminho, mas tambemtambém me lembrou que, se daqui a um ou dous mezesmeses, houver nova reviravolta, fico no ponto em que estou hoje, e perco novame outra vez o dinheiro.

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— Tem razão... Sente-se.

— Estou bem.

— Sente-se e fume um charuto.

CustodioCustódio recusou o charuto, não fumava. AcceitouAceitou a cadeira. Estava no gabinete de trabalho, em que maisalgumas curiosidades lhe chamariam a attençãoatenção, se não fosse o atordoamento do espiritoespírito. Custodio punhaContinuou a implorar o soccorro do visinha/o\visinhovizinho. S. Ex.Sua Excelência, pocom a grande intelligenciainteligência que Deus lhe dera, podia salval-osalvá-lo. Ayres propoz-lheAires propôs-lhe um meio termo, um titulotítulo que iria comcom ambas as hypotheseshipóteses, — «Confeitaria do Governogoverno».

— Tanto serve para um caso regimenregímen como para outro.

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— Não digo que não, e, a não ser a despezadespesa perdida... Ha, porém, uma razão contra. V. Ex.Vossa Excelência sabe que não hanenhum governo que não tenhadeixa de ter opposiçãooposição. As opposiçõesoposições, quando descerem áà rua, podem implicar commigo,comigo, imaginar que as desafio, e quebrarem-me a taboletatabuleta; entretanto, o que eu procuro é o respeito de todos.

AyresAires compreendeu bem que ja agora o que affligia o confeiteiro era principalmente a despeza. Certoo terror ia com a avareza. Certo, o visinhoo terror ia com a avareza. Certo, o vizinho não queria barulhos áà porta, nem malquerenças gratuitas, nem odiosódios de quem quer que fosse; mas antes de e acima de tudo via a despeza. A dor de perder ou trocar o titulo não vinha só do mas, não o affligia menos a despeza que teria de fazer de quando em quando, se não achasse um titulo definitivo, popularmas não o afligia menos a despesa que teria de fazer de quando em quando, se não achasse um título definitivo, popular,

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receio de perder com elle a celebridade, vinha tambem de ser preciso mudar de e imparcial. Perdendo o que tinha, perdia a celebridade, alemalém de perder a pintura e pagar mais sem resgate.dinheiro. NinguemNinguém lhe compraria uma taboleta condemnadatabuleta condenada. Já era muito ter o nome e o titulotítulo no no AlmanackAlmanaque de Laemmert, onde podia lel-olê-lo algum inadvertidoabelhudo e ir com outros outros, punil-opuni-lo do que estava impresso desde o principioprincípio do annoano...

— Isso não, interrompeu AyresAires; o senhor não hade ha dehá de recolher a edição de um almanackalmanaque.

E depois de alguns instantes:

— Olhe, dou-lhe uma ideia, que pode póde ser aproveitada, e, se não a achar

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boa, tenho outra áà mão, e será a ultimaúltima. Mas eu creio que qualquer dellasdelas serve. Deixe a taboletatabuleta como est pintada como está, e áà direita, na ponta, por baixo do titulotítulo, mande escrever estas palavras que explicam o titulotítulo: «Fundada em 185/6\0.»1860». Não foi em 185/6\01860 que abriu a casa?

— Foi, respondeu CustodioCustódio.reflectindo

— Pois...

Custodio reflectiaCustódio refletia. Não se lhe podia ler sim nem não; attonitoatônito, a boca bôca entre-aberta, não olhava para o diplomata, nem para o chão, nem para as papparedes ou moveismóveis, mas para o ar. Como AyresAires insistisse, elleele accordouacordou e confessou que a ideia era

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boa. Realmente, mantinha o titulotítulo e tirava-lhe o sedicioso, mormenteque crescia com a/o\o pintu frescura dafresco da pintura. Entretanto, a outra ideia podia ser e/i\gual egualigual ou melhor, e quizeraquisera comparar as duas.

— A outra ideia não tem a vantagem de pôr a data áà fundação da casa, para tem só a de definir o titulotítulo, que fica sendo o mesmo, de uma maneira alheia ao regimen regimenregímen. Deixe-lhe estar a palavra « imperioimpério» e accrescente-lheacrescente-lhe , em baixoembaixo, ao centro, estas duas, que não precisam ser graúdas: das leis. Olhe, — «Confeitaria do imperio das leis» assim, concluiu AyresAires ind sentando-se

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á secretariaà secretária, e escrevendo em uma tira de papel: Confeitaria do imperio das d leis.papel o que dizia.

CustodioCustódio achou que a ideia era boaleu, releu e achou que a ideia era boa. Sim util; sim,útil; sim não lhe parecia má. Só lhe achouviu um defeito; sendo as letras de baixo menoresmenores, podiam não ser lidas tão depressa e claramente, como com as primeirasde cima, e só estase estas é que se metteriammeteriam pelos olhos ao que passasse. DahiDaí a que algum politicopolítico ou sequer inimigo pessoal não entendesse logo e... A primeira ideia, bem considerada, tinha o mesmo mal, e ainda este outro: pareceria que o confeiteiro, marcando a data

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da fundação, fazia timbre em ser antigo. Quem sabe se não era peorpior que nada?

— Tudo é peorpior que nada.

— Procuremos.

AyresAires achou outro titulotítulo, o nome da rua, «Confeitaria do CatteteCatete», sem advertir que, havendo outra confeitaria na mesma rua, era attribuiratribuir exclusivamente áà est do CustodioCustódio a designação local. Quando o visinhovizinho lhe fez tal ponderação, AyresAires achou-a justa, e gostou de ver a delicadeza de sentimentos do homem; mas o que verdadeiramente percebeu logo depois reparou quemas logo depois descubriudepois descobriu que o que fez falar o CustodioCustódio foi a ideia de que esse titulotítulo ficava commum áscomum às duas

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casas. Muita gente não atinaria com o titulotítulo escriptoescrito, e compraria na primeira que lhe ficava/sse\ ficassseficasse áà mão, de elle iria perdendo a freguezia que lhe dava a fama maneira que só elle faria as despezasmaneira que só elle faria as despezasmaneira que só ele faria as despesas da pintura, e ainda por cima perdia a fregueziafreguesia. Ao perceber isto, AyresAires não admirou menos a sagacidade de um homem que, que em meio de tantas tribulações, contava osos maus fructosfrutos de um equivocoequívoco. Disse-lhe então que o melhor seria pagar a despesa despeza feita e não pôr nada, a não ser que preferisse o seu propriopróprio nome: «Confeitaria do Custodio.»Custódio». Muita gente certamente lhe não conhecia a casa por outra designação. Um nome, o

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propriopróprio nome do dono, não tinha significação politicapolítica ou figuração historica, odiohistórica, ódio nem amor, nada que chamasse a attençãoatenção dos dous regimensregímens, e conseguintemente pu que puzessepusesse em perigo os seus pasteispastéis de Santa Clara, menos ainda a vida do proprietarioproprietário e dos empregados. PorquePor que é que não adoptava esse alvitre? Gastava sempre alguma cousa com a troca da/e\de uma palavra por outraé verda, CustodioCustódio em vez de ImperioImpério, mas as revoluções sempr ptrazem sempre despezas.despesas.

— Sim, vou ver,pensar, ExcellentissimoExcelentíssimo. Talvez convenha q esperar um ou dous dias, e/a\a ver em que param as modas, disse CustodioCustódio agradecendo.

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Curvou-se, recuou e saiu. AyresAires foi áà janellajanela para vel-ovê-lo atravessar a a rua. Imaginou que elleele levaria da casa do ministro aposentado um lustre particular que faria esquecer por instantes a crise da taboletatabuleta. Nem tudo são d despezasdespesas na vida, e a gloriaglória das relações podia amaciar as agruras deste mundo. Não acertou desta vez. CustodioCustódio atravessou a rua, sem parar nem olhar para traztrás, e enfiou pela confeitaria dentro com todo o seu deses des desespero.

 
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CapituloCapítulo LXIXLXVII LXIV

Paz!

Que, em meio de do tão graves successossucessos, AyresAires tivesse bastante pausa e claridade para fazerimaginar tal descoberta no visinhovizinho, só se pode póde explicar pela incredulidade com que recebera as noticiasnotícias. A propria afflicçãoprópria aflição de CustodioCustódio não lhe dera fé. Vira nascer e morrer muito boato falso. Uma de suas regras maximasmáximas é que o homem vive para canonisar propagarespalhar a primeira invenção de rua, e que tudo se fará crer crêr

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a cem pessoas juntas ou separadas. ásàs duas horas da tarde, quando Santos lhe entrou em casa, acreditou na rev mudançaqueda do regimen imperioimpério.

— É verdade, conselheiro, vi descer as tropas pela rua do Ouvidor, ouvi as acclamações áaclamações à republicarepública. As lojas estão fechadas, os bancos tambemtambém, e o principal peorpior é se se não abrem mais, se vamos cair na desordem publicapública; é uma calamidade.

AyresAires ten quizquis aquietou/ar\-lheaquietar-lhe o coração. Nada se mudaria; o governo, regimen,regímen, sim, era possivelpossível, mas tambemtambém se muda de roupa sem trocar de pellepele. CommercioComércio é preciso. Os bancos são indispensaveisindispensáveis. Que descançasse. No sabbadosábado,

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ou quando muito na segunda feira, tudo voltaria ao que era na quinta vespera,véspera, menos a Constituiçãoconstituição.

— Não sei, tenho medo, conselheiro.

— Não tenha medo. Já esteve com a baronezaA baroneza já sabe o que ha?A baronesa já sabe o que há?

— Quando eu saí sai de casa, não sabia, mas agora é provavelprovável.

— Pois vá aquiet tranquillisal-a;tranquilizá-la; naturalmente está afflictaaflita.

Santos receiavareceava os fuzilamentos; por exemplo, se fuzilassem o imperador, e , com elleele as pessoas de sociedade? Recordou que o Terror... AyresAires tirou-lhe o Terror da cabeça. As occasiõesocasiões fazem as revoluções, disse elle elle,

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sem intenção de rimar, mas gostou que rimasse, para dar fórmaforma fixa áà ideia. Depois, Depois lembrou a indoleíndole branda do povo. O povo mudaria de governogoverno, sem tocar nas pessoas. Haveria lances de generosidade. Para provar a bondade do povo, contou um casoo que dizia, referiu dizia referiudizia, referiu um caso que lhe contáracontara um velho amigo, o marechal Ba/ea\urepaireBeaurepaire Rohan. Era no tempo da RegenciaRegência. O imperador fora fôra ao theatroteatro de S.São Pedro de AlcantaraAlcântara. No fim do espectaculo,espetáculo, o amigo ma de rechal de Ayresamigo, então moço, ouviu grande rumor do lado da egrejaigreja de S.São Francisco, e correu a saber o que era. PerguntouFalou a um homem, que bradava indignado, e ellee este lhe disse soube dellesoube dele que o cocheiro do

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imperador não tirara o chapeo, quandono chapeo nochapéu no momento em que o imperadoreste chegára áchegara à porta para entrar no ch/o\checoche; eo homem accrescentouacrescentou: «Eu sou ré...» NaquelleNaquele tempo os republicanos por brevidade ou can ou outra razão eram assim chamados... «Eu sou ré, mas não consinto que faltem ao respeito a este menino!»

Nenhuma feição de Santos mostrou apreciar ou sequer entender sequer aquelleaquele rasgo anonymo.anônimo. Ao contrariocontrário, todo elleele parecia entregue ao presente, ao momento, ao commerciocomércio fechado, aos bancos sem operações, e ao receio de uma suspensão total de negocios durante negocios, durantenegócios, durante prazo indeterminado. Cruzava

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e descruzava as pernas. Afinal ergueu-se e suspirou.

— Então, parece-lhe...? 

— Que descancedescanse.

Santos acceitouaceitou o conselho, mas vaevai muito do acceitaraceitar ao cumprir, e a apparenciaaparência era mui diversa do coração. O coração batia-lhe. A cabeça via esboroar-se -lhe tudo. QuizQuis ir para casa, despedir-se, mas fez duas ou trestrês investidas antes de pousar o pé fora do gabinete e caminhar para a escada. Instava pela certeza. Conquanto Comquanto Com quanto tivesse visto e ouvido a republicarepública, podia ser... Em todo caso, a paz é que era necessarianecessária, e haveria paz? AyresAires disinclinava-se a crer crêr que sim, e novamente o conc/v\idouconvidou a descançardescansar.

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— Até logo, concluiu

Por que Porque não vaevai la jantar comnoscoconosco?

— Tenho de jantar com um amigo, no Hotel dos Estrangeiros. Depois, talvez, ou amanhã. Vá, vá tranquillisartranquilizar a baronezabaronesa, e os rapazes. Os rapazes estarão em paz? Esses brigam, com certeza; vá pôl-os pol-ospô-los em ordem.

— O senhor podia ajudar-me nisso. Vá lá de noite.

— Não sei; — Pode — Póde— Pode ser; se puder, vou. Amanhã com toda a certeza.

Santos saiu; tinha o carro áà espera, entrou e seguiu para Botafogo. Não levou/ava\levava a paz comsigoconsigo, não a poderia dar áà mulher, nem áà cunhada, nem aos filhos. QuizeraQuisera chegar a casa,

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por medo da rua, mas quizeraquisera tambemtambém ficar na rua, por não saber que palavras nem que conselhos daria aos seus. O espaço do carro ao, menos era pequeno e bastante para um homem; mas, emfimenfim, não viviriaviveria alliali o/a\a dia hi tarde inteira. Por outro lado Ao demais, a rua estava quieta. Via gente áà porta das charutarias,lojas. No largo do Machado viu ououtra que ria, alguma calada, nenhuma tinha propriamente ar de susto. o ar do susto. havia espanto, mas não havia propriamente susto.

 
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CapituloCapítulo LXXVIII LXV

Voltando da ruaEntre os filhosfilhos.

Quando Santos chegou a casa, Natividade estava inquieta, sem noticia exactanotícia exata dos aconte e definitiva dos acontecimentos. Não sabia da monarchia. Não sabia da republica. acontecimentos. Não sabia da republica.acontecimentos. Não sabia da república. Não sabia do marido nem dos filhos. AquelleAquele sahira sairasaíra antes dos primeiros rumores, estes iam fazer a mesma cousa, logo que estes elles os boatos chegaram. O primeiro gesto da mãe foi impedirfoi para impedir que os filhos saissemsaíssem, mas não pôde nada, era tcada era tardenão pôde, era tarde. Não os

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podendo conter,reter, pegou-se com a Virgem Maria, afima fim de que os poupasse, e esperou. A tia pairmã †irmã fez o mesmo. Era mesmo, Era perto dode meio dia; foi então que os minutos entraram a parecer seculosséculos.

A anciaânsia da mãe era naturalmente maior que a da tia. Natividade via andar o tempo com ferros aos passospés. Não havia alvoroço que atasse um par de azas aquellas áquellasàquelas horas longas do rego relogiorelógio da casa, nem aos do cinto, d o delladela e o da irmã; todos elleseles cocheacoxeavam de ambos os pont ponteiros. EmfimEnfim, ouviu na areia do jardim as rodas de um carro; era Santos.

Natividade acudiu ao patamar

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da escada,escada. Santos subiu, e as mãos de ambos estenderam-se e aggarraram-seagarraram-se. Uma longaLonga vida conjunctaconjunta acaba por fazer da ternura uma cousa grave e espiritual. Entretanto, é certo pode parece que o gesto do marido não foi original, mas secundariosecundário, filho ou imitativo do da mulher. PodePóde ser que a corda da sensibilidade fosse menos vibrante na lyralira do delledele que na delladela, posto que muitos annos atrazanos atrás, aquelleaquele outro gesto no coupé, quando el voltavam da missa de S.São Domingos, lembras-te?... Sobre isto escrevi agora algumas linhas, que não ficariam mal, se as acabasse, mas recúorecuo a tempo, e risco-as. Não vale a pena

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ir áà cata das das/pa\lavraspalavras riscadas. Menos vale suppril-assupri-las.

Que nos bastem bastam as quatro mãos apertadas. Natividade perguntou pelos filhos. Santos opinou que não tivesse medo. Não havia nada; tudo parecia estar como nono dia anterior, as ruasruas socegadassossegadas, as caras mudas. Não correria sangue. Osangue, o commerciocomércio ia continuar. Toda a animação do/e\de con AyresAires tinha agora brotado nellenele, a vista da rua nas das ruasacom a mesma verdura e o mesmo estyloestilo.

Os filhos chegaram tarde, cada um por sua vez, e Pedro menos tardemais cedo que Paulo. A melancolia de um ia com a alma da casa, a alegria dealegria de outro

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de outro destoava delladesta, mas taestais eram uma e outra que, apezarapesar da expansão da segunda, não houve repressão nem discordi briga. Ao jantar, falaram p pouco. Paulo referia os acontecimentos ansuccessossucessos com en amorosamente. ConversáraConversara com alguns co-religionarios, e co-religionarios ecorreligionários e souberasoube do que se passára ápassara à noite e de manhã, a marcha dos moços, ae a reunião dos batalhões no Campocampo, as palavras de Ouro Preto, aoPreto ao marechal Floriano, a resposta deste, a acclamaçãoaclamação da re r/R\epublicaRepublicaRepública. A familiafamília ouvia e perguntava, não discutia, e esta indmoderação contrastava com a gloriaglória de Paulo. O silenciosilêncio de Pedro principalmente era como um desafio. Não

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sabia Paulo que a propriaprópria mãe é que lh’oo pedira ao irmão com muitos beijos, motivo queque, em tal momento, ia com o aperto do coração do rapaz.

O coração de Paulo, ao contrariocontrário, era livre, deixava circular o sangue, como a felicidade. no ceu. Sentimentos Os sentimentos republicanos, emem que os principios seem que os princípios se incrustavam, viviam incrustavam viviam alliali tão fortes e quentes, que mal deixavam ver o abatimento de Pedro e o acanhamento da outra gente sua. Ao fim do jantar, Paulo bebeujantar, bebeu áà RepublicaRepública, mas calado, sem ostentação, apenas olhando para o tectoteto, e levantando o copo um tantinho mais que de costume. NinguemNinguém replicou por outro gesto ou palavra.

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Certamente, o moço Pedro quizquis dizer alguma palavra phrasefrase de piedade relativamente ao regimenregímen imperial e ásàs pessoas de BragançBragança, mas a mãe quasiquási que não tirava os olhos delledele, como impondo ou pedindo silenciosilêncio. De resto De maisDemais, elleele não cria tudo pernada mudado; a despeito de decretos e proclamações, Pedro imaginava que tudo podia ficar como d’antesdantes, alterado apenas o pessoal do governo. Custa pouco, dizia elleele baixinho áà mãe, agu ao deixarem a mezamesa; é só o imperador falar ao Deodoro.

Paulo saiu, logo depois dedo jantar, com promettendoprometendo de vir cedo. A mãe, co re com medo receiosareceosa de o ver mettidometido em barulhos, não queria que elle saisseele saísse; mas outro medoreceio fel-afê-la consentir, e este era que os dous irmãos brigassem finalmente. Assim um medo vence a outro, e a gente acaba por dar o que negou. a pr Não é menos certo que ellaela raciocinou alguns minutos antes de resolver, do mesmo modo que

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eu escrevi uma paginapágina antes da que vou escrever agora; mas ambos nós, Natividade e eu, acabamos por deixar que os actosatos se praticassem, sem opposição dellaoposição dela, nem commentariocomentário meu. Assim vae o mundo.

 
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CapituloCapítulo LXIXIV LXVI

O basto e a espadilhaespadilha.

Vieram amigos da casa, trazendo noticiasnotícias e b boatos. Variavam pouco, epouco e geralmente não havia opinião segura segura ácercaacerca do resultado. NinguemNinguém sabia se a victoriavitória do movimento era um bem, se um mal, apenas sabiam que era um factofato. DahiDaí a ingenuidade com que alguemalguém propozpropôs o voltarete do costume, e a boa vontade de outros em acceital-oaceitá-lo. Santos, emboraembora declarasse que não jogava, mandou pôr as cartas

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e os tentos, mas os outros opinaram que sempre faltava um parceiro, e, sem e sem elleele, não tinhahavia graça. Que QuizQuis resistir; não era bonito que no propriopróprio dia em que o regimen cairaregímen caíra ou entregaraia cair, entregassesseentregasse o espiritoespírito a recreação/ões\recreações de sociedade... Não pensou isto assim isto em voz alta nem baixa, mas comsigoconsigo, e talvez o leu no rosto da mulher. Acharia Acharia um pretexto para resistir, se buscasse algum, mas amigos e cartas não lhe deixar/v\amdeixavam buscar nada. Santos acabou acceitandoaceitando. Talvez fosse essa mesma a inclinação EmfimTalvez fosse Provavelmente,Provavelmente era essa mesma a inclinação intima.íntima. Muitas ha que precisam ser attrahidasatraídas cá fora, como um favor ou concessão dada

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pessoa. EmfimEnfim, o basto e a espadilha fizeram naquellanaquela noite o seu officioofício, como as mariposas e os as ratos, os ventos e as ondas, o lume das estrellasestrelas e o somnosono dos cidadãos.

 
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CapituloCapítulo LXXIII LXVII

A noite inteira.

Saindo de casa, Paulo foi áà de um amigo, e os dous sair metteram entraram a buscar outros da mesma idade edade e e/i\gual egualigual intimidade. Foram Fôram aos jornaesjornais, ao quartel do Campo, e al pararampassaram algum tempo deantediante da casa de Deodoro. Gostavam de ver os soldados, a pé ou a cavallocavalo, pedindpediam licença, para lhes offerecer lhesfalavam-lhes, falarem, e offereciamofereciam cigarros. Era a unicaúnica concessão destes; nenhum lhes contou o que se passárapassara, nem todos saberiam nada.

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Não importa, iam cheios de si. Paulo era o mais enthusiastaentusiasta e convicto. Aos outros valia só a mocidade, que é um programmaprograma, mas o filho de Santos tinha frescas todas as ideias do novo regimen,regímen, e possuiapossuía ainda outras que não via ja acceitas acceitaraceitar; bater-se-ia por ellaselas. Trazia até um impeto a desejoo desejo de achar alguemalguém na rua, que soltasse um grito, ja agora sedicioso, para lhe quebrar a cabeça com a bengala. Note-se que esquecera ou perdera a bengala. Não deu por falta delladela; se déssedesse, bastavam-lhe para a ameaçaos braços e as mãos.

Teve desejo de cantar a Marse Propoz cantarem a Marselheza; os Propôs cantarem a Marselhesa; os outros não quer/iz\eramquizeramquiseram ir tão longe, não por medo, senão de cançadoscansados. Paulo,

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que resistia mais que elleseles ao caná fadiga,à fadiga lembrou-lhes esperar a aurora.

— Vamos esperal-aesperá-la do alto de um morro, ou da praia do Flamengo; teremos tempo de dormir amanhã.

— Eu não posso, disse um.

Os outros repetiram a recusa, e assentaram de ir para suas casas. Era u meia noite uma uma perto de duas horas. Paulo acompanhou-os a todos, e só depois de ver o ultimoúltimo recolhido, foirecolhido foi sosinho sósinhosozinho para Botafogo.

Quando entrou, deu com a mãe que esperava por elleele, inquieta e arrependida de o haver deixado sa. F sair Fal sair. Paulo achounão achou desculpa e censurou a mãe por não dormir, áà espera

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delledele. Natividade confessou que não teria somnosono, antes de o saber em casa, sãocasa são e salvo. Falavam baixo e pouco; tendo-se beijado antes, beijaram sebeijaram-se depois e despediram-se.

— Olha, disse Natividade, se achares Pedro accordadoacordado não lhe contes nem lhe perguntes nada; dorme, e amanhã saberemos tudo – etudo e o mais que se passar esta noite.

Paulo entrou no quarto pé ante pé,. e/E\raEra ainda aquelleaquele grande vasto quarto em que os dous gemeosgêmeos brigaram por causa de duas velhas gravuras, Robespierre e LuizLuís XVI. Onde iam ellas? Agora, havia mais que os retratos, uma revolução de poucas horas e um gove

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governo feitofresco. Obedecendo ao conselho da mãe, Paulo não quizquis saber se Pedro dormia, posto desconfiasse que não. Effectivamente,Efetivamente, não; Pedronão. Pedro viu as cautellascautelas de Paulo, e ob cumpriu tambemtambém as ordens os os conselhos da mãe; fingiu que não via nada. Até ahi os conselhos; mas um pouco de gloriaglória fez com Pa que Paulo cantra/ar\olassecantarolasse entre os dentes, baixinho, para si, a primeira estrophe daprimeira estrofe da MarselhezaMarselhesa que os amigos tinham recusado fórafora:

Allons, enfants de la patrie!,

Le jour de gloire est arrivé!

Pedro percebeu antes pela todtod/a\datoada que pela lettraletra, e concluiu que a intenção do outro era affligi-loafligi-lo. Não era,

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mas podia ser. VacillouVacilou entre a réplica e o silenciosilêncio, até que uma idéaideia fantasticafantástica lhe atravessou o cerebrocérebro, cantarolar, tambemtambém baixinho, a segunda parte de/a\da estropheestrofe,: «N’entendez-vous dans v vos campagnes»...»«Entendez-vous dans vos campagnes…», que allude ásalude às tropas estrangeiras, mas desviada do natural sentido historicohistórico, para restringil-a ásrestringi-la às tropas nacionaesnacionais. Era um desforço vago, a ideaideia passou depressa. Pedro contentou-se de disimular a indifferençaindiferença suprema do somnosono. Paulo, semnãoPaulo não acabar/ou\acabou a estropheestrofe; despiu-se mais t naturalmente agitado, naosem tirar o pensamento da victoriavitória dos seus sonhos politicospolíticos. Não se metteumeteu logo na cama; foi primeiro áà do irmão,

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a ver se realmente dormia. Pedro respirava tão naturalmente, como se não perdera nada. Teve impetoímpeto de acordal-oacordá-lo, bradar-lhe que perdera tudo, se alguma cousa era a instituição derribada. Emfim,Recuou a tempo e foi metter-semeter-se entre os lençoes lençóeslençóis.

Nenhum dormia. EmquantoEnquanto o somnosono não chegava, iam pensando nos acontecimentos do dia, ambos espantados de como foram fôram rapidos faceisfáceis e faceis rapidosrápidos. Depois cogitaramcogitavam no dia seguinte e seu nos effeitosefeitos ulteriores. Não admira que não chegassem áà mesma conclusão:conclusão.

— Como diabo é que elles clleseles fizeram isto, sem que ninguem désseninguém desse pela

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cousa? reflectiarefletia Paulo. Podia ter sido mais turbulento. Conspiração houve, de certodecerto, mas uma barricada não faria mal. Seja como fôrfor, ganhou-sevenceu-se a batalhacampanha. O que é preciso é não deixar esfriar o ferro, batel-obatê-lo sempre, e renoval-orenová-lo. Dizem que a Deodoro é uma bellaDeodoro é uma bela figura. Dizem que a entrada do m marechal no quartel, e a saidasaída, puxando os batalhões,, foram explendidas fôram esplendidasforam esplêndidas. Talvez faceisfáceis de mais; é que o regimenregímen estava pôdrepodre e caiu por si.si…

EmquantoEnquanto a cabeça de Paulo ia formulando essas ideias, a de Pedro ia pensando o contrariocontrário; chamava ao movimento um crime.

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— Um crime e um disparate, além de ingratidão; o imperador devia ter pegado os principaesprincipais cabeças e executal-os, pormandal-osmandá-los executar. Infelizmente, as tropas iam com elleseles. Mas nem tudo acabou. Isto é fogo de palha; daqui a pouco está apagado, e o que antes era torna a ser. Eu acharei duzentos rapazes bons e res a desfaze promptos promptosprontos, e desfaremos esta caranquejolacaranguejola. A apparenciaaparência é que dá um ar de de solidez, m/as\mas isto é nada. Hão de d ver que o imperador não saesai daqui, e, ainda que não queira, hade ha dehá de governar; ou governará a filha, e, na falta delladela, o neto. TambemTambém elleele ficou menino e governou. Amanhã

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é tempo; por ora tudo são flores. Ha ainda um punhado de homens...

A reticenciareticência final dos discursos de ambos quer dizer que as ideias se iam tornando esgarçadas, nevoentas e repetidas, vag até que se perderam e elleseles dormiram. Durante o somnosono, cessou a revolução e a contra-revoluçãocontrarrevolução, não houve monarchiamonarquia nem republica, D.república, Dom Pedro II , nem marechal Deodoro, nada que cheirasse a politicapolítica. Um e outro viram um grande ceu az azul e cor de rosa e ao fundo sonharam com a bella enseada de Botafogo, umsonharam com a bela enseada de Botafogo, um ceucéu azulclaro, um uma tarde clara,clara e uma só pessoa: Flora.

 
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CapituloCapítulo LXVIII

De manhãmanhã.

Flora abriu os olhos de ambos, e esvaiu-se tão depressa que elleseles mal puderam ver a barra do vestido e ouvir uma palavrinha meiga e remota. Olharam um para o outro, sem rancor apparenteaparente. O receio de um e a esperança de outro deram tregoastréguas. Correram aos jornaesjornais. Paulo, meio tonto, temia alguma traição sobre a madrugada. Pedro tinha uma ideia vaga de restauração, e

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aos primeiros raios da auto, aurora, e e contava ler nas folhas um decreto imperial de da amnistiaanistia. Nem traição nem decreto. A esperança e o receio expiraramfugiram deste mundo.

 
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CapituloCapítulo LXIXIIV

Ao piano.

Em quanto EmquantoEnquanto elleseles sonhavam com Flora, esta não sonhou com elles. Tambem não sonhou com a republica esta não sonhou com a republicaesta não sonhou com a república. Teve uma daquellasdaquelas noites em que a imaginação dorme tambemtambém, sem olhos nem ouvidos, ou, quando muito, umaa retina que não deixa ver claro, e umas as orelhas que confundem o som de um rio com o latir de um cão remoto. Não posso dar uma melhor definição, nem ellaela é precisa; cada um de nós

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terá tido dessas noites mudas e apagadas.

Não sonhou sequer com musicamúsica; e, aliás tocáratocara antes algumas das suas paginaspáginas queridas. , masNão as tocou somente sómente por gostar dellasdelas, senão por fugir áà consternação dos paespais, que era grande. NenhumNenhum destes d’estes podia crear crer crêrcrer que as instituições tivessem caidocaído, outras nascido, tudo mudado. D. ClaudiaDona Cláudia ainda appellavaapelava para o dia seguinte e perguntava ao marido se vira bem, e o que é que vira; elleele affirmavamordia os beiços, batia na perna, erguia-seseerguia-se, dava alguns passos, e tornava a narrar os acontecimentos, as noticias colladasnotícias coladas ásàs portas dos jornaesjornais,

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a prisão dos imperadorministros, a situação, tudo ex extincto, extincto, extinctoextinto, extinto, extinto...

Flora não era avessa áà piedade, nem áà esperança, como sabeis; mas não ia com a agitação dos paespais, e metteu-semeteu-se com o seu piano e as suas musicasmúsicas. Escolheu uma não sei que sonata. Tanto bastou para lhe tirar o presente. A musicamúsica tinha para ellaela a vantagem de não terser presente, passado ou futuro; era uma cousa fórafora do tempo e do espaço, uma idealidade pura. Quando parava, succedia-lhesucedia-lhe ouvir alguma phrasefrase solta do paepai ou da mãe: « A/\... Mas como foi que...?» — «Tudo ásàs escondidas...» — « Ha sangue? » Às Ás As vezes um dellesdeles fazia

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algum gesto, e ellaela não via o gesto. , e O paepai, com a alma tropegatrôpega, falava muito e incoherenteincoerente. ; A mãe trazia outro vigor. Já lhe succediasucedia calar por instantes, como se pensasse, ao contrariocontrário do marido que, em se calando, coçava a cabeça, apertava as mãos ou suspirava, quando não ameaçava o tectoteto com o punho.

— Lá, lá, dó, ré, sol, ré, ré, lá, ia dizendo o piano da filha, por essas ou por outras notas, mas eram notas,notas que vibravam para fugir aos homens e suas dissensões.

TambemTambém se pode póde achar na sonata de Flora uma especieespécie de accordoacordo com a hora presente. Não havia governo

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definitivo. A alma da moça ia com esse primeiro albor do dia, ou ou com esse derradeiro crepusculocrepúsculo da tarde, — como queiras, — em que nada é tão claro ou tão escuro que convide a deixar a cama ou accenderacender velas. Quando muito, haveriaia haver um governo provisorioprovisório. Flora não entendia de fórmasformas nem de nomes. A sonata trazia a emoção sensação da falta absoluta de governo, a anarchiaanarquia da innocenciainocência primitiva naquellenaquele recorte recanto do ParaisoParaíso que o homem perdeu por desobediente, e um dia ganhará, quando a perfeição trouxer a ordem eterna e unicaúnica. Era o que asNão haverá então progresso nem

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trabalhar durante aquelle esquecimento da vida, um pouco de nada entre dous momentos de rumor regresso, mas estabilidade. O seio de Abrahão agazalharáAbraão agasalhará todas as cousas e e pessoas, e a vida será um ceucéu aberto. Era o que as teclas lhe diziam sem palavras, ré, ré, la, sol, la, lalá, lá, dó...

 
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CapituloCapítulo LXXVIII

De uma conclusão errada.

Os successossucessos vieram vindo, áà medida que as flores flôres iam nascendo. Destas houve que serviram ao ultimoúltimo baile do annoano. Outras morreram na vesperavéspera. Poetas de um e outro regimenregímen tiraram imagem do factofato para cantarem a alegria e a melancolia do mundo. A differençadiferença é que a segunda abafava os seus suspiros, em quantoenquanto a primeira levava longe os seus tripudiostripúdios. O metal das trompas dava outro som que o

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das a/h\arpasharpas. As flores flôres é que continuavam a nascer e morrer publica igual, , egual, igual e regularmente.

D. ClaudiaDona Cláudia colheu as rosas do ultimoúltimo baile do annoano, primeiro da RepublicaRepública, e adornou a filha com ellaselas. Flora obedeceu e acceitou-asaceitou-as. PaePai de familiafamília antes de tudo, Baptista acompanhou a esposa e aoa filha ao baile. TambemTambém la foi Paulo, pela moça e pelo regimenregímen. Se, em conversa com o ex-presidente de provinciaprovíncia, disse todo o bem que pensava do governo provisorio Governo ProvisorioGoverno Provisório, não lhe ouviu palavras de accordoacordo nem de contestação. Não entrou mais fundo na confissão do homem, porque a moça

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o attraiaatraía, e elleele gostava mais delladela que do paepai.

Flora viu uma semelhança entre o baile da ilha Fiscal e este, apezarapesar de particular e modesto. Este era dado por pessoa que vinha dos tempos da propaganda, epropaganda e um dos ministros lá esteve, ainda que só meia hora. DahiDaí a ausenciaausência de Pedro, apezarapesar de convidado. Flora sentiu a falta d de Pedro, como sentira naa de Paulo na ilha; F Fiscal; tal era a semelhança das duas festas. TudoAmbas traziam a ausenciaausência de um gemeogêmeo.

— Mas p/P\orquePorquePor que é que seu irmão não veiuveio? perguntou ellaelaa Paulo. com iss

Paulo enfiou; depois de alguns instantes:

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— Pedro é teimou/so\teimoso, dissedisse. Teimou em recusar o convite. e ficou. Diz que a monarCrê naturalmente que a monarchiamonarquia levou a arte de dançar. Não faça caso; é um lunalunaticolunaticolunático.

— Não diga isso.

— Acha tambemtambém que a dança se foi com o imperioimpério?

— Não, a prova é que estamos dançando. Não; digo que lhe não chame nomes feios.

— Parece-lhe então que Pedro é um ra rapaz de juizojuízo?

— Certamente, como o senhor.

— Mas...

Paulo ia a perguntar-lhe se ellaqual delles, d’elles,deles, tendo ellaela de jurar por um ou por

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outro, lhe mereceria o juramento; mas recuou a tempo. Então ellaela falou do calor, e elleele achou que sim, que estava quente. Acharia que estava frio, se ellaela se queixasse de frio. Flora, se só cedesse áà vista, era tambemtambém capaz de acceitaraceitar todas as opiniões de Paulo, para ir com elleele. Em verdade, Paulo tinha agora um ar brilhante e petulante, olhava por cima, firme em que os seus escriptosescritos de um annoano é que haviam feito a r/R\epublicaRepublicaRepública, posto que incompleta, sem certas ideias que expozeraexpusera e defendera, e teriam de vir mais †um dia, breve. Tal ia dizendo áà moça, e estava ella escutavaela escutava com prazer, sem opinião; era só o gosto de o es-

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escutar. Quando a lembrança de Pedro surgia na cabeça da moça, a tristeza empanava a alegria, mas a alegria vencia depressa a outra, e assim acabou a noi a noite e assim acabou o baile. Então as duas, tristeza e alegria, agazalharam-seagasalharam-se no coração de Flora, como as suas gemeasgêmeas que eram.

O baile acabou. O capitulocapítulo é que não acaba sem que deixe um pouco de espaço a quem quizerquiser pensar pensar naquella creaturanaquela criatura. PaePai nem mãe podiam entendel-aentendê-la, os rapazes tambemtambém não, e provavelmente Santos e Natividade menos que ninguemninguém. Tu, mestra de amores ou alumna dellesaluna deles, tu que escutas a diversos, concluesconcluis que elle ellaela era... Custa pôr o nome do

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officioofício. Se não fosse a obrigação de contar a historiahistória com as propriaspróprias palavras, preferia calal-ocalá-lo, mas tu sabes qual é elleele, e aqui fica. ConcluesConcluis de que Flora era namoradeira, e concluesconcluis mal.

Leitor,/a\,, é melhor negar ja isto que esperar pelo tempo. Flora não conhecia as doçuras dado nome namoro, e menos ainda se podia dizer namoradeira de officioofício. A namoradeira de officioofício é a planta das esperanças, e alguma vez das realidades, se a vocação o impõe e a occasiãoocasião o permittepermite. TambemTambém é preciso ter em lembrança aquilloaquilo de um publicista, filho de Minas , e do outro seculoséculo, que acabou senador, e escrevia esta mcontra

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os ministros liberaes adversarios:adversários: «Pitangueira não dá manga.» Não, Flora não dava para namorados. A

A prova disto é que no Estado em que viveu alguns mezesmeses de 1891, com o paepai e a mãe, no desempenho como se de de certa commissão politica do governo ninguem para o fim que direi adiante, ninguempara o fim que direi adiante, ninguém alcançou o menor dos seus olhares amigos ou sequer complacentes. Mais de um rapaz consumiu o tempo em se fazer visto e attrahido dellaatraído dela. Mais de uma gravata, mais de uma bengala, mais de uma luneta levaram-lhe as cores côres, os gestos e os vidros, sem obter outra cousa que a attenção cortezatenção cortês e acaso uma palavra sem valor.

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Flora só se lembrava dos gemeosgêmeos. Se nenhum dellesdeles a esqueceu, ellaela não os perdeu de memoriamemória. Ao contrariocontrário, escrevia por todos os paquetescorreios a ConceiçãoNatividade para se fazer lembrada de ambos. As cartas falavam pouco da g terra ou da gente, e nemnão diziam mal nem bem. da capital sim é que falavam muitoUsavam muito a palavra saudades, que cada um dos dous gemeosgêmeos lia para si. TambemTambém elleseles a escreviam nas cartas que mandavam a D. ClaudiaDona Cláudia e a Baptista, com a mesma intenção duplicada e mysteriosa,misteriosa, que ellaela entendia muito bem.

TaesTais eram de longe, ellaela e elleseles. A rixa velha, continuava aque os desunia na vida,

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continuava a desunil-osdesuni-los no amor. Podiam amar cada um a sua moça, e casar com ellaela e terem oster os seus filhos, mas preferiam amar a mesmadama, , e com tal firmeza que naquelle amue não ver o mundo por outros olhos, nem ouvir melhor verbo, nem diversa musicamúsica, antes, durante e depois da commissãocomissão politica confiada pe aodo Baptista.

 
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CapituloCapítulo LXXIVI

A commissãocomissão.

Lá me escapou a palavra. Sim, erafoi uma commissãocomissão dada ao paepai, e da qual não sei nada, nem ellaela. NegocioNegócio reservado. Flora chamava-lhe commissãocomissão do inferno. O paepai, sem ir tão longefundo, concordava mentalmente com ellaela; verbalmente, desmentia a definição.

— Não digas isso, Flora; é commissãocomissão de confiança para fins nobremente politicospolíticos.

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Creio que sim, mas dahidaí a consaber o objectoobjeto especial e real iareal, ia largo es espaço. TambemTambém não se sabe como foi parar ásàs mãos de Baptista aquelleaquele recado do governo. Sabe-se que elleele não desprezou a escolha, quando um amigo intimoíntimo correu a chamal-ochamá-lo ao palaciopalácio do gov do presidente do generalissimo.do generalíssimo. Viu que era reconhecer nellenele muita confiançafinura e pacicapacidade de trabalho;/.\ alem de discriçãoNão é menos certo, poremporém, que a commissãocomissão entrava a aborrecel-oaborrecê-lo, posto que na correspondencia officialcorrespondência oficial dissesse exactamenteexatamente o contrariocontrário. Se taes papeistais papéis mostrassem sempre o coração da gente, Baptista, cujas instrucçõesinstruções eram, aliás, de concordiaconcórdia, parecia querer

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levar a concordiaconcórdia a ferro e fogo; mas o estyloestilo não é o homem, como dizia o outro. homem. O coração de Baptista fechava-se, quando elleele escrevia, e deixava ir a mão adiante, com a chave do coração p/a\pertadaapertada... «Já é tempo, suspirava o musculomúsculo, j já é tempo de um logarlugar de governador.»

Quanto a D. ClaudiaDona Cláudia, não queria ver acabada ja aacabada a commissãocomissão, que restituiarestituía ao esposo a acçãoação politicapolítica; faltava-lhe somente sómente uma cousa, faltava-lhe opposiçãooposição. Nenhum jornal dizia mal delle, nem malsinava os seus nem actos e visitas. delle.dele. AquelleAquele prazer de ler todas as to manhãs as descomposturas dos adversarios, lel-asadversários, lê-las e relel-asrelê-las com os seus nomes feios, como lategoslátegos de muitas pontas, que lhe rasgavam as carnes e a excitavam ao mesmo tempo, esse prazer não lhe dava a commissãocomissão reservada. Ao contrariocontrário, havia uma especieespécie de aposta em achal-o achar o commissarioachar o comissário justo, equitativo, e conciliador, habildigno de admirador/ção\admiração, cara typotipo civico, caractercívico, caráter

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sem maculamácula. Tudo isto ellaela conheceu outr’oraoutrora, mas para lhe achar sabor foi sempre preciso que viesse entremeado de lh ralhos e calumniascalúnias. Sem elles era elles, eraeles, era aguaágua ensossa. TambemTambém não tinha aquellaaquela parte de ceremoniascerimônias a que obrigava o summosumo cargo, mas não lhe faltavam attençõesatenções, e era alguma cousa.

folha não numerada

ULTIMO

por

Machado de Assis

(da Academia Brasileira )

folha não numerada

ULTIMO

por

Machado de Assis

(da Academia Brasileira )

 
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CapituloCapítulo LXXIIV

O regresso.

Quando o marechal Deodoro dissolveu o c/C\ongresso n/N\acionalcongresso nacional, em 3 de novembro, Baptista recordou o tempo dos manifestos liberaesliberais, e quizquis fazer um. Chegou a escrevel-o principial-oprincipiá-lo, em segredo, empregando as bellas phrasesbelas frases que trazia de córcor, citações latinas, duas ou tres treztrês apostrophes apostrophesapostrofes. etc. D. ClaudiaDona Cláudia reteve-o áà beira do abysmoabismo, com razões claras e robustas. Antes de tudo, o golpe de Estado podia ser um beneficiobenefício. Serve-se

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muita vez a b/l\iberdadeliberdade parecendo suffocal-asufocá-la. Depois eraDepois, era o mesmo homem que a havia proclamado que convidava agora a nação a dizer o que queria, e a emendar a constituição, salvo nas partes essenciaesessenciais. A palavra do generalissimogeneralíssimo, como a sua espada, bastava a defender e consummarconsumar a obra principiada. D. ClaudiaDona Cláudia não tinha estylo proprioestilo próprio, mas sabia communicarcomunicar o calor do discurso ao coração de um homem de boa vontade. Baptista, depois de a escutar e pensar, bateu-lhe no hombroombro imperativamente.

— Tens razão, filha.

Não rasgou o papel escriptoescrito; queria guardal-oguardá-lo como simples lembrança,

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e a prova é que ia escrever uma carta ao presidente. D. ClaudiaDona Cláudia tambemtambém lhe tirou esta ideia da cabeça. Não havia necessidade de lhe mandar o seu suffragiosufrágio; bastava conservar-se na commissãocomissão.

— O governo não está satisfeito com você?

— Está.

— Vendo que você se conserva, conclueconclui que approvaaprova tudo, e basta.

— Sim, ClaudiaCláudia, concordou elleele após alguns instantes. Ao contrariocontrário, qualquer cousa que escrevesse contra a assembléaassmbleia sediciosa que o presidente acaba de dissolver, parecia/eria\pareceria da falta de piedade. Paz aos mortos! Tens razão, filha.

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Conservou-se calado, operando, fiel ás instrucçõesàs instruções recebidas. Vinte dias depois, o marechal Deodoro renunciava apassava o governo nas ásàs mãos do Floriamarechal Floriano, o c/C\ongressocongresso era restabelecido e todos os decretos de 3do dia 3 ann annulladosanulados.

Ao saber de taestais factosfatos, Baptista pensou morrer. Ficou sem fala por alguns instantes, e D. ClaudiaDona Cláudia não achou a menor parcellaparcela de animoânimo que lhe déssedesse. Nenhum contáracontara com a marcha rapidarápida dos acontecimentos, uns sobre outros, com tal atropelloatropelo que parecia um bando de gente que fugia. Vinte dias apenas; vinte dias de força e socegosossego, esperanças e grande futuro. Um dia mais e tudo ruiu como casa velha.

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Agora é que Baptista comprehendeucompreendeu o erro de dar/ha\verhaver dado ouvidos áà esposa. Se tem acabado e publicado o manifesto no dia 4 ou 5, estaria agoracom um documento de resistenciaresistência na mão para reinvireivindicar um posto de honra qualquer, — ou só estima que fosse. Releu o manifesto; chegou a pensar em imprimir/l\-oimprimil-oimprimi-lo, embora incompleto. e †dio Tinha conceitos bons, como este: «O dia da oppressãoopressão é a vesperavéspera da liberdade.» Citava a bellabela Roland caminhando para a guilhotina: «Ó liberdade, quantos crimes em teu nome!» Repelliu a ideia da publicaçãoD. Claudia fez-lhe ver que era tarde, eDona Cláudia fez-lhe ver que era tarde, e elleele concordou.

— Sim, é tarde. NaquelleNaquele dia é que não era tarde, vinha áà hora propriaprópria, para o effeitoefeito certo.

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Baptista amarrota/ou\amarrotou o papel distrahidamentedistraidamente; depois concertou-oalisou-o e guardou-o, , e e Não n/N\ão pôde conter a colera contra a mulher que lhe dera o peor dos conselhos dou-o.guardou-o. Em seguida, fez um exame de conscienciaconsciência, profundo e sincero. Não devia ter cedido; a resistenciaresistência era o melhor; se tem resistido ásàs palavras da mulher, a situação eraseria outra. Apalpou-se, achou que sim, que podia muito bem haver-lhe trancado os ouvidos e passado adiante. Insistiu muito neste ponto. Se pudesse, faria voltar atrazatrás o tempo, e mostraria como é que a alma escolhe de si mesma o melhor dos partidos. Não era preciso saber nada do que ulteriormenteanteriormente succedeusucedeu; a a

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conscienciaconsciência dizia-lhe que, em situação identicaidêntica, áà do dia 3, faria outra cousa... Oh ! com certeza!Agora então que via as consequencias… Nem precisava faria cousa muito diversa, e mudaria o seu destino.

Um officioofício ou um telegramma veiutelegrama veio arrancar Baptista áà commissãocomissão politicapolítica e reservada. A volta para o Rio de Janeiro foi breve e triste, sem os epithetosepítetos que o haviam regalado por alguns mezesmeses, nem acompanhamento de amigos. Só uma carapessoa vinha alegre, a da filha,filha, que rezárarezara todas as noites pela terminação daquelle exiliodaquele exílio.

— Parece que estás contente com o desastre de teu paepai, disse-lhe a mãe ja a bordo.

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— Não, mamãe; alegro-me de ver que acabou esta canceira. Papaecanseira. Papai pode póde muito bem fazer politicapolítica no Rio de Janeiro, onde é muito apreciado. A senhora verá. Eu, se fosse papaepapai, ia apenas desembarcasse, ia logo ao marechal explicar tudo, mostrar as instrucçõesinstruções e dizer o que tinha feito; accres dizia mais que a dispensa veiuveio muito a propositopropósito, afima fim de não parecer que ficáraficara amofinado. Depois pedia-lhe para trabalhar lá mesmo...

D. ClaudiaDona Cláudia, a despeito do amargor dos tempos, gostou de ver que a filha pensava e dava conselhos em politicapolítica. Não advertiu, como fez o leitor, que a alma do discurso da

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moça era não sair da capital, fazer aqui mesmo a/o\o sua seu congresso, que em breve seria uma só c/a\ssembléaassembléaassembleia legislativa, como no Rio Grande do Sul; mas a qual das camarascâmaras, Pedro ou Paulo, caberia esse unicoúnico poder politicopolítico? Eis o que ellaela mesma não sabia.

Ambos se lhe apresentaram a bordo, logo que o paquete entrou no porto do Rio de Janeiro. Não foram fôram sequer em duas lanchas, senão foram fôramforam na mesma, e saltaram com tal presteza para a escada, que escaparam de cair ao mar. Talvez fosse o melhor desfecho do livro. Ainda assim não acaba mal o capitulocapítulo, porque a

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razão da presteza com que elleseles saltaram para e/a\a escapa nãoescada foi a ambição de ser o primeiro que a comprimentassecumprimentasse a moça; aposta de amor, que ainda uma vez os e/i\gualou egualouigualou na alma delladela. EmfimEnfim, chegaram, e não consta qual effectivamenteefetivamente a comprimentoucumprimentou primeiro; pode póde ser que ambos.

 
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CapituloCapítulo LXXVI/X\ VII LXXXIIILXXIII

Um El-Dorado.

No caescais Pharoux esperavam por elleseles treztrês carruagens, — dous coupés e um landau, com trez bellastrês belas parelhas de cavalloscavalos. A gente Baptista ficou espantada de tamanha liberalidade; mas acceitoulisonjeada com a fineza da gente Santos, e entrou no landau. Os gemeosgêmeos foram cada um no seu coupé. A primeira carruagem tinha umo seu cocheiro e o seu lacaio, fardados de preto castanho., botõescastanho, botões de metal branco, em que se podiam

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ver as armas da casa. Cada uma das outras tinha apenas o cocheiro, com egualigual libré. E todas treztrês se pus/z\erampuzerampuseram a andar, estas atraz daquellas/a\atraz daquellaatrás daquela, os animaesanimais batendo rijo e compassado,a passo igual, igual rythrithmo a golpes certos, como se houvessem ensaiado, por longos dias, aquella recepçãoaquela recepção. De quando em quando, encontravam outros trens, outras librés, outras parelhas, a mesma bellezabeleza e o mesmo luxo.

A capital offereciaoferecia ainda aos recem-chegadosrecém-chegados, um espectaculo magnificoespetáculo magnífico. Vivia-se dos restos daquelledaquele deslumbramento e agitação, que foi uma especie a epopeia de delirio ouro epopeia de ouro da cidade e do mundo, porque a impressão total é que o resto

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o mundomundo inteiro era assim mesmo. Certo, não lhe esqueceste o nome, encilhamento, a grande quadra das emprezasempresas e companhias de toda especieespécie. Quem não viu aquilloaquilo não viu nada. Cascatas de ideias, de invenções, de combinaçõesconcessões rolavam todos os dias, sonoras e vistosas para se fazerem contos de reisréis, centenas de contos, milhares, milhares de milhares, milhares de milhares de milhares de contos de reisréis. Todos os papeispapéis, aliás acçõesações, saíam frescos e eternos do prelo ,. Eram estradas de ferro, bancos, fabricasfábricas, minas, estaleiros, navegação, edificação, exportação, importações/ão\importação, ensaques, e emprestimosempréstimos, todas as uniões, todas as regiões,

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tudo o que esses nomes comportam e mais os oso que esqueceram. Tudo andava nas ruas e praças, com estatutos, organisadoresorganizadores e listas. Letras grandes enchiam as folhas publicaspúblicas, os titulos succediam-setítulos sucediam-se, sem que se repetissem, raro delles morria, e só morria o que era frouxo, mas a principioprincípio quasi nada era frouxo. Cada acçãoação trazia a vida intensa e liberal, alguma vez immortalimortal, que se multiplicava daquelladaquela outra vida com que a alma acolhe as religiões novas. Nasciam as acçõesações a preço alto, mais numerosas que as antigas crias crías da escravidão, e com dividendos infinitos.

Pessoas do tempo, querendo exagerar a riqueza, dizem que o dinheiro brotava do chão, mas não

sem n

é verdade. Quando muito, caía caia do ceucéu. , e só CandidoCândido e Cacambo... Ai, pobre Cacambo nosso! A ironia de Voltaire fez escurecer a doçura deSabes que é

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o nome daquelle indiodaquele índio que BasilioBasílio da Gama cantou no Uruguay.Uraguay. Voltaire pegou delledele para o mettermeter no seu li livro, e a ironia do philosophofilósofo venceu a doçura do poeta. Pobre José BasilioBasílio! tinhas contra ti o assumptoassunto estreito e a língua lingua escuraescusa. O grande homem não te arrebatou Ly LindoyaLindoia, felizmente, mas Camb Can/c\amboCacambo é delledele, mais delledele que teu, patriciopatrício da minha alma.

CandidoCândido e Cacambo, como eu ia dizendoCacambo, ia eu dizendo, ao entrarem no El-Dorado, segundo conta Voltaire que viram creançascrianças brincando na rua com rodelas de ouro, esmeralda e rubi; apanharam algumas, e na

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primeira hospedaria em que comeram quizeramquiseram pagar o jantar com duas dellasdelas. Sabes que o dono da casa ria/u\riu ásàs bandeiras despregadas, ja porquepor quererem pagar-lhe com pedras do calçamento, da rua ja porque alliali ninguemninguém pagava o que comia: era nada; erao que comia; era o governo que pagava tudo. Foi essa hospedehilaridade do hospedeiro, com a bil liberalidade attribuidaatribuída ao governoEstado, que fez crer e/i\guaes crêr eguaescrer iguais phenomenosfenômenos entre nós, mas não é verdadeé tudo mentira.

O que parece ser verdade é que as nossas carrug/a\genscarruagens brotavam do chão. ÁsÀs tardes, quando uma centena dellasdelas se ia enfileirar no largo de S.São Francisco de Paula, e da Carioca, áà espera

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das pessoas, era um gosto subir a rua do Ouvidor, parar n ee contemplal-as.e contemplá-las. As parelhas arrancavam os olhos áà gente; todas pareciam descer das rhapsodiasrapsódias de Homero, posto fossem corceiscorcéis de paz. As carruagens tambemtambém. Juno certamente as apparelháraaparelhara com as suassuas correias de ouro, freios de ouro, redeasrédeas de ouro, tudo de ouro incorruptivelincorrutível. Mas nem ellaela nem Minerva entravam nos vehiculosveículos de ouro para os fins da guerra contra IllionÍlion. Tudo alliali respirava a paz. Cocheiros e lacaios, barbeados e graves, esperando tezostesos e compostos, com os librésdavam uma bellabela ideia do offiofficioofficioofício. Nenhum aguardava o patrão,

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deitado no interior dos carros, com as pernas de fórafora. A impressão que davam era de uma disciplina rigidarígida e elegante, apprendidaaprendida em escola alta escola e conservada pela dignidade do individuoindivíduo.

«Casos ha, — escrevia o nosso Ayres tempos antes,— em Ayres — emAires — em que a gravidadeimpassibilidade do cocheiro na boléaboleia contrasta com a agitação do dono no interior da carruagem, fazendo crer que é o patrão que, por desfastia/o\desfastio, leva o cocheiro a passear.»trepou áà boléaboleia e leva o cocheiro a passear.»

 
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CapituloCapítulo LXXX IILXXIVII

A allusãoalusão do textotexto.

Antes de continuar, é preciso dizer que o nosso AyresAires não se referia vagamente ou de modo genericogenérico a algumas pessoas, mas a uma só pessoa pessoa .Chamava-separticular. Chamava-se então NobregaNóbrega; outr’oraoutrora não se chamava nada, era aquelleaquele simples andador das almas que encontrou Natividade e PerpetuaPerpétua na rua de S.São José, esquina da da MisericordiaMisericórdia. Não esqueceste que a recente mãe deitou uma nota

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de dous mil reisréis áà bacia do andador. A nota era nova e bellabela; passou da bacia áà algibeira, no fundo de um corredor, não sem luta nem alguma/m\algum luta intimacombate.

Poucos poucos mezesmeses depois, NobregaNóbrega abandonou as almas a si mesmas, e foi a outros Purgatorios,purgatorios,purgatórios, para os quaesquais achou outras opas, outras bacias e finalmente outras notas, esmolas de piedade feliz. Quero dizer que foi a outras carreiras. Com pouco, deixoupouco deixou a cidade, e não se sabe se tambemtambém a vez. o paiz.o país. Quando tornou, trazia alguns pares de contos de reisréis, que a fortuna dobrou, redobrou e tresdobrou. Q EmfimEnfim, alvoreceu a famosa

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quadra do «encilhamento». Esta foi a grande opa, a grande bacia, a grande esmola, o grande purgatoriopurgatório. Quem ja sabia do andador das almas? A antiga roda perdera-se na obscuridade e na morte. ElleEle era outro; as feições não eram ja as mesmas, senão as que o tempo lhe veiuveio compondo e melhorando.

Se a grande bacia, ou qualquer das outras recebeu notas que tivessem o destino da primeira, é o que se não sabe, nem é precisomas é possível. Foi por esse tempo que AyresAires o viu de carro de carro, quasiquási a sair pela portilhportinhola fórafora, comprimentandocumprimentando de cabeça observmuito, espiando tudo.O correi Como o

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homens, quadra cocheiro e o lacaio (creio que eram escossezesescoceses) salvassem a dignidade pessoal da casa, AyresAires fez a observação do fim do outro capitulocapítulo, sem nenhuma intenção geral.

Posto não achasse já n

Posto não achasse ja nenhum conhecido antigo, NobregaNóbrega tinha medo de tornar ao bairro, onde andáraandara a pedir para as primeiras almas. Um dia, poremporém, teve tan sentiu taestais foram as fôram asforam as saudades delledele que pensou em affrontarafrontar o perigo e lá foi. Tinha cog/c\egascocegascócegas de mirar as ruas e as pessoas, recordava as casas e as lojas, um barbeiro, os os sobrados de grade de pau, onde appareciam taesapareciam tais e taestais moças... Quando

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ia a ceder, teve outra vez medo e enfiou por outra parte. Só passava de carro,; mas vendo as car Queria ver tudo a pédepois quiz ver tudo a pé,depois quis ver tudo a pé, devagar, parando, se fosse possivelpossível, e e recompondo mortorevivendo o extincto.revivendo o extinto.

Lá se foi ao bairroa pé; desceu pela rua de S.São José, dobrou a da MisericordiaMisericórdia, foi parar áà praia de Santa Luzia, tornou pela rua de D.Dom Manuel, enfiou de beccobeco em beccobeco. A principioprincípio olhava de esguelha, rapidorápido, os olhos no chão,. Aqui via a loja de barbeiro, e o barbeiro era outro. Dos sobrados de grade de pau debruçaram-se ainda moças, velhas e meninas e nenhuma era a mesma. NobregaNóbrega foi-se animando e encarando. Talvez

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esta velha fosse moça, ha vinte annosanos; a moça nat talvez mamasse, e dá agora de mamar a outra cre/i\ança creançacriança. NobregaNóbrega acabou parando e andando de vagar.

Voltou mais vezes. Só as casas, que eram as mesmas, pareciam reconhecel-oreconhecê-lo, e algumas quasiquási que lhe falavam. Não é poesia. O ex-andador sentia necessidade de ser conhecido das pedras, ouvir-se admirar dellasdelas, contar-lhes a vida, obrigal-asobrigá-las a comparar o modesto de outr’oraoutrora com o opulentogarrido de hoje, e escutar-lhes as palavras mudas: «Vejam, manas, é elleele mesmo.» Passava por ellaselas, fitava-as, interrogava-as, quasiquási ria, quasiquási as

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tocava para sacudil-assacudi-las com força: «Falem, diabos, falem!»

Não confiaria de homem aquelleaquele passado, mas ásàs paredes mudas, ásàs grades velhas, ásàs portas gretadas, aos lampiões antigos, se os havia ainda, tudo o que fosse discreto, a tudo quizeraquisera dar olhos, ouvidos e boca bôca, uma boca bôca que só elleele escutasse, e que proclamasse a prosperidade aq daquelledaquele velho andador. das

Uma vez, viu a matriz de S. Joséde São José aberta e entrou. A igreja egreja era a mesma; aqui estão os altares, aqui está a solidão, aqui está o silenciosilêncio. Persignou-se, mas não orou; olhava só a um lado e outro, andando na direcçãodireção do al

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altar-móraltar-mor. Tinha receio de ver appareceraparecer o sacristão, podia ser o m mesmo, e conhecel-oconhecê-lo. Ouviu passos, recuou depressa e saiu.

Ao sahirsubir uma carroça, espela rua de S. José,pela rua de São José encostou-se áà parede, para deixar passar uma carroça. A carroça †† ou a parede,subiu a calçada, elleele em refugiou-se no n’umnum corredor. O corredor podia ser qualquer; aquelleaquele era o propriopróprio em que elleele fez a operação da nota de dous mil reisréis de Natividade. Olhou bem, era o mesmo. Ao fundo estavam os treztrês ou quatro degráosdegraus da primeira escada que dobrava áà esquerda e pegava com a grande. Sorriu do acaso, reviu por um instante as aquellaaquela manhã, viu no ar a nota de dous mil

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reisréis. Outras lhe teriam vindo ásàs mãos por maneiras assim fantasti rapidafantasticas, masfaceis, masfáceis, mas nunca lhe esqueceu aquellaaquela graciosa folha gravada com tantos symbolos, numerossímbolos, números, datas e promessas, entregue por uma senhora desconhecida, sabe Deus se a propriasabe Deus se a propriaprópria Santa Rita de CassiaCássia. Era a sua particular devoção. Sem duvidadúvida, trocou a nota e gastou-a, mas as partes dispersas não foram fôram senão levar a outras notas um convite para a algibeira do dono, e todas accudiramacudiram a mancheias, obedientes e caladas, para que não as ouvissem crescer.

Por mais que elleele olhasse pela vida dentro, não achava igual egual obsequioobséquio

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do ceucéu, ou sequer do inferno. Mais tarde, se alguma joia lhe levou os olhos, não lhe levou as mãos. Tinha apprendidoaprendido a respeitar o alheio, e possuiaou ganháraou ganháraou ganhara com que o comprar. A nota de dous mil reisréis... Um dia, ousando mais, chamou-lhe presente de Nosso Senhor.

Não, leitor, não e/me\me apanhas em contradicçãocontradição. Eu bem sei que a principioa princípio o andador das almas ,a prin attribuiuatribuiu a nota ao prazer que a dama traria de alguma aventura. Ainda me lembram as palavras delledele: « AquellasAquelas duas viram passarinho verde!» Mas se agora attribuiaatribuía a nota á protecçãoà proteção da santa, não mentia então nem agora. Era difficildifícil atinar

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com a verdade. A unicaúnica verdade certa eram os dous mil reisréis. Nem se pode póde dizer que era a mesma verdade então como agoraem ambos os tempos. A Então, era reaa nota de dous mil reisréis equivalia, pelo menos, a vinte (lembra-te dos sapatos velhos do homem irmão)homem); agora não subia de uma gorgetagorjeta de cocheiro.

TambemTambém não ha contradicçãohá contradição em pôr a santa agora em 1901 agora e a aventura em 1871namorada outr’ora.namorada outrora. Era mais natural o contrariocontrário, quando era maior a intimidade da egdelle com adele com a igreja egreja. Mas, leitor dos meus peccadospecados, amava-se muito em 1871, como ja di se amava em 1861, e 1851 e 1841, não menos que em 1881, 1891 e 1901. O seculoséculo

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secu dirá o resto. DepoisE depois, é preciso não esquecer que a re opinião do irmãoandador das almas ácerca de Natividadeacerca de Natividade foi anterior ao gesto do corredor, quando elle agazalhouele agasalhou a nota na algibeira. É duvidoso que, depois do gesto, a opinião fosse a mesma.

 
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CapituloCapítulo LXXVIII

ProverbioProvérbio errado.

Pessoa a quem li confidencialmente o capitulocapítulo passado, escreve-me dizendo que a causa de to/u\dotudo foi a cabocla do CastelloCastelo. Sem as suas predicçõespredições grandiosas, a esmola de Natividade seria minimamínima ou nenhuma, e o gesto do corredor não se daria por falta de nota. «A occasiãoocasião faz o ladrão», conclueconclui o meu correspondente.

Não con

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Não conclueconclui mal. Ha todavia alguma injustiça ou esquecimento porque as razões do gesto do corredor foram fôram todas pias. AlemAlém disso, o adproverbioproverbioprovérbio pode póde estar errado. Uma das affirmaçõesafirmações de AyresAires, que tambemtambém gostava de estudar adagiosadágios, é que esse não estava certo.

— Não é a occasiãoocasião que faz o ladrão, dizia elleele a alguemalguém; o proverbioprovérbio está errado. A fórma exactaforma exata deve ser esta: «A occasiãoocasião faz o furto; o ladrão nasce feito.»

 
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CapituloCapítulo LXXIXIVLXXVI

Talvez fosse a mesma!

NobregaNóbrega saiu emfimenfim do corredor, mas foi obrigado a deter-se, porque uma mulher lhe estendia a mão:

— Meu senhor, uma esmolinha por amor de Deus!

Nobrega metteuNóbrega meteu a mão no bolso do colletecolete e pegou um nickelníquel, entre dous que lá havia, um de tostão, outro de dous. Pegou no deo primeiro, mas a indo a dar-lh’odar-lho, mudou de ideia; mud não deu o nickelníquel; disse áà

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de ideia, não deu o nickel; disse á velha que esperasse, e entrou mais fundo no corredor. De costas para a rua, metteuintroduziu a mão na algibeira das calças e tirou saccousacou um maço de mdinheirodinheiro; procurou e achou uma nota de dous mil reisréis, não nova, antes velha, tão velha como a mendiga que a recebeu espantada, mas tu sabes que o dinheiro não perde com a velhice.

— Tome lá, murmurou elleele.

Quando a velhamendiga voltou do espanto, Silva NobregaNóbrega acabava de metterrestituir o maço naáà algibeira e ia a querer sair. O que a mendiga então disse merecia ser escripto com então disse veiu entremeado deentão disse veio entremeado de lagrimaslágrimas:

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— Meu senhor! Obrigada, meu senhor! Deus lhe g/p\aguepague! A Virgem SantissimaSantíssima...

E beijava a nota, e queria beijar a mão que lhe dera a esmola, mas elleele recuoua escondeu, como no Evangelho, murmurando que não, que se fosse embora. Em verdade, a palavra da mendiga tinha um som quasiquási mysticomístico, uma especieespécie de melodia do ceucéu, um coro côro de anjos, e fazia bem olh fitar-lhe os olhos encarquilhados, a mão tremulatrêmula, segurando a nota. Silva NobregaNóbrega não esperou que ellaela se fosse, emfim pesaiu, desceu a rua, com as bençãosbênçãos da mulher atrazatrás de si; dobrou a esquina, a passo lento, rapido,rápido, e ahi se foi pensando não se sabe em quê,/.\quê.e acabando por cantar baixinho: A Silva sou leal…

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Atravessou a praça, passou a cathedralcatedral e a igreja egreja do Carmo, e chegou ao CarcellerCarceler, onde entregou as botas a um italiano para que lh’aslhas engr engraxasse. Mentalmente, olhava para cima ou para baixo, para a direita ou para esquerda, — em todo caso para longe, — e acabou murmurando esta phrasefrase:, que tanto podia referir-se áà nota como áà mendiga:, mas provavelmente era áà nota:

— Talvez fosse a mesma!

Nenhum obsequioobséquio, por infimoínfimo que seja, esquece ao beneficiado. Ha excepçõesHá exceções. TambemTambém ha casos em que a memoriamemória dos obsequios affligeobséquios aflige, persegue,persegue e morde, como os mosquitos; mas não é regra. A regra é

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guardal-osguardá-los na memoriamemória, como as joias nos seus escriniosescrínios; comparação justa, porque o obsequioobséquio é muita vez alguma joia, que o obsequiado esqueceu de restituir.

 
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CapituloCapítulo LXXVII

HospedagemHospedagem.

A familiafamília Baptista foi hospedada na apozentada emaposentada em casa de Santos. Natividade não podepôde ir a bordo, e o marido estava occupadoocupado em «lançar uma companhia»; mandaram recado pelos filhos que a casa de Botafogo tinha ja os aposentosquartos preparados. Desde que o carro se pozpôs a andar, Baptista confessou que ia ficar constrangido por alguns dias.

N’umaNuma casa de pensãopensão era melhor, até que nos despejassem a de S.São Clemente.

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Na Que queria você que fizessem? Não havia remedioremédio senão acceitaraceitar, ponderou a mulher.

Flora não disse nada, mas sentia o contrariocontrário do paepai e da mãe. Pensar não pensou; ia tão atordoada d com a vista dos rapazes que as ideias não se enfileiraram naquella fórma logicanaquela forma lógica do pensamento. QuanA propriaprópria sensação não era nitidanítida. Era uma mistura de oppressivoopressivo e delicioso, de turvo e claro, uma felicidade truncada, uma afflicçãoaflição consoladora, e o mais que puderes achar no capitulocapítulo das contradicçõescontradições. Eu nada mais lh lh ponholhe ponho. Nem ellaela saberia dizer o que sentia. Teve allucinaçõesalucinações extraordinarias extraordinarias.extraordinárias.

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rias uma principalmente para que eu eu reservo depois Depois

Agora o que é mister dizer é que a ideia da hospedagem cabe toda aos dous gemeosjovens doutores. Que elleseles eram ja doutores, posto não houvessem comc ainda encetado a carreira de advogado nem de medicomédico. Viviam do amor da mãe e do da bolsa do paepai, inexgotaveisinesgotáveis ambos. O paepai abanou as orelhas áà lembrança, mas os gemeosgêmeos insitinsistiram pelos pelo obsequioobséquio, a tal ponto que a mãe,, saiucontente de os ver de accordoacordo, saiu do silenciosilêncio e concordou com elleseles. TNãoA ideia de ter a pequena comao pé de si, por alguns dias, e discernir qual era o

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melhor acceitoaceito, e o que deveras devéras a amava, pode póde ser que tambem influissetambém influísse na adopção do voto, mas não affirmoafirmo nada a tal respeito. TambemTambém não ass asseguro que tivesse grande gosto em aggaz agazalharagasalhar a mãe e o paepai de Flora.. Não obstante oobstante, o encontro foi cordial de parte a parte. Foi um abraçar, um beijar, um perguntar, um trocar de mimos que não acabava mais. Todos estavam mais gordos, outra côrcor, outro ar. Flora era um encanto para Natividade e Eusebia; Perpetua;Perpétua; nenhuma destas sabia aonde iria parar aquellaaquela moça tão senhoril, tão esbelta, tão...

— Não digam o resto, interrompeu a moça sorrindo; eu tenho a mesma opinião.

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Santos recebeu-os, a áà tarde, com a mesma cordialidade, — talvez menos apparenteaparente, mas tudo se desculpa a a quem anda com grandes negociosnegócios.

— Uma ideia sublime, disse elleele ao paepai de Flora; a que lancei hoje foi das melhores, e as acçõesações valem ja ouro. Trata-se de lã de carneiro, e começa pela criação deste mammiferomamífero nos campos do Paraná. Em cinco annosanos poderemos vestir a AmericaAmérica e a Europa. Viu o programmaprograma nos Jornal do Commercio? jornaes?jornais?

— Não, não leio jornaesjornais daqui desdedaqui, desde que embarquei.

— Pois veraverá!

No dia seguinte, antes de almoçar,

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mostrou ao hospedehóspede o programmaprograma e os estatutos. As acçõesações eram in eram maços e maçoes/s\;maços, juntaseF Santos ia dizendo o valor de cada um. Baptista sommavasomava mal, em regra; daquelladaquela vez, peorpior. Mas os algarismos cresciam áà vista, trepavam uns nos outros, enchiam o espaço, desde o chão até ásàs janellasjanelas, e precipitavam-se por ellaselas abaixo, com um rumor de ouro que ensurdecia. Baptista saiu dalli d’allidali fascinado, e foi repetir tudo áà mulher.

 
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CapituloCapítulo LXXVIII

Visita ao marechal.

D. ClaudiaDona Cláudia, quando elleele acabou, perguntou-lhe com simplicidade:

— Você vaevai hoje ao marechal?

Baptista, caindo em si:

— Naturalmente.

Tinham ajustado que elleele iria ter com o presidente da RepublicaRepública explicar-lhe a commissãocomissão que exercera, toda reservada, s e, sem embargo, imparcial. Diria o espiritoespírito de concordiaconcórdia com que andou e a estima que adquiriu. Em seguida, falaria da convan

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a convenienciaconveniência de um governo como o actual que, pela fortaleza e pela liberdade, excedesse o do generalissimogeneralíssimo; e uma phrasefrase final bem estudada.

— Isso na occasiãoocasião, disse Baptista.

— Não, é melhor leval-alevá-la feita. Eu lembrei-me desta: «Creia V. Ex.Vossa Excelência que Deus está com os fortes e os bons.»

— Sim, não é má.

— Você pode póde accrescentaracrescentar um gesto que indique o ceucéu.

— Isso é que não. Você sabe que eu não dou para gestos, não sou actorator. Eu, sem mexer um pé, inspiro respeito.

D. ClaudiaDona Cláudia dispensou o gesto; não era essencial. QuizQuis que elleele escrevesse a phrasefrase, mas ja estava de córcor. Baptista tinha boa memoriamemória.

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NaquelleNaquele mesmo dia, Baptista foi ao marechal Floriano. Não disse nada ásàs pessoas da casa; contaria tudo na volta. D. ClaudiaDona Cláudia tambemtambém calou, era por pouco tempo; ficou esperando anciosaansiosa. Logo queEsperou duas mortaesmortais horas, chegou a imaginar que lhe tivessem prendid p encarcerado o esposo, por intrigas. Emfim Não era devota, mas a necessidadeo medo inspira devoção, e ellaela resourezou comsigoconsigo. EmfimEnfim, chegou. Baptista. A EllaEla correu a recebel-orecebê-lo, alvoroçada, pegou-lhe na mão e recolheram-se ao quarto. PerpetuaPerpétua (vede vêde o que são testemunhos pessoaespessoais na historiahistória!) aexclamouexclamou enternecida:

— Parecem dous pombinhos!

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confessou que declarou Baptista contou que a recepção foi an melhor do que esperava, posto quecomquantoconquanto o marechal não lhe falasse muito,dissesse nada, mas escutou-o com interesse. A phrasefrase? A phrasefrase sahiosa saiusaiu bem, apenas com uma emenda. ApezarNão estando certo se elleele preferia bons a fortes, ou se fortes a bons...

— Mas lá estavam as— Deviam deviam ser as duas palavras, interrompeu a mulher.

— Sim, mas lembrou-me empregar uma jus terceira: «Creia V. Ex V Ex.Vossa Excelência que Deus está com os dignos!»

Com effeitoefeito, a ultimaúltima palavra podia abranger as duas, e trazia esta vantagem de dar áà phrasefrase um cunho proprarranjo pessoal — delle. pessoal delle.pessoal dele.Tinha ainda esta outra

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— Mas elle não disse nada? nada?o marechal que disse?

— Não disse nada; ouviu-me com attençãoatenção obsequiosa e chegou a sorrir, — um sorriso leve, um sorriso de accordoacordo...

— Ou seria... Quem sabe — se...sabe… Você não andou bem, de certo.decerto. CommigoComigo elleele diria alguma cousa. ao apertar a mão Você espoz tudo conforme Você expoz tudo, conformeVocê expôs tudo, conforme tinhamostínhamos combinado?

— Tudo.

ExpozExpôs as razões da commissãocomissão, o desempenho, a nossa moderação...?

— Tudo, ClaudiaCláudia.

— E o aperto de mão do marechal?

— Não estendeu a mão, a principioprincípio; fez um gesto de cabeça; eu é que estendi a minha, dizendo: Sempre ásàs ordens de V. VVossa Ex.Excelência.

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— E elleele?

ElleEle apertou-me a mão.

— Apertou bem?

— Você sabe, não podia ser um apertão de amigo, mas deve ter sido cordial.

— E nenhuma palavra? Um passe bem, ao menos?

— Não, nem era preciso. Cortejei-o e saisaí.

D. ClaudiaDona Cláudia deixou-se estar pensando. A recepção não lhe pareceu que fosse má, mas podia ser melhor, e faltava o rumo da sefossecom ella,melhor. Com ella,melhor. Com ela, seria muito melhor.

 
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CapituloCapítulo LXXIX

Uma f/F\usãoFusão, uma diffusãodifusão, uma confusão...

AtrazAtrás falei das allucinaçõesalucinações de Flora. Realmente, eram extraordinariasextraordinárias.

Em caminho, depois do desembarque, não obstante virem os gemeosgêmeos separados e sós, cada um no seu coupé, scismoucismou que os ouvia falar; primeira parte da allucinaçãoalucinação. Segunda parte: as duas vozes confundiam-se, de tão iguaes eguaesiguais que eram, e acabaram sendo uma só. Afinal, a imaginação fez dos dous moços uma pessoa unicaúnica.

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Este phenomenofenômeno não creio que possa ser commumcomum. Ao contrariocontrário, não faltará quem absolutamente me não creia, e supponho supponhasuponha invenção pura o que é verdade purissimapuríssima. Ora, é de saber que, durante a commissãocomissão do paepai, Flora ouviu mais de uma vez vez as duas vozes que se fundiam na mesma voz e mesma creaturacriatura. E agora, na casa de Botafogo, succedia a mesm mrepetia-se o phenomenofenômeno. Quando ouvia os dous, sem os ver, a imaginação acabava a fusão do ouvido pela da vista, e um só homem lhe dizia palavras extraordinariasextraordinárias.

Tudo isto não é menos extraordinarioextraordinário, concordo. Se eu consultasse

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o meu gosto, nem os dous rapazes fariam um só mancebo, nem a moça seria uma só donzelladonzela. Corrigiria a natureza desdobrando Flora. Não podendo ser assim, consinto na unificação de Pedro e Paulo. Porquanto, esse effeitoefeito de visão repetia-se ao pé dellesdeles, quandtal qual na ausenciaausência, quando ellaela se deixava esquecer da/o\do occasião logar,lugar, e soltava a redearédea á fantasia.a si mesma. Ao piano, áà palestra, ao passeio na chacarachácara, a áà mezamesa de jantar, tinha dessas razões visões repentinas e breves, e das quaesquaisvisões ellaela mesma sorria, a principioprincípio.

Se alguem quizeralguém quiser explicar este phenomenofenômeno pela lei da hereditaridadehereditariedade,

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suppondosupondo que elleele era a fórma affectivaforma afetiva da variação politicapolítica da mãe de Flora, não achará apoio em mim, e creio que em ninguemninguém. São cousas diversas. Conheceis os motivos de D. ClaudiaDona Cláudia; a filha teria outros que ellaela propriaprópria não sabia. O unicoúnico ponto de semelhança é que, tanto na mãe como na filha, a situaçao phenomenoo fenômeno era agora mais frequente, mas estaem relação áà primeira vinha do atropelloatropelo dos acontecimentos exteriores. Nenhuma revolução se faz como a simples passagem de uma sala a outra; as mesmas revoluções chamadas de palaciopalácio , chamadas trazem alguma agitação que fica por certo tempo,prazo, até que a aguaágua volte ao

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nivel. D. Claudianível. Dona Cláudia obedeciacedia áà inquietação dos tempos.

A fig filha obedeceria a outra qucausa qualquer, que se não podia descobrir logo, nem sequer entender. Era um espectaculo mysteriosoespetáculo misterioso, vago, obscuro, em que as figuras visiv visiveisvisíveis se faziam impalpaveisimpalpáveis, o dobrado ficava unicoúnico, o unicoúnico desdobrado, uma fuzãofusão, uma diffusão,confusão, uma confusão… uma transfusão…diffusão...difusão...

 
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CapituloCapítulo LXXXIV III

Uma t/T\ransfusãoTransfusão, emfimenfim.

Uma transfusão, tudo o que puder definir melhor pelamelhor, pela repetição e graduação das fórmasformas e dos estados aquelle estados, aquelleestados, aquele particular phenomenofenômeno, podes pódes appliempregal-oempregal-oempregá-lo ao no outro e n n este n’esteneste capitulo. Viste já (cap. XIII) que os personagens do livro devem auxiliar o autor; ao leitor cumpre fazer o mesmo. Assim fica sae a obra mais clara. Não importa, senão antes, é mais vantajoso que cada um complete a definição a seu modo. O bom A melhor A boa historia não é só a que tem o nosso suffragio, mas tambem a que leva a nossa collaboração, se não é é que esta é ainda a melhor de todas . capitulo.capítulo.

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Dito o phenomenofenômeno, é preciso dizer tambemtambém que Flora, a principioprincípio, achava-lhe graça. Minto; mnos primeiros tempos, como estava longe, não lhe achou nada; depois, sentiu uma especieespécie de susto ou vertigem, mas logo que se acostumou a passar de dous a um e de um a dous, pareceu-lhe graciosa , e chegou e fi e chegava a alternação, e chegava a evocal-aevocá-la com o propositopropósito de divertir a vista. Afinal nem isto era preciso, a alternação fazia-se de si mesma. Umas vezes era mais

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lenta que outras, alguma instantanea insinstantanea.instantânea. Não eram tão frequentes que confinassem com o deliriodelírio. EmfimEnfim, ellaela se foi acostumado e achando graça. mando e deliciando.mando e deleitad/n\do.acostumando e deleitando.

Uma ou outra vez, na cama, antes de dormir, repetiçaorepetia-se o phenomenofenômeno, depois de muita resistenciaresistência da parte delladela, que não queria perder o somnosono. Mas o somnosono vinha, e o sonho completava a vigiliavigília. Flora passeava então pelo braço do mesmo garção amado, Paulo se não Pedro, e ambos iam admirar o ceu e as estrellas eestrelas e montanhas, ou então o mar, que suspirava ou tempestuava, e as flores flôres e as ruinasruínas. Não era raro ficarem os dous a sós, deantediante de uma nesga

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de ceucéu, claro de luar, ou todo repregado de estrellasestrelas no como um pannopano de azul azul escuro. Era áà janellajanela, suppõesupõe; vinha de fórafora a cantiga dos ventos mansos, e seum espelho grande, pendente da parede, reproduzia as figuras delladela e delledele, confirmando a imaginação delladela. Como era sonho, mud evocava esta a imaginação trazia espectaculosespetáculos desconhecidos, taestais e tantos que mal se podia crer crêr bastasse o tempoespaço de uma noite. E bastava. E sobrava. SucesSuccediaSuccediaSucedia que ella Flora acordava de repente, perdia o quadro e o vule o vulto, e persuadia-se que era tudo illusãoilusão, e raro então dormia. Se era cedo, a erguia-se, andava, cançava-secansava-se, até d adormecer nov de novonovamente e sonhar outra cousa.

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Outras vezes, a fi visão ficava sem o sonho, e , diante delladela uma só figura esbelta, com a mesma voz namorada, o mesmo gesto supplicesúplice. Uma noite, indo ella a deitar-lhe os braços asobre os hombrosombros com o fim inconsciente de cruzar os dedos atrazatrás do pescoço, a realidade, posto que ausente, clamou pelos seus fórosforos, e o unicoúnico homemmoço se desdobrou nas na duas pessoas semelhantes. Se algum delles fosse dado a

A differençadiferença deu ásàs duas visões de accordadaacordada um tal cunho de fantasmagoria que Flora teve medo e pensou no Diabo. A ama secca, aia, o que quer que era n uma mulata escrava da mãe, contava-lhe muitas historias do Diabo e falava

 
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CapituloCapítulo LXXXI 

Ai, duas almas almas …

Anda, Flora, ajuda-me, citando alguma cousa, verso ou prosa, que qne exprima a tua situação. Cita Goethe, amiga minha, cita um verso do Fausto, adequado:

Ai, duas almas no meu seio moram!

A mãe dos gemeosgêmeos, a bellabela Natividade podia havel-ohavê-lo citado tambemtambém, antes delles antesdellesantes deles nascerem, quando ellaela os sentia lutando dentro em si mesma:

Ai, duas almas no meu seio moram!

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Nisto as duas se parecem, — uma os concebeu, outra os recolheu. Agora, como é que se dá ou se dará a escolha de Flora, nem o propria/o\propriopróprio Mephistof phelesMephistophelesMefistófeles nol-ono-lo explicaria de modo claro e certo. O verso basta:

Zwei Seelen wohnen, ach! in meiner Brust!Ai, duas almas no meu seio moram!

Talvez aquelleaquele velho Placido que Placido, quePlácido, que lá deixamos nas primeiras paginas chegasse paginas, chegassepáginas, chegasse a deslindar estas outras. Doutor em materiasmatérias escuras e complicadas, sabia muito bem o valor dos numerosnúmeros, a significação dos gestos não só visiveisvisíveis como invisiveisinvisíveis, a estatisticaestatística da eternidade, a divisibilidade do infinito. Era ja morto destedesde alguns annosanos. HasHás de lembrar-te

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morto desde alguns annos. Has de lem que elleele, consultado pelo paepai de Pedro e Paulo, ácercaacerca da hostilidade original dos gemeosgêmeos, explicou-a promptamenteprontamente. Morreu no seu officioofício; expunha a tres discipulos trez discipulostrês discípulos novos a correspondenciacorrespondência das letras vogaesvogais com os sentidos do homem, quando caiu pde bruços e me expirou.

Já então os adversariosadversários de PlacidoPlácido, — que os tinha na propriaprópria seita, — affirmavamafirmavam haver elleele aberrado da doutrina, e, por natural effeitoefeito, enlouquecido. Santos nunca se deixou ir com esses divergentes da casa commumcomum, que acabaram formando outra egrejinhaigrejinha em outro bairro, onde pregavam que a correspondencia litteral e sensual não correspondencia exacta nãocorrespondência exata não era entre as vogaesvogais e os sentidos, mas entre cntre os sentidos e as vogaesvogais. Esta outra

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formulafórmula, parecendo mais clara, fez com que muitos discipulosdiscípulos da primeira hora acompanhassem os da ultimaúltima, e proclamem agora, como conclusão , final, que o homem é um alphabetoalfabeto de sensações.

Venceram estes, ficando mui poucos fieis áfiéis à doutrina do velho PlacidoPlácido. Evocado algum tempo depois de morto, pelos confessou elleele ainda uma vez a sua formulafórmula, como a unicaúnica das unicasúnicas, e excommungouexcomungou a quantos prégassempregassem o contrariocontrário. Aliás osAliás, os dissidentes já o haviam excommungado tambemexcomungado também, deddeclarando abominavelabominável a sua memoriamemória, com aquelle odioaquele ódio rijo, que fortalece tantaalguma vez o homem contra a frouxidão da piedade.

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Talvez o velho PlacidoPlácido deslindasse o problema em cinco minutos. Mas para isso éraera preciso evocal-oevocá-lo, e o discipulodiscípulo Santos cuidaria/va\cuidava agora de umas liquidações ultimasúltimas e lucrativas. Não só de fé vivem ovive o homem, mas tambemtambém dode pão e seus compostos ou silie similares.

 
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CapituloCapítulo XCILXXXIIILXXXII

Em S.São Clemente.

Ao cabo de poucas semanas, a familiafamília Baptista saiu da casa Santos, e foi partornou áà suarua de S.São Clemente. A despedida foi terna, as saudades começaram antes da separação, mas a affeiçãoafeição, o costume, a estima, — a necessidade, em summasuma, de se verem a miude miudomiúdo compensaram a melancolia, e a gente Baptista foi levou acom a promessa levou promessa de que a gente Santos iria vel-a dahivê-la daí a poucos dias.

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Santos de ir la vel-a brevemente. em breves dias.

Os gemeosgêmeos cumpriram de cedo a promessa. Um dellesdeles, parece que Paulo, foi lá nessa mesma noite com recado da mãe para saber se tinham chegado bem. Disseram-lhe que sim, accrescentandoacrescentando Baptista, para abreviar a visita, que estavam mu bastante cançadoscansados. Os olhos de Flora desmentiram esta affirmaçãoafirmação; mas dentro em pouco estav achavam-se não menos tristes que alegres. A alegria vinha na da promptidãoprontidão de Paulo, a tristeza da ausenciaausência de Pedro. Quizera-osQuisera-os ambos naturalmente; mas, como é que as duas sensações se mostravam a um tempo, eis o que não entenderás

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bem nem mal. Certamente, os olhos iam m frequentementediversas vezes para a porta, e uma vez pareceu-lhe áà moça ouvir rumor na escada; tudo illusãoilusão. Mas estes gestos, que Paulo não viu, tão contente estava de se haver adiantado ao irmão, não eram taestais que a fizessem esquecer o irmão presente.

Paulo saiu tarde, não só pelopara o fim de aproveitar a ausenciaausência de Pedro, mas ainda porque Flora o fazia demorar, com o intuito de ver se o outro chegava. Assim que,que tiro uma vírgula que existe tanto no ms. como na 1ª edição, depois de «que», porque me parece que é errada e não contribui para o ritmo de leitura. em Machadodeassis.net, transcreve-se «quê» em vez de «que», o que justifica a manutenção da vírgula. A minha alteração parece-me, no entanto menos intrusiva do que a opção tomada nessa edição a mesma dualidade de sensação enchia os olhos da moça, até áà hora da despedida, em que a parte dotriste foi maior que a alegre, pois que eram

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duas ausenciasausências, em vez de uma. ConclueConclui o que quis/z\eresquizeresquiseres, minha dona; ellaela recolheu-se para dormir, e concluiureconheceu que, se se não dorme com uma tristeza na alma, muito menos com duas.

 
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CapituloCapítulo LXXXVIII

Contra a insomnia.A grande noite.

Ha muito remedioremédio contra a insomniainsônia. O mais vulgar é contar de um até mil, dous mil, tres mil, ou trez mil outrês mil ou mais, se a insomnia imsomniainsônia não ceder logo. É remedioremédio que ainda n não fez dormir ninguemninguém, ao que parece, mas não importa. Até agora, todas as applicações efficazesaplicações eficazes e certas contra a tisicatísica vão de par com a noção de que a tisicatísica é incuravelincurável. ConvemConvém que

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os homens affirmemafirmem o que não sabem, e, por officioofício, o contrariocontrário do que sabem; assim se formam fórmaforma esta outra incuravelincurável, a Esperança.

Flora, outra incuravelincurável tambem,também, se não preferes a definição de incontentavel inexplicavelinexplicável, que lhe deu AyresAires, a graciosa Flora teve naquellanaquela noite a sua insomniainsônia. Mas foi um tanto culpa sua. Em se vez de se deitar quietinha e dormir com os anjos, achou melhor velar com um ou dous dellesdeles, isto ee gastar uma parte da noite, áà janellajanela ou sen dando ou an ou sentada,ou sentada, a recordar , ee a pensar, a co comparacotejar e a compl/a\rar,a contemplarcompletar, mettidametida no roupão de linho, com os cabelloscabelos atados para dormir.-

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A principioprincípio pensou q eu no que lá estivera, e reviaevocou todas as suas graças, realçadas pela virtude particular de a ter ido ver áà noite, quando asem embargo de se terem visto de manhã. Sentia-se grata. Toda a conversação foi alliali repetida na solidão da alcova, com as intonações diversas, o vario assumptovário assunto, e as interrupções constantes,frequentes, ora dos outros, ora delladela mesma. EllaEla, em verdade, só interrompia, par para pensar no outro ausente, — o mesmo que não lhe aconteceu agorae portanto não fazia mais que converter o dialogodiálogo em monologomonólogo, o qual por sua vez se convertiaacabava em silenciosilêncio e contemplação.

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Agora, pensando em Paulo, queria saber por que porque é que o não escolhia para noivo. o Tinha uma qualidade a mais, a nota aventurosa do caractercaráter, e esta feição não lhe desprazia. Incontentavel InexplicavelInexplicável ou não, deixava-se levar pelos impetosímpetos do rapaz, que queria trocar o mundo e o tempo por outros mais puros e felizes. AquellaAquela cabeça, apenas masculina, podia trazerera como que m/d\estinadadestinada a mudar a marcha do sol, que ella effectiv Flora não duvidaria que crer que fosse errada, ou somente monotono. ou so monotono. A luasol, que andava errado. A lua tambemtambém. A lua pediu/a\pedia um contactocontato mais frequente com os homens, menos quartos, não descendo o minguante de metade. VisivelVisível todas as

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noites, sem que isso acarretasse a decadenciadecadência das estrellasestrelas, continuaria modestia/a\mentemodestamente o officioofício do sol, e faria sonhar os olhos insomnesinsones ou só cançadoscansados de dormir. Tudo isso cumpriria a alma de Paulo, faminta de Perfperfeição. Era um bom marido, em summasuma. Flora cerrou as palpebraspálpebras, para vel-ovê-lo melhor, e achou-o a seus pés, com as mãos delladela entre as suas, risonho e extaticoextático.

— Paulo! meu querido Paulo!

Paulo Inclinou-se, para vel-ovê-lo de mais perto, e não perdeu o tempo nem a intenção. Visto assim, era mais bellobelo que simplesmente conversando

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sobredas cousas vulgares e passageiras. Enfiou os olhos nos olhos, e achou-se dentro da alma do rapaz. O que lá viu não soube dizel-odizê-lo bem; foi tudo tão novo e radiante que os/a\a olh pobre retina dade moça não podia fitar nada com segurança nem continuidade. As ideias faiscavam como saindo de um fogareiro que se abanava, á força de abano,à força de abano, as sensações batiam-se em duelo, as reminiscenciasreminiscências subiam frescas, algumas saudades, e ambiciosoambições, principalmente, umas ambições de azasasas largas, que faziam vento só com agital-asagitá-las. Sobre toda essa mescla e confusão chovia ternura, muita ternura...

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Flora recolheu os olhos, Paulo estava na mesma postura; mas do lado da porta, mettidometido na penumbra, a figura de Pedro appareciaaparecia, não menos bella,bela, mai/s\mas um tanto triste. Flora sentiu-se tocada daquelladaquela tristeza. Parece que, se amasse exclusivamente o primeiro, o segundo podia chorar lagrimaslágrimas de sangue, sem lhe merecer a menor sympathiasimpatia. Que o amor, conforme as nymphasninfas antigas e modernas, não tem piedade. Quando ha piedade para outro, dizem ellaselas, é que o amor ainda não nasceu de verdade, ou ja acabou morreu de todo, ou se assimou vae nascer e assim não o coração um dia lhe o cora não o não lhe importa vestir essa primeira camisa da/o\do alma affecto.afecto. Perdoa a figura;

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não é nobre, nem acaso clara, mas a situação não me dá tempo de ir áà cata de outra.

Pedro approximou-seaproximou-se, a passo lento, ajoelhou-se tambemtambém e tomou-lhe as mãos que Paulo apertava entre as suas. Paulo ergueu-se crgueu-se e sumiu-se pela outra porta. O quarto tinha duas. A cama ficava entre ellas cllaselas. Talvez Paulo fosse bramindo de coleracólera; ellaela é que não ouviu nada, tão docemente viva/o\vivo era a/o\o figuragesto de Pedro Pcdro, já agora sem melancolia, e os olhos tão extaticos, extaticosextáticos como os do irmão. Não eram taestais que fossem as aventu saissem,saíssem, como os deste, ásàs aventuras. Tinham a quietação de quem não queria mais sol nem lua que esses que andam ahi, que

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se contenta de ambos, e, se os acha divinos, não cuida de os trocar por novos. Era a ordem, se queres, a estabilidade, o accordoacordo entre si e as cousas, não menos sympathicossimpáticos ao coração da moça, ou por trazerem a ideia de perpetuaperpétua ventura, ou por darem a sensação de uma alma capaz de resistir.

Nem por isso os olhos de Flora deixaram de penetrar os de Pedro atéPedro, até chegar áà alma do rapaz. A/O\O razamotivo secreto desta e/o\utraoutra entrada podia ser o simples escrupuloescrúpulo de cotejar as duas para julgal-asjulgá-las, se não era somente sómente o desejo de não parecer menos curiosa de uma que de outra. Ambas as

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razões são boas, mas talvez nenhuma fosse verdadeira. O gosto de fitar os olhos de Pedro era tão natural que nem esnão exigia intenção particular n nenhuma, e bastava fital-osfitá-los para escorregal-osregarescorregar e cair dentra/o\dentro da alma namorada. E Viu bem que e/E\raEra gemeagêmea da outra; não lhe viu mais nem menos que nesta.

Unicamente, — e aqui toco o ponto escabroso do capitulocapítulo, — achou cá alguma cousa indefinivelindefinível que não sentira lá; em compensação, sentiucompensação sentiu ou lá outra que não se lhe deparou cá. IndefinivelIndefinível, não esqueças. ÉE escabroso porque nada ha peorhá pior que falar de sensações sem nome,. Crede-me Crêde-me, amigo meu, e tu,

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não menos amiga minha, crede-me crêde-me que eu preferia contar as rendas do roupão da moça, os cabelloscabelos apanhados atrazatrás, os fios do tapete, as taboastábuas do tectoteto e porfimpor fim os estalinhos da lamparinalamparina que vaevai morrendo... Seria enfadonho, mas entendia-se.

Sim, a lamparina ia morrendo, mas ainda podia dar luz ao regresso de Paulo. Quando Flora o viu entrar e ajoelhar-se outra vez, ao pé do irmão, e ambos dividirem entre si as mãos delladela, mansos e cordatos, mal teve tficou longamente attonitaficou longamente attonitaficou longamente atônita. Obra de um credo, como en diziam antigamente,os nossos antigos, quando havia mais religião que relogiosrelógios. Voltando a si, puxou as mãos, estendeu-as depois sobre a

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a cabeçacabeça dellesdeles, como se lhes apalpasse a differençadiferença, o quid, o algo, o indefivelfinivel.indefinivel.indefinível A lamparina ia morrendo... Pedro e Paulo falavam-lhe por exclamações, por exhortaçõesexortações, por supplicassúplicas, a que ellaela respondia mal e tortamente, não que os não entendesse, mas por não os aggravaragravar, ou acaso por não saber a qual dellesdeles cadiria melhor. A ultimaúltima hypothesehipótese tem ar de ser a mais provavelprovável. Em todo caso, explica bem o que e era é o melhor é o prologo prologoprólogo do que succedeusucedeu, quando a lamparina chegou aos ultimosúltimos arrancos.

Entre luz e fusco tudo se mistura; Tudo se mistura, á meia claridade;, à meia claridade; tal seria a causa da fuzãofusão dos vultos, que de dous que eram,

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ficaram sendo um só. Flora, não tendo visto sair nenhum dos gemeosgêmeos, mal podia crer crêr que formassem agora uma só pessoa, mas acabou crendo crêndo, mormente depois que esta unicaúnica pessoa solitariasolitária parecia completal-acompletá-la interiormente, melhor que nenhuma das outras em separado. Era muito fazer e desfazer, mudar e transmudar. Pensou enganar-se, mas não; era uma só pessoa, feita das duas e de si mesma, que sentia bater nellanela o coração. Estava tão cançadacansada de emoções que tentou erguer-se e ir fórafora, mas não pôde; as pernas pareciam de chumbo e colladascoladas ao solo. Assim esteve, até que a lamparina morreu de todo. Flora teve

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o que succedeu, quando a lamparina que a, lamparina, ao canto, morreu de todo. Flora teve um sobresaltosobressalto na poltrona, e ergueu-se:

— Que é isto? A lamparina apagou-se

A lamparina apagou-se. Sigo, como regra, a 1ª edição, daí que faça parágrafo aqui. No entanto, a edição crítica da Comissão Machado de Assis considera que incluir esta frase neste parágafo, e não na fala de Flora é um «equívoco, visto que o fato de a lamparina estar extinta já é do conhecimento do leitor». Foi accendel-aacendê-la. outrViu então que estava só, semsem um nem outro, sem dous nem um só fundido de ambos. Toda a fantasmagoria se desfizera. A lamparina (agora nova) alumiava o seu quarto de dormir, de do menina e moça e a imaginação creáracriara tudo. Foi o que ella suppozela supôs, e o leitor sabe. Flora comprehendeucompreendeu que era tarde, e um gallogalo confirmou essa opinião, cantando; outros gallosgalos fizeram a mesma cousa.

— Ora, meu Deus! exclamou a filha de Baptista.

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Metteu -seMeteu-se na cama, e, se não dormiu dormiu logo, tambemtambém não se demorou muito; não tardou a estar com os anjos. Sonhou com os/o\o gallos canta/o\canto dos gallosgalos, uma carroça, um lago, uma scenacena de viagem do mar, um discurso e um artigo. O artigo era de verdade. A mãe veiuveio bater-lhe a porta ás 10 horas da manhã accordal-a, ás dez horas da manhã, chamando-lhe dorminhoca, e alliacordá-la, às dez horas da manhã, chamando-lhe dorminhoca, e ali mesmo, lhe leu umana cama, lhe d leu uma folha da manhã que descompunha recommendavarecomendava o pae marido ao governo. Flora ouviu satisfeita; acabáraacabara a grande noite.

 
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CapituloCapítulo XLIIILXXXIV III

Calculos de mãeO velho segredosegredo.

Natividade dormiu tranquillatranquila, em Botafogo, mas accordouacordou pensando nos filhos e na moça de S.São Clemente. Viera reparando nos tres treztrês. Parecera-lhe antes que Flora não acceitavaaceitava um nem outro, logo depois que os acceitavaaceitava a ambos, e mais tarde um e outro alternadamente. Concluiu que ainda não sentiria nada particular e decisivo; naturalmente iria com os temp tempos, a ver qual dellesdestes a merecia

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deveras devéras. EllesEles é que pareciam sentir igual egual inclinação e igual egual ciumeciúme. DahiDaí alguma possivelpossível possivel catastrophecatástrofe. A separação não supprimiriasuprimiria tudo; mas, alemalém de que, separadas as familiasfamílias, nem tudo seria presente a seus olhos, as visitas podiam ser menos frequentes e até raras. Tinha assim o que quisera quizera.

Ao demais, ia chegando o tempo de ir para Petropolis; — propriamente Petropolis; propriamentePetrópolis; proriamente, chegárachegara. Natividade levacuidava de subir com os os filhos. Sempre haveria lá em no alto damas elegantes, diversões, alegria. Podia ser até que elleseles achassem noivas, e bastava uma

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para um. O que ficassem sem ellaela teria a liberdade de despoza despozardesposar Flora. CalculosCálculos de mãe; vieram outros que os modificaram, e outros que os restauraram. Quem fôrfor mãe que lhe atire a primeira pedra.

Nenhuma outra mãe atirou naa primeira pedra áà nossa amiga. Quero crer crêr , em honra da maledecencia, que a razão disto não foi senão a propriaprópria discrição de Natividade. Suspeitas e calculoscálculos iam ficando no coração . d delladela. Calou tudo e esperou.

De restoAo cabo, Flora cada vez gostava mais de Natividade. Queria-lhe como se ellaela fosse sua mãe, duplamente mãe, uma vez que não escolhera ainda

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nenhum dos filhos. A causa podia ser que as duas indolesíndoles se ajustassem melhor que entre Flora e D. ClaudiaDona Cláudia. A principioprincípio, sentiu não sei que inveja amiga, antes desejo, quando via que as fórmasformas da outra, p embora arruinadas pelo tempo, ainda conservavam alguma linha da esculpturaescultura antiga. Pouco a pouco, foi descobrindo em si mesma o introito de uma bellezabeleza, que devia ser longa e fina, e de uma vida, que podia ser grande...

Flora, — e aqui entra propriamente a materia do capitulo, — Flora conheciaFlora conhecia a predicçãopredição da cabocla do Castello castelloCastelo, relativamente aos dous g gemeosgêmeos. A predicçãopredição não era j ja

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segredo para ninguemninguém. Santos falárafalara delladela em tempo, apenas occultandoocultando a subida de Natividade ao CastelloCastelo; emendou a verdade, dizendo que a cabocla é que viera a Botafogo. O resto foi reveládorevelado em confiança, como ao finado Pantoja,Placido,Plácido, e ainda depois de alguma luta. Tres TrezTrês ou quatro vezes investiu parae recuava/ou\e recuou. por medo dos ralhos da mulher; mas, seUm dia, a lingua, a língua Um dia a lingoa deu sete voltas na boca bôca, e o segredo saiu medroso e sussurrado, mas perdeu o medo pelo gosto de mostrar que os rapazes seriam grandes,. Afinal Emfim,Enfim, No manuscrito, a palavra «Afinal» inicia um parágrafo o segredo foi esquecendo. Mas PerpetuaPerpétua, por isto ou aquilloaquilo, contou-o agora áà moça Baptista, que a ouviu

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incredulaincrédula. Que podia saber a cabocla do futuro?

— Sabia, e a prova é que adivihnhouadivinhou outras cousas, que não posso contar e eram verdadeiras. Você não imagina como o diacho da cabocla via longe. E tinha uns olhos de espetar o coração.

— Não acredito, D. PerpetuaDona Perpétua. Pois agora o futuro da gente... E grandes como?

— Isso não disse por mais que Natividade lhe perguntasse; disse só que seriam grandes e subiriam muito. Talvez se venham a ser ministros . de Estado.

PerpetuaPerpétua parecia haver emprestado emp trazido pedido de emprestimo comprado os olhos áà cabocla. Enfiava-os pela amiga abaixo, até o coração, que aliás não

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batia com força nem appressadoapressado, mas tão regular como de costume. Entretanto, não sendo impossivelimpossível que os dous rapazes chegassem aos altos deste mundo, Flora deixou de objectar e acceitouaceitou a predicçãopredição, sem outra palavra mais que um gesto, — sabes, creio, — um gesto de boca, fa fazendo descair os hombroscantos delladela, levantando os hombrosombros de leve,/m\entelevemente, e espalmando as mãos, como se dissesse: EmfimEnfim, pode póde ser.

Perpetua accrescentouPerpétua acrescentou que, mudado o regimenregímen, era natural que Paulo chegasse primeiro áà grandeza, — e aqui espetou maisbem os olhos. Era um modo de apanhar os sentimentos da/e\de mFlora, acenando-lhe com a grandeza deelevação

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de Paulo, pois bem podia ser que viesse a amar maantes o destino que a pessoa. Não achou nada. Flora continuou a não se deixar ler. Não lhe attribuasatribuas isto a calculocálculo, não era calculocálculo. Seriamente, não pensava em nada ánada acima de si.

 
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CapituloCapítulo XCIVLXXXV

Tres TrezTrês constituiçõesconstituições.

— Você crê devérasdeveras que venhamos a ser grandes homens? perguntou/ár\aperguntáraperguntara Pedro a Paulo, antes da queda do imperioimpério.

— Não sei; você pode póde vir a ser, quando menos, primeiro ministro.

Depois Vindo a republica,Depois de 15 de novembro, Paulo retorquiu a pergunta, e Pedro respondeu negativamente, trocado o restocomo o outro irmão, emendando o resto:

— Não sei; você pode póde vir a ser presidente da republicarepública.

Ja laJá lá iam dous annosanos. Agora pensavam

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m mais em Flora que na subida. A boa moral pede que ponhamos a cousa publicapública acima das pessoaespessoais, mas os moços nisto se parecem com velhos e varões de outra idade edade, que muita vez pensam mais em si que que nou em todos. Ha excepçõesHá exceções, nobres algumas, outras nobilissimasnobilíssimas. A historiahistória offerece exemplos do contrario, guarda muitas dellas,guarda muitas delas, e os poetas, epicosépicos oue tragicostrágicos, estão cheios de casos e modelos de abnegação.

Praticamente, seria exigir muito de Pedro e Paulo que cuidassem mais da constituição de 24 de fevereiro que da moça Baptista. Cuidavam dePensavam em ambas, é verdade, e a primeira ja dera logarlugar a alguma troca de palavras acerbas. A constituição, se

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fosse gente viva, e estivesse ao pé dellesdeles, ouviria os ditos mais contrarioscontrários deste mundo, porque Pedro ia ao ponto de a achar um pouc poço de iniquidades, e Paulo a propriaprópria Minerva nascendo nascida da cabeça do pae. Falo de Jove. de Jupiter. Falo de Jove. Falo por metaphorametáfora para não descair do estyloestilo. Em verdade, elleseles empregavam palavras mais cruasmenos nobres e mais emphaticasenfáticas, e acabavam trocando as primeiras entre si. Na rua, onde o encontro de manifestações politicaspolíticas era commum,comum, tudo era oc e as noticiase as notícias áà porta dos dat jornaesjornais frequente, tudo era occasiãoocasião de debate.

Quando succedia porém, porém, que a imagem de Flora surgisse appareciaaparecia entre elleseles por ima

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imaginação, o debate esmorecia, mas as injuriasinjúrias continuavam e até au cresciam, sem confissão do novo motivo, que era ainda maior que o primeiro. EffectivamenteEfetivamente, elleseles iam chegando ao ponto em que dariam as duas constituições, a republicana e a imperial, pelo amor exclusivo da moça, se tanto fosse exigido. Cada um faria com ellaela a sua constituição, constituição. melhor que outra qualquer deste mundo.

 
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CapituloCapítulo LXXXVII XCIV XLI LXXXVII

Antes que me esqueça.

Uma cousa é preciso dizer antes que me esqueça. Sabes que os dous gemeosgêmeos eram bellosbelos e continuavam parecidos parecidos; por esse lado não supp pusuppunhamsupunham ter motivo de en inveja entre si. Ao contrariocontrário, um e outro achavam em si qualquer cousa que accentuavaacentuava, senão melhorava, as graças communs.comuns. Não era verdade, mas não é a verdade que vence, é a convicção. Convence-te de uma

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ideia, e morrerás por ellaela, escreveu AyresAires por esse tempo no Memorial, e accrescentouacrescentou: «nem é outra a grandeza dos sacrificiossacrifícios, mas se a verdade acerta com a convicção, então nasce o sublime, e atrazatrás delledele o utilútil...» Não acabou ou não explicou esta phrasefrase.

 
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CapituloCapítulo LXXXVIII XCVII LXXXVII

Entre AyresAires e Flora.

AquellaAquela citação do velho AyresAires faz-me lembrar um ponto em que elleele e F a moça Flora divergiam ainda mais que na idade edade. Já contei que ellaela, antes da viacommissãocommissãocomissão ao norte do pae, defendiado pai, defendia Pedro e Paulo conformePaulo, conforme um e outroestes ou diziam mal um do outro. Naturalmente fazia agora a mesma cousa, mas a mudança do regimenregímen trouxe occasiãoocasião de defender tambemtambém monarchistasmonarquistas oue republicanos, segundo ouvia as opi

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opiniões de Paulo ou de Pedro. EspiritoEspírito de conciliação ou de justiça, dizia defendia applacavaaplacava a ira ou o desdemdesdém do interlocutor: «Não diga isso... São patriotas tambemtambém... ConvemConvém desculpar algum excesso...» Eram só phrasesfrases, sem impetoímpeto de paixão nem estimuloestímulo de principiosprincípios; E se o e o interlocutor concluiaconcluía sempre:

— A senhora é boa.

Ora, o costume de AyresAires , como sabes, era o contrario oppostooposto dessa contradicçãocontradição benigna. Has de Has-deHás-de lembrar-telembrar-te que elleele usava concordar sempresempre concordar com os outros,o interlocutor, não por desdemdesdém da pessoa, mas não dospara não dissentir nem brigava/ar\brigar. Tinha observado que as convicções, quando contrariadas, descompõem

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o rosto áà gente, e não queria ver a cara dos outros assim, nem dar áà sua um aspecto abominavelaspecto abominável. Se lucrasse alguma cousa, vá; mas, não não lucrando nada, preferia ficar em paz com Deus e os homens. DahiDaí o arranjo de gestos e phrases affirmativasfrases afirmativas que deixavam os partidos quietos, e mais quieto a si mesmo.

Uma noite,Um dia, como elleele estivesse com Flora, falou aquelle daquelledaquele costume delladela, dizendo-lhe que parecia estudado. Flora negou que o fosse; era inclinação natural defender os ausentes, que não podiam responder por nada; demais, applacavaaplacava assim um dos gemeosgêmeos com quem falasse, e depois o outro.

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TambemTambém concordo.

— E porquepor que hade ha dehá de o senhor concordar sempre? perguntou ellaela sorrindo.

— Eu? é engano. — Posso concordar com a senhora, porque é uma deliciadelícia ir com as suas opiniões, e seria um mau gosto rebatel-asrebatê-las, mas, em verdade, não ha calculohá cálculo. Com os mais, se concordo, é porque elleseles só dizem o que eu penso.

Ja o tenho achado em contradicçãocontradição.

Pode Póde ser. A vida e o mundo não são outra cousa. A senhora não pode s saberá isto bem, porque é moça cone ingenua,e ingênua, como é,mas creia que a vantagem é toda sua. A ingenuidade é o melhor livro e a mocidade a melhor escola. Vá desculpando

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aesta minha pedanteria; alguma vez é um mal necessarionecessário.

— Não se accuseacuse, conselheiro. O senhor sabe que eu não creio nada contra a sua palavra, nem contra a sua pessoal;soa;pessoa; a propriaprópria contradicçãocontradição que lhe algumacho é agradavelagradável.

TambemTambém concordo.

— Concorda com tudo.

— Olha aqui, Flora; dá licença, conselheiro?

Esqueceu-me dizer que esta conversação era áà porta de uma loja de fazendas e modas;/,\ Ayres ia nrua do Ouvidor. AyresAires ia na direcçãodireção do largo de S.São Francisco de Paula e viu a moça á porta e a mãemãe e a filha dentro, sentadas, a

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escolher um tecido. Entrou, comprimentou-ascumprimentou-as, e tornou á soleira veiuveio á portaà porta com a filha. O chamado de D. ClaudiaDona Cláudia interrompeu a conversação por alguns instantes. AyresAires ficou a olhar para a rua, onde subiam e desciam mulheres de todas as classes, homens de todos os officiosofícios, sem contar as pessoas paradas de ambos os lados e e no centro. Não havia borborinhoburburinho grande, nem socegosossego puro, um meio termo.

Talvez algumas pessoas fossem conhecidas de AyresAires e o comprimentassemcumprimentassem; mas elleeste tinha a alma tão mettidametida em si mesma que, se falou a uma ou duas, foi o mais. De quando em quando, voltava a cabeça para dentro,

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onde Flora e a mãe faziam a sua consulta. ViviaOuvia A edição crítica da comissão Machado de Assis escolhe, aqui, a lição do manuscrito as palavras trocadas ainda agora. Sentia-se curioso de saber se finalmente a moça escolhia a um dos gemeosgêmeos, e qual dellesdestes. Vá tudo; tinha já pezarpesar que não fosse algum, posto não lhe importasse saber se Pedro ou Paulo. QuizeraQuisera vel-avê-la feliz, se a felicidade era o casamento, e feliz o marido, sem embargo da escolhaexclusão; o excluidoexcluído seria co consolado. Agora, se era por amor dellesdeles, se delladela, é o que propriamente se não pode póde dizer com verdade. Quando muito, para levantar a ponta do veuvéu, seria preciso entrar na alma delledele, ainda

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mais fundo que elleele mesmo. Lá d se descobriria acaso, entre as ruinasruínas de meio celibato, uma flor flôr desco pdescoradadescorada e tardia de paternidade, ou mais propriamente deou, mais propriamente, de saudade delladela...

Flora trouxe novamente a rosa fresca e rubra da primeira hora. Não fa falaram mais de contradicçãocontradição, mas da rua, da gente e do dia. Nenhuma palavra ácercaacerca de Pedro ou Paulo.

folha não numerada

ULTIMO

por

Machado de Assis

(da Academia Brasileira )

 
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CapituloCapítulo XCVIII LXXXVIII

Não, não, não.

EllesEles, onde quer que estivessem naquellenaquele momento, podiam falar ou não. A verdade é que, se nenhum consentia em deixar a moça, tambemtambém nenhum contava obo/t\el-aobtel-aobtê-la, por mais que a achassem particulinclinada. Tinham já combinado que o rejeitado acceitariaaceitaria a sorte, e deixaria o campo ao vencedor. Não chegando a victoriavitória, não sabemsabiam como resolver a batalha. Esperar, seria o mais facilfácil, se a paixão não crescesse, mas a paixão crescia.

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Talvez não fosse propriamente exactamenteexatamente paixão, ser/e\ deu/r\mosse dermos a esta palavra o sentido de violenciaviolência; mas, se lhe reconhecermos a simplesuma forte inclinação de amor, um amor adolescente ou pouco mais, era o caso. Pedro e Paulo cederiam a mão da pequena, se houvessem de consultar só a razão, e mais de uma vez estiveram a fazel-o em fe pique de o fazer; em raro lampejo, que para logo desappareciadesaparecia. A ausenciaausência era ja insoffriveljá insofrível, a presença necessarianecessária. Se não fora fôra o que aconteceu e se contará por essas paginaspáginas adiante, haveria materiamatéria para não acabar mais o livro; era só dizer que sim e que não, e o que ellesestes A edição crítica da comissão Machado de Assis escolhe, aqui, a lição do manuscrito

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pensaram e sentiram, e o que ellaela se sentiu e pensou, até que o editor dissesse: basta! Seria um livro de moral e de verdade, mas a historia promettida e começada ficaria sem fim. Não, não, não... Força é continual-acontinuá-la e acabal-aacabá-la. Comecemos por dizer o que os dous gemeosgêmeos ajustaram entre si, poucos dias depois daquelledaquele sonho ou deliriodelírio da moça Flora, áà noite, no quarto.

 
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CapituloCapítulo XCII/VIIII\ XCIV LXXXIX

Entre reminiscencias O dragãoO dragão.

Vejamos o que el é que ellesestes ajustaram. Vinham de estar com AyresAires no theatroteatro, uma noite, matando o tempo. Conheceis este dragão; toda a gente lhe tem dado os mais fundos golpes que pode póde, elleele esperneia, expira e renasce. Assim se fez naquellanaquela noite. Não sei que theatroteatro foi, nem que peça, nem que generogênero; fosse o que fosse, a questão era matar o tempo, e os tres treztrês o deixaram estirado no chão.

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Foram Fôram dallidali a um restaurant. AyresAires disse-lhes que, antigamente, em rapaz, acabavam/a\acabava a noite com amigos da mesma idade edade. Era o gr corpotempo de Offenbach e da opereta. Contava/ou\ aned/c\dotasContou anecdotasContou anedotas, diziadisse as peças, descrevia/eu\descreveu as damas e os partidos, e dava e deu quasi deuquási deu por si repetindo um trecho, musicamúsica e palavras. Pedro e Paulo ouviam com attençãoatenção, mas não sentiam nada do que espertava os seus ecos écosecos nada alma do diplomata. Ao contrariocontrário, tinham vontade de rir. Que lhes importava a noticianotícia de da um velho café da rua UruguayanaUruguaiana, trocado e/d\epoisdepois em theatro, d ja agora em cousa nenhuma theatro, agora em nadateatro, agora em nada, uma gente que viveu e brilhou, passou e acabou antes que

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elleseles viessem ao mundo? O mundo começou vinte annosanos antes, daquella antes daquellaantes daquela noite, e não acabaria mais, como um viveiro de moços eternos que era.

AyresAires sorriu, porquanto elleele tambemtambém assim cuidou, aos vinte e dous annosanos de idade edade, e ainda se lembrava do sorriso do paepai, já velho, quando lhe disse algo parecido com aisso. Mais tarde, tendo aqu adqueridoadquirido do tempo a noção ide idealista que ora possuia, comprehendeupossuía, compreendeu que tal dragão era juntamente vivo e defunto, e tanto valia matal-omatá-lo como nutril-onutri-lo. Não obstante, as recordações eram doces, e muitas dellasdelas viviam ainda frescas, como se viessem da vesperavéspera.

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A differençadiferença da idade edade era grande, não podia entrar em pormenores, com elleseles. Ficou só em lembranças, e cuidou de outra cousa. Pedro e Paulo, entretanto, receiososreceosos de que elleele os adivinhasse e comprehendessecompreendesse o desprezo que lhes inspiravam as saudades de tempos remotos e estranhos extranhos, pediram-lhe informações, e elleele deu as que podia, sem intimidade.

Ao cabo, a conversação não va valeu mais que este resumo, e a separação não custou menospouco. Paulo aindaainda lhe pediu Offenbach, Pedro uma descripçãodescrição das palparadas de 7 de Setembrosetembro e 2 de Dezembrodezembro; mas nem por isso surdiu entre elles nenhum azedumeo diplomata achou meio de saltar ao presente e particularmentemeio de saltar ao presente e particularmente

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a Flora, que louvou como uma bella creaturabela criatura. Os olhos de ambos concordaram que era bellissima. Tambembelíssima. Também louvou as qualidades moraesmorais, a finura do espirito, taesespírito,tais dotes que Pedro e Paulo reconheceram tambemtambém, e dahidaí a conversação, e porfimpor fim o ajuste a que me referi no começo deste capitulocapítulo e pede outro.

 
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CapituloCapítulo XCIX XCV

Um duello de obsequios. O ajusteO ajuste.

— Quanto a mim, um de vocês gosta delladela, senão ambos, disse AyresAires.

Pedro estudou as unhas,mordeu os beiços, Paulo consultou o relogiorelógio; iam ja na rua. AyresAires concluiu o que sabia, que sim, que ambos, e não hesitoutrepidou em dizel-o, accrescentandodizê-lo, acrescentando que a moça não era como a RepublicaRepública, que um podia defender e outro attacaratacar; cumpria ganhal-aganhá-la ou perdel-aperdê-la de vez. O que é que ellesQue fariam elles,eles, dada a escolha? Ou

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ja estava dadafeita a escolha, e um delleso preterido teimava em a torcer para si?

Nenhum falou logo, posto que ambos sentissem necessidade de explicar alguma cousa. Que não. QueTinham que a escolha não era clara ou decisiva. Que um e outro tinham direito OutrosimOutrosimOutrossim, que lhes cabia o direito de esperar a preferenciapreferência, e fariam o diabo para alcançal-aalcançá-la. TaesTais e outras ideias e sensaçõesideias vagavam silenciosamente nem/ll\esnellesneles, sem sairsair fórafora. A razão percebe-se, e devia ser mais de uma, — primeiro, a materiamatéria da conversação, — depois, a gravidade do do interlocutor. Por mais que AyresAires abrisse as portas áà franqueza dos rapazes, estes eram rapazes e elle Mas e elle velho.e ele velho. Não Mas

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velho. maduro velhusco velhusco Mas o assumptoassunto em si era tão seductorsedutor, o coração apezar de tudo tãocoração, apesar de tudo, tão indiscreto, e a necessi que elles afinal nãoque não houve remedioremédio se nãosenão falar, mas falar negando, mas negar sorrindofalar negando.

— Não me neguem, e interrompeu Ayres, a Ayres; aAires; a gente madura sabe as manhas da gente nova, e adivinha com facilidade o que ellaela faz. Nem é preciso adivinhar; basta ver e ouvir. Vocês gostam delladela.

EllesEles sorriam, mas ja agora com tal amargor oue acanhamento que mostravam o desgosto da rivalidade, aliás sabida dellesdeles. Tal rivalidade era tambemtambém sabida de outros, devia sel-osê-lo de Flora, e a situação lhes parecia

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agora mais complicada e fechada que d’antesdantes.

Tinham j chegado ao largo da Carioca, era uma hora da noite. Uma victoriavitória da/e\familia da S dade Santos esperava p alliali os rapazes, a conselho e por ordem da mãe, que buscava todas as occasiõesocasiões e meios de os fazer andar juntos e familiares. QueriaTeimava em emendar a natureza.Ja Levava-os muita vez com ambos os filhos a passeio, ao theatroteatro, a visitas. NaquellaNaquela noite, como soubesse que elles iam ao theatroteatro, , juntosmandou aprestar a victoria, victoriavitória que os levouconduziu para a cidade, e ficou áà espera no largo delles.deles.

— Entre, conselheiro, disse Pedro, o carro dá para tres; trez:três: eu vou no banquinho da frente.

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Entraram e partiram.

— Bem, continuou AyresAires, é certo que vocês gostam delladela, e igualmente egualmente certo que ellaela ainda não escolheu entre os dous. Provavelmente, não sabe que faça. Um terceiro resolveria a crise, porque vocês se consolariam depressa; tambemtambém eu me consolei em rapaz. Não havendo terceiro, e não se podendo prolongar a situação, porquepor que é que vocês não combinam alguma cousa?

— Combinar quê? perguntou Pedro sorrindo.

— Qualquer cousa. Combinem um modo de cortar este nó gordio. Cada um que siga a sua vocação. Você, Pedro, tentará primeiro desatal-odesatá-lo; se elleele não puder, Paulo,

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você pegue da espada de Alexandre, e dê-lhe o golpe. Fica tudo feito e acabado. Então o destino, que os espera, com duas bellas creaturasbelas criaturas, virá trazel-astrazê-las pela mão a um e a outro, e tudo se compõe na terra como no ceucéu.

AyresAires disse mais cousas antes de se apear áà porta de da casa. Apeado, ainda lhes perguntou: da calçada

— Estamos de accordoacordo?

Os dous responderam de cabeça affirmativamenteafirmativamente, e, ficando sós, não disseram nada. Que fossem pensando, é natural, e, porventura o tempo lhes pareceu curto entre o CatteteCatete e Botafogo. Chegaram a á casa, subiram a escada do jardim, falaram da temperatura, que umPedro achava

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deliciosa e o outro abominaPaulo abominavel,Paulo, abominável mas não disseram assim para não irritar um ao outro. Grande força é o interesse, amigosA esperança do ajuste é que os levava áà moderação relativa e passageira. Vivam os fructosfrutos pendentes do dia seguinte!

Cá estava o quarto áà espera dellesdeles, um brinco de graça arranjo e graça, de commodidadecomodidade e luxorepouso. Era a mãe que dava os ultimosúltimos retoques todos os dias; ellaela cuidava das flores flôres que seriam postas na/o\snos varinhasvasinhos de porcellanaporcelana, e ellaela mesma as ia tirar áà noite e pôr de forapôr fóra das janellasjanelas para que elleseles não as respirassem dormindo. Cá estavam as velas ao pé das duas camas, mettidasmetidas nos

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seus castiçaescastiçais de prata, umaum com o nome de Pedro, outro de com o de Paulo, gravados. Os gemeosTapetinhos de suas mãos, laços dados por ellaela nos cortinados, finalmente o retrato delladela e o do marido pendurados da áà parede, entre as duas camas, naquellenaquele mesmo logarlugar em que estiveram os de LuizLuís XVI e Robespierre, comprados na rua da Carioca. e

Ao pé de cada um dos castiçaescastiçais acharam um bilhetinho da mãe. Aquide Natividade. Aqui está o que ellaela dizia: «Algum de vocês quer ir commigocomigo áà missa, amanhã? Faz annosanos que seu avô morreu, e PerpetuaPerpétua está adoentada.» Natividade esquecera de lhes falar antes do theatro, eantes, e, aliás,

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andava bem sem elleseles , mormente de carruagem; mas gostava de os ter comsigoconsigo.

Pedro e Paulo riram do convite e da fórmaforma, e um delles propozdeles propôs que, para agradar áà mãe, fossem ambos áà missa. A aceitação acceitação da proposta veiu tão prompta que não se pode jurar , sem peccado, se foi realmente aceitação ou iniciat se foi realmente acc/ e\ itação ou se se a iniciativa nasceu dos dous. Já veiu prompta; jáveio pronta; já não era harmonia, era ventriloquia, umaharmonia, era uma especieespécie de dialogodiálogo na mesma pessoa. O ceucéu parecia escrever o tratado de paz que ambos teriam de assignar, ou assignar; ouassinar; ou, se re/pre\ferespreferes, a natureza trocava emencorrigia as indolesíndoles, e os dous rixosos começavam a ajustar o ser e o parecer. TambemTambém

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não juro isto, digo o que se pode crer póde crêr só pelo aspecto das cousas.

— Vamos áà missa, repetiram.

Seguiu-se um grande silenciosilêncio. Cada um ruminava o ajuste e o modo de o propor. EmfimEnfim, de cama a cama, disseram o que lhes parecia melhor, propuzerampropuseram, discutiram, emendaram e co e concluiramconcluíram um ajuste sem escripturaescritura de tabelliãotabelião, apenas por af faceitação acceitação de palavra. Poucas clausulascláusulas. Confessando que não podiam assg/e\gurarassegurar a escolha de Flora, concordaram em esperar por ella, ellaela durante um prazo curto; tres treztrês m mezesmeses. Dada a escolha, o rejeitado obrigava-se a não tentar m mais

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nada. Como tivessem a certeza final da escolha, o accordoacordo era facilfácil; cada um não faria mais que excluir o outro. Não obstante, se ao cabofim do prazo, nenhuma escolha houvesse, cumpria adoptar uma clausulacláusula ultimaúltima. A primeira que acudiu foi deixarem ambos o campo, mas não os seduziu. Ficaram emLembrou-lhes recorrer áà sorte, e aquella/e\aquelleaquele a favor que fosse desi designado por ellaela, deixaram/ia\deixaria o campo ao outro rival. Assim passou uma hora de conversação, após a qual, cuidaram de dormir.

 
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CapituloCapítulo XCVII XCII

Nem só a verdade se deve ásàs mães.

ÁsÀs nove horas da manhã seguinte, Natividade estava promptapronta para ir áà missa que mandáramandava dizer na matriz da Glória Gloria Goria; nenhum dos filhos se lhe apresentou.

— Parece que dormem.

E duas, tres treztrês, quatro, cinco horasvezes, foi até áà porta do quatrquarto a ver se ouvia rumor, como resposta ao bilhete que deixáradeixara. Nada. Concluiu que teriam entrado tarde. Só não atinou que

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dormissem sobre o ajuste, nem que ajuste era. Uma vez que o fizessem em cama fôfafofa, tudo ia bem. EmfimEnfim, acabou de calçar as luvas, desceu, entrou no carro e foi para a igreja egreja.

A missa era anniversariaaniversária, como dizia o bilhete. Uso velho; o paepai tinha a sua missa, a mãe outra, os irmãos e parentes outras. Não lhe esqueciam datas obituariasobituárias, como não lhe esqueciam de as de nascimento, para os cartões ou visitas nataliciasnatalícias., para quaesquer quaesquerquaisquervisitas ou cartõesquaesquer queque fossem amigas ou parentas. que fossem, amigas ou parentas; trazia-as todas de córcor. Doce memoriamemória! Ha pessoas a quem não ajudas, e chegam a brigar comsigoconsigo e com outros por abandono teu. Felizes os que tu proteges; esses sabem o que é 24 de março, 10 de

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a fé agosto, 2 de abril, e 7 e et 31 de outubro, 10 de novembro, o annoano todo, suas tristezas e alegrias particulares.

Voltando a á casa, viu Natividade os dous filhos passeanno jardim, áà espera delladela. EllesEles correram a abrir-lhe a portinhola do carro, e depois de lhe a apearem e lhe beijara/e\mbeijarem a mão, pedexplicaram a falta. Tinham resolvido ir ambos, mas o somnosono...

— O somnosono e a preguiça, concluiu Nativia mãe rindo.

— Foi só o somnosono, disse Pedro.

AccordamosAcordamos agora mesmo, accaacabou Paulo.

QuizeraDisputaram dar-lhe o braço; Natividade saos satisfez dando um braço a

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cada um. Em casa, ao despir-se,mudar de roupa, Natividade reflectiurefletiu que, se Flora lhes tivesse feito algum pedido, elles accordariameles acordariam cedo, por mais tarde que se deitassem; a memoriamemória serviriamria deserviria de despertador. Passou-lhe uma sombra rapidarápida, mas depressa se lhe reconciliou com a o/a\ o phenomeno. Assim differença. Assimdiferença. Assim que, não foi por ciume,ciúme, mas para os trazer a outras seducçõesseduções e separal-ossepará-los da guerra ante a be bellabela Flora, que osa mãe teimou em subir comlevar os filhos para PetropolisPetrópolis. Subiriam na primeira semana de janeiro. A estação seria excellente; annunciouexcelente; anunciou festas, citou nomes, notou-lhes que PetropolisPetrópolis era

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a cidade da paz. O governo mudára póde mudarpode mudar cá embaixo e nas provinciasprovíncias...

— Que provinciasprovíncias, mamãe? alh atalhou Paulo.

Natividade sorriu e emendou:

— Nos Estados. VaeVai desculpando os descuidados/os\descuidos de tua mãe. Bem sei que são Estados; não são como as provinciasprovíncias antigas, não esperam que o presidente lhes vá aqui da Corte Côrte...

— Que Corte Côrte, baronezabaronesa?

Agora osAgora os dous riram, mãe e filho. Passado o riso, Natividade continuou:

PetropolisPetrópolis é a cidade da paz; é, como dizia outro dia o conselheiro AyresAires, é a cidade neutra, é a cidade

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Ayres, é a cidade neutra, é a cidade das nações. Se a capital do Estado fosse ali, não haveria deposição de governo. PetropolisPetrópolis, — vejam vocês , que o nome, apezarapesar da origem, ficou e ficará;/,\ — é boni de todos. A estação dizem que vaevai ser umencantadoraencantadora...

— Eu não sei se posso ir ja, indisse Paulo.

— Nem eu, acudiu Pedro.

Ainda uma vez estavam de accordoacordo, mas aqui o accordoacordo trazia provavelmente o divorciodivórcio, reflectiurefletiu a mãe, e o prazer que lhe deuderam aquellasaquelas duas palavras morreu depressa. Perguntou-lhes que razão tinham para ficar e até

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quando. Se estivessem estabelecidos com o seu consultorio medicoconsultório médico e a sua banca de advogado, era bem; mas, se nenhum dellesdeles começáracomeçara ainda a carreira, que fariam cá embaixo, quando ellaela e o marido ...

— Justamente; eu preciso detenho que fazer um uns uns estudos de clinicaclínica na Santa Casa, respondeu Pedro.

Paulo explicou-se. Não ia ja praticar a advocacia, mas precisava de consultar certos documentos do seculoséculo XVIII na BibliothecaBiblioteca Nacional; ia escrever uma historiahistória das terras possuidaspossuídas.

Nada era verdade, mas nem só a verdade se devedeve dizer ásàs mães. Natividade

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ponderou que elleseles podiam fazer tudo entre as duas barcas de PetropolisPetrópolis; desciam, almoçavam, trabalhavam, e ásàs quatro horas subiriam, como a demais gente. Em cima jantariam com ella e o visachariam visitas, musicamúsica, bailes, mil cousas bellasbelas, sem contar as manhãs, e a temperatura e os domingos. EllesEles defenderam o estudo, como sendo melhor por h muitas horas seguidas.

Natividade não teimou. com elles. Mais depressa ficaria esperando que ell os filhos acabassem os documentos da Bibliothecada Biblioteca e a clinicaclínica da Santa Casa. Esta ideia fel-a attentarfê-la atentar para a necessidade de ver estabelecidos o joven medicojovem médico e o j jovenjovem advogado. Trabalhariam com outros profissionaesprofissionais de reputação e iriam adiante e acima. Talvez a carreira scientificacientífica lhes déssedesse a grandeza annunciadaanunciada pela cabocla do CastelloCastelo, e não a politicapolítica ou outra. Em tudo se pode podia resplandecer e subir. Aqui fez a criticacrítica de si mesma, quando imaginou que Baptista abriria a carreira politicapolítica de algum dellesdeles, sem advertir que Baptist o paepai de Flora mal

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continuaria a propriaprópria carreira, aliás obscura. Mas a ideia do mando tornava a occuparocupar a cabeça da mãe, e cheios delladela os olhos fitavam ora Pedro, ora Paulo.

Chegaram a accordoacordo. EllesEles subiriam aos sabbadossábados para tornariam e desceriam ásàs segundas; os/o\ mesmos/o\o mesmo por occasiãoocasião de dias santos e festas de gala. Natividade contava com o costume e ásas attracçõesatrações.

Na barca e em PetropolisPetrópolis era objectoobjeto de conversação a differençadiferença entre os filhos, que só iam lá uma vez por semana, e o paepai, que trazia tantos negociosnegócios ásàs costas, e subia todas as tardes. Que fariam elleselesembaixo em baixo, quando tantosmuitosalguns olhos podiam attrail-osatraí-los e aggarral-os agarral-osagarrá-los lá em cima? Natividade defendia os gemeosgêmeos, dizendo que elles iamum ia áà Santa Casa e outro áà BibliothecaBiblioteca Nacional, A exp Ae estudavam muito,

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ásàs noites. A explicação era acceitavelaceitável, mas, alemalém de fazer perder um assumptoassunto aos bonitos dentes do verão, podia ser invenção dos rapazes; naturalmente, iriam ásàs moças.

A verdade é que os dous rapazes elles faziameles faziam rumor em PetropolisPetrópolis, durante as poucas horas que lá passavam. Além do mais, tinham a singulsemelhant/ç\a e asemelhança e a graça, a igualdade da elegancia e das maneiras. Asgraça. As mães diziam bonitas Sabia-se, é verdade, da rixa velha. Ayres explicava por modo gracioso engenhoso o contraste das opiniões dos crat caracteres: era a marca da natureza para os differençar; e o mesmo succedia ao contraste das opiniões. As outras mães diziam bonitas co

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cousas áà mãe delles. Depois indagavam delles, e indagavamdeles, e indagavam da razão verdadeira que os prendia áà capital, não assim como eu digo, nu e cru, mas com arte fina e insidiosa; arteinsidiosa, arte perdida, porque a mãe insistia na BibliothecaBiblioteca e na Santa Casa. Deste geitojeito, a mentira, ja servida em primeira mão, era servida em segunda, e nem por isso melhor acceitaaceita.

 
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CapituloCapítulo XCII 

Sol lucet omnibus.Segredo acordado.

EmfimEnfim, que segredo ha que se não descubra? Sagacidade, boa vontade, curiosidade, chama-lhe o que quizeresquiseres, ha uma força que deita cá para fórafora tudo o que as pessoas cuidam de esconder. Os propriospróprios segredos cançamcansam de dormir. calar, — calar ou dormir; fiquemos com este outro verbo, que serve melhor áà imagem. CançamCansam, e ajudam de a seu modo aquilloaquilo que imputamos áà indiscrição alheia.

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de dormir. Se Quando ellesQuando eles abrem os olhos, faz-lhes mal a escuridão. Um raio de luzsol basta. Então pedem aos deuses (porque os segredos são pagãos) um raiosinho de Apollo, um tudo nada quasi nadaquási nada de crescupulo crepusculocrepúsculo, aurora ou tarde, posto que a aurora promettia/a\promettaprometa tarde, dia, emquantoenquanto a tarde caecai outra vez na noite, mas tarde que seja, tudo é respirar claridade. Que os segredos, amiga minha, tambemtambém são gente; nascem, vivem e morrem. Agora o que succedesucede, quando um olhar de sol penetra na solidão dellesdeles, é que difficilmentedificilmente não saesai mais, e geralmente cresce, rag rasga, alaga, e os traz pela orelha cá para fòra fórafora. Vexadas/os\Vexados da grande luz, elleseles apenas a principioa princípio andam

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de ouvido em ouvido, calados medrosos, a prin cochichadoscochichados, alguma vez escriptosescrito em bilhetes, ainda que tão vagamente e sem nomes, que mal se adivinhará quaesquais sejam. É o periodoperíodo da infanciainfância, que passa depressa; a mocidade pula por cima da adolescência adolescencia, e elles apparecemeles aparecem fortes e derramados, sabidos como gazetas. EmfimEnfim, se a velhice chega, e elleseles não se vexam dos cabelloscabelos brancos, tomam conta do mundo, e alguma vezacaso conseguem, não digo esquecer, mas aborrecer; entram na f familiafamília do propriopróprio sol, que quando nasce é para todos, segundo dizia uma taboletatabuleta da minha infancia. Sol lucet omnibus infanciainfância.

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TaboletasTabuletas da minha infanciainfância, ai, taboletastabuletas! QuizeraQuisera acabar por ellaselas este capitulocapítulo, mas o assumptoassunto não teria nobreza nem interesse, e ainda uma vez interromperiamosinterromperíamos a nossa historiahistória. Fiquemos no segredo dial divulgado. Sol lucet omnibus. Umadivulgado; é quanto basta. Uma veranista elegante não dissimulou o seu espanto ao saber que os dous irmãos combinavam n’umnum ponto que faria romper os maiores amigos deste mundo. Outra Um secretario de legaçãoUm secretário de legação insinuou que podia ser brincadeira de/os\ ados dous.

— Ou dos tres treztrês, accrescentouacrescentouem um secretario da legaçãooutrase veranista.

Iam de passeio áà Quitandinha, a cavallocavalo. AyresAires acompanhava-os, e não

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dizia nada. Quando lhe perguntaram se Flora era bonita, respondeu que sim, e falou da temperatura. A primeira veranista perguntou-lhe se era capaz de supportar aquellasuportar aquela situação. AyresAires respirou, como quem vem de longe, e declarou que aos pés de um padre seria obrigado a mentir, taestais eram os seus peccadospecados; mas alliali, na estrada, ao ar livre, entre senhoras, confessou que matáramatara mais de um rival. Que se lembrasse trazia sete mortes ásàs costas, com variasvárias alma.armas,. As senhoras riam; elleele falava soturno. Só uma vez escapou de morrer primeiro, e inventou uma anecdotaanedota napolitana. Fez a apogiapologia do punhal. Naturalmente, — Quando eu matei um rapaz na Sicilia... começou elle.Um que tivera

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não falava para ser ouvido, mas para gracejar e correr tempo até que se recolhesse a outro assumpto que não a joven Flora e os seus dous namorados gemeos. ha tivera, hativera, há muitos annos, o melhor aço do mundo, foi obrigado a dal-o de presente a um bandido, seu amigo, quando lhe provou que completára na vespera o seu vigesimomuitos anos, o melhor aço do mundo, foi obrigado a dá-lo de presente a um bandido, seu amigo, quando lhe provou que completara na véspera o seu vigésimo nono assassinato.

— Aqui está para o trigesimotrigésimo, disse-lhe entregando a arma.

Poucos dias depois soube que o sabandido, com aquelleaquele punhal, matáramatara o marido de uma senhora, e depois a senhora, a quem amava sem ventura.

— Deixei-o com trinta e um crimes de primeira ordem.

As damas continuavam a rir; elleele conseguiu assim desviar a conversação de Flora e seus namorados.

 
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CapituloCapítulo XCIX XCIV XCIII

Não ata nem desata.

EmquantoEnquanto indagavam delladela em PetropolisPetrópolis, a situação moral de Flora era a mesma, — o mesmo conflictoconflito de affinidadesafinidades, o mesmo equilibrioequilíbrio de preferenciaspreferências. Cessado o conflictoconflito, roto o equilibrioequilíbrio, ,/a\ solução viria de promptopronto, e, por mais que doesse a um dos rapazes,namorados, venceria o outro, a menos que interviesse o punhal da anecdotaanedota de AyresAires.

Assim passaram algumas semanas

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desde a subida de Natividade. Quando AyresAires vinha ao Rio de Janeiro, não deixava de ir vel-avê-la a S.São Clemente, onde a achava qual era d’antesdantes, salvo um pouco de silenciosilêncio em que a viu mettidametida uma vez. No dia seguinte recebeu uma carta de Flora, pedindo-lhe desculpa da desattençãodesatenção, se a houve, e mandando-lhe saudades. «Mamãe pede que a recommende tambemrecomende também ao senhor e áà família da baronezabaronesa.» Esta recommendaçãorecomendação exprimia o consentimento obtido da mãe para que lhe escrevesse a carta. Quando elleele tornou ao Rio, correu a S.São Clemente e Flora pagou-lhe com alegria grande o silenciosilêncio daquelladaquela outra manhã. Todavia, não

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era espontaneaespontânea nem constante; tinha seus cochilos de melancolia. AyresAires voltou ainda algumas vezes na mesma semana. Flora apparecia-lheaparecia-lhe com a alegria costumada, e, para o fim, a mesma alteração dos ultimosúltimos dias.

Talvez a causa daquellas syncopesdaquelas síncopes da conversação fosse a viagem que o espirito da moça fazia áà casa da gente Santos. Uma das vezes, o espiritoespírito voltou para dizer estas palavras ao coração: «Quem és tu, que não atas nem desatas? Melhor é que os deixes de vez. Não será difficildifícil a acçãoação, porque a lembrança de um acabará por destruir a de outro, e ambas se irão perder com o vento, que arrasta as folhas velhas e

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novas, além das particulaspartículas de cousas, tão leves e pequenas, que escapam ao olho humano. Anda ; esquece-os;, esquece-os; se os não podes pódes esquecer, faze por não os ver mais; te o tempo e a distanciadistância farão o resto.»resto».

Tudo estava acabado. Era só escrever no coração as palavras do espiritoespírito, para que lhe servissem de lembrança. Flora escreveu-as, com a mão tremulatrêmula e a vista turva; logo que acabou, viu que as palavras não combinavam, as letras confundiam-se, depois iam morrendo, não todas, mas salteadamente, até que o musculomúsculo as lançou de si. No valor e no impetoímpeto podia comparar o coração

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ao gemeogêmeo Paulo; o espiritoespírito, pela arte e subtilezasutileza, seria o gemeogêmeo Pedro. Foi o que ellaela achou no fim de algum tempo, e com isso explicou o inexplicavelinexplicável.

ApezarApesar de tudo, não a entendiaacabava de entender a situação, e resolveu acabar com ellaela ou comsigoconsigo. Todo esse dia foi inquieto e complicado. Flora pensou em ir ao theatroteatro para que os gemeosgêmeos não a achassem áà noite. Iria cedo, antes da hora da visita. A mãe mandou comprar o camarote, e o pae approvoupai aprovou o/a\a ca diversão, quando veiuveio jantar, mas a filha acabou com dor dôr de cabeça, e o camarote ficou perdido.

— Vou mandal-omandá-lo aos jovens Santos, insinuou Baptista.

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D.Dona Cláudia oppoz-se oppôz-seopôs-se e guardou o camarote. A razão era de mãe; posto lhe tardasse a escolha e o casamento, ellaela queria vel-os allivê-los ali comsigoconsigo, falando, rindo, debatendo que fosse, com os olhos pendentes da filha. Baptista não entendeu logo nem depois; mas para não desagradar áà esposa, deixou de obsequiar os rapazes. Uma occasiãoocasião tão boa! Não era muito para elleseles que possuiampossuíam com que f despender, e despendiam; m o obsequioobséquio estava na lembrança, e tambemtambém na cartinha que lhes escreveria, mandando o camarote. Chegou a redigil-aredigi-la de cabeça; apezarcabeça, apesar de ja inutilinútil. A mulher, ao vel-ovê-lo calado e seriosério, cuidou que fosse zanga e quizquis fazer as pazes;

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o marido arredou-a brandamente com a mão. Redigia a cartinha, punha no texto um gracejo sizudosisudo, dobrava o papel e lançava-lhe este sobrescripto gemeosobrescrito gêmeo: «Aos jovens apostos apostolosapóstolos Pedro e Paulo.» O trabalho intellectualintelectual tornou mais dura a opposiçãooposição de D. ClaudiaDona Cláudia. Uma cartinha tão bonita!

 
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CapituloCapítulo XCV XCIV

Comsigo.Gestos oppostos.Gestos oppostosGestos opostos.

Como pódepode um só tectoteto cobrir tão diversos pensamentos? Assim é tambemtambém este ceucéu azulclaro ou brusco, — outro tectoteto vastissimovastíssimo que os cobre com o mesmo zelo da gallinhagalinha aos seus pintos... Nem esqueça aoo proprio craneopróprio crânio do homem, que cob os cobre igualmente, não só diversos, se nãosenão oppostosopostos.

Flora, no quarto, não cuidava então de bilhetes nem camarotes; tambemtambém não acudia áà dor dôr de cabeça, que não

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tinha. Se falou nellanela foi por ser uma razão proximapróxima e acceitavelaceitável, breve ou longa, conforme a necessidade da occasiãoocasião. Não supponhassuponhas que está rezando, embora tenha alliali um oratoriooratório e um crucifixo. Não viria pedir a Jesus que lhe livrasse a alma daquelladaquela inclinação desencontrada. Posta áà beira da cama, os olhos no chão, pensava naturalmente em alguma cousa grave, se não era nada, que tambemtambém aggarraagarra os olhos e o pensamento de uma pessoa. Mordeu os beiços sem raiva; metteumeteu a cabeça entre as mãos, como se quisesse quizesse concertar os cabelloscabelos, mas os cabelloscabelos estavam e ficavam como d’antesdantes.

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Quando se levantou era totalmente no noitnoite, e accendeunoite, e accendeunoite, e acendeu uma vela. Não queria g gazgás. Queria uma claridade branda e aos seus amores que désse pouca vidaque desse pouca vida ao quarto e aos seus moveismóveis, que deixasse algumas partes na meia escuriddadeescuridade. O espelho, se alli fosse fosse a elle,fosse a ele, não lhe repetiria a bellezabeleza de todos os dias, com a vela posta em cima de uma papeleira antiga, a distanciadistância. Mostrar-lhe-hiaMostrar-lhe-ia a nota de pallidezpalidez e de melancolia, é verdade, mas não sa nossa amiguinha não se sabia pallidapálida, nem se sentia melancolicamelancólica. Tinha na tristeza desvairada daquelle momento daquella occasiãodaquela ocasião uma pontinha de desp desespero. Ia de um lado para outro; e o espirito ia com ellaabatimento.

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Como tudo isso se combinava, não sei, nem ellaela mesma. Ao contrariocontrário, Flora como que se sentia parecia, ás vezes,parecia, às vezes, tomada de um espanto, outras de uma inquietação vaga, e, se buscava o repouso de uma cadeira de balanço, era para o deixar logo. Ia de um lado lado para outro, e o espirito com ella, e o coração com ambos, mal sabendo o que queriam nem o que lhes faltava. Ouvid Ouviulogo. Ouviu bater oito horas. DahiDaí a pouco, segundo o costumeentrariam provavelmente osos gemeos. Pedro PedroPePedro e Paulo. Flora teveTeve lembrança de ir dizer áà mãe que a não mandasse chamar; estava de cama. Esta ideia não durou o que me custa escrevel-aescrevê-la, e aliás ja lajá lá fica vaevai na outra linha. ReccuouRecuou

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a tempo.

— É um despropositodespropósito, disse comsigoconsigo; Basta quebasta não appareceraparecer. Mamãe dirá que estou adoentada, tanto que perdemos o th theatroteatro, e, se vier aqui, digo-lhe que não posso appareceraparecer...

As ultimasúltimas palavras saíram-lhe sairam-lhe de viva voz, para maior firmeza da resolução. ProjectouProjetou depois reclinar-se j na já na cama;; logo que ouvisse o passo da mãe no corredor depois achou melhor fazel-ofazê-lo quando ouvisse o passo da mãe no corredor. Todas essas idas e vindas alterações poalternativas podiamalternativas podiam vir de si mesmas; entretanto, não é impossivelimpossível que fosse tambemtambém um modo de sacudir de si quaesquerquaisquer lembranças aborreciveis. Estas vinham de quando em quando, pela vista ou

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pelo ouvido; ecosecos de conversação, retalhos de finezas, olhos longamente postos nella e muitas outras cousas crusavam a alma presente e a moça aborreciveis. A moçaaborrecíveis. A moça temia ir atrazatrás dellasdelas.

 
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CapituloCapítulo XCV

O terceiroterceiro.

Temendo ir atrazatrás dellasdelas, que havia de fazer Flora? Abriu uma das janellasjanelas do quarto, a que dava para a rua, encostou-se áà grade e enfiou os olhos para baixo e para cima. Viu a noite sem estrellasestrelas, pouca gente que passava, calada ou conversando, algumas salas abertas, com luzes, uma com piano. Não viu uma certa figura de homem na calçada oppostaoposta, parada, olhando para a casa de Baptista. Nem

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a viu, nem lhe importaria saber quem fosse. A figura é que tão depressa a viu como estremeceu e não despegou mais os olhos delladela, nem os pés do chão.

Lembras-te daquelladaquela veranista de PetropolisPetrópolis que attribuiuatribuiu um terceiro na namorado áà nossa amiguinha? «Um dos tres treztrês», disse ellaela. Pois aqui está este o terceiro namorado, e pode póde ser que ainda appareçu/a\appareçaapareça outro. Este mundo é dos namorados. Tudo se pode póde dispensar nellenele; até o proprio governodia virá em que se dispensem tudo até os proprio governos, a anarchiaanarquia se organizará organisará de si mesma mansa e de si mesma, como nos primeiros dias do paraisoparaíso. Quand/t\oQuanto áà comida, virá de Boston ou de Nova- Iork YorkIorque um processo para que a

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a gente se nutra com a simples respiração do ar. Os namorados é que serão perpetuosperpétuos.

AquelleAquele era officialoficial de de secretaria. Geralmente os empregados de secretaria casam cedo. Gouvea GouvêaGouveia era solteiro. Um Andava Naturalmente andavasolteiro, andava ásàs moças. da a dia,Um domingo, áà missa, a que iareparou na filha do ex-presidente, de provincia, e ficou tão preso que nãoe saiu da igreja egrejaigreja tão enleiado apaixonado que não quizquis outra nesta outra promoção. mais qu Tinha gostado de muitas, acompanhou algumas, esta foi a primeira que o feriu deveras devéras. Pensava nellanela dia e noite. A rua de S.São Clemente era o caminho que o levava oue trazia da Repartição. Se a via,

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olhava muito para ellaela, detinha-se a distanciadistância, áà porta de uma loja, as vezes,casa, ás ou então fingia acompanhar com os olhos um carro que passava, e tirava-os pdo carro para a moça.

Quando amanuense, fizera fizéra versos; nomeado officialoficial, perdeu o costume, mas um dos effeitosefeitos da paixão foi espertal -o.restituir-lh’o.restituir-lho. ComsigoConsigo, em casa da mãe, gastava papel e tinta a metrificar as suas esperanças. Os versos escorriam da pennapena, a rima com elleseles, e as estrophesestrofes vinham seguindo direitas e alinhadas, como companhias de batalhão; o titulotítulo seria o coronel, a epigrapheepígrafe a musicamúsica, uma vez que regulava a marcha dos pensamentos. Bastaria estaessa

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força áà conquista? Gouvea GouvêaGouveia imprimiu-lhe alguma vez, alguns em jornaesjornais, com esta dedicatoriadedicatória: A alguemA alguemalguém. Nem assim a praça se rendia.

Uma diavez deu-lhe na cabeça mandar uma declaração de amor. Paixão concebe despropositosdespropósitos. Escreveu duas cartas, sem o mesmo estyloestilo, antes contrariocontrário. A primeira era de poeta; dava-lhe tu, como nos versos, adjectivavaadjetivava muito, chamava-lhe deusa, pordeusa por allusãoalusão ao nome de Flora, e citava Musset e CasiCasimiroCasimiro de Abreu. A segunda carta foi um desforço do officialoficial sobre o amanuense. Saiu-lhe ao estyloestilo das informações e dos officiosofícios, grave, respeitoso, com ExcellenciasExcelências. Comparando as duas cartas,

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não acabou de escolher nenhuma. Não foi só o texto diverso e contrariocontrário, foi principalmente a falta de autorização autorisação que lhe o levou a rasgal-as ambas.rasgar as cartas. Flora não o conhecia; quando menos, fugia de o conhecer. Os olhos de ambos encondella, se encontravamdella, se encontravamdela, se encontravam -se; mas os della fugiam os delle, retiravam-seos dele, retiravam-se logo, enfadados ou indifferentes logo indifferenteslogo indiferentes. Uma só vez cuidou que traziam a intenção de perdoar. Que essa breve e rapida lufada de luzQue esse breve raio de luz lhe desabotoasse as as flores das esperanças desabotoasse as flôres da esperançadesabotoasse as flores da esperança (começo a falar como a primeira carta) era possivelpossível e até certo; tão certo que lhe fez perder o ponto na SecretariaRepartição. Felizmente, era optimoóptimo empregado; e o directordiretor ampliou o quarto de hora de toleranciatolerância, ee attendend/eu\attendeuatendeu

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attendendo attendeu áà dor de causacabeça, causa dade triste insomniainsônia.

— Dormi sobre a madrugada, escrev explicavaacabou o officialoficial.

AssigneAssine.

Senão Se não quando, morre-lhe o padrinho ao Gouvea GouvêaGouveia, e, noe em testamento deixou ao afilhado treztrês contos de reisréis. Qualquer acharia nisso um beneficiobenefício, Gouvea GouvêaGouveia achou dous: o legado e a occasiãoocasião de travar relações com o paepai de Flora. Corria/eu\Correu a pedir-lhe que acceitasseaceitasse a procuração de legatariolegatário, ajustando logo os honorarioshonorários e as custas despezas.despesas. Com pouco, foi procural-oprocurá-lo a á casa, e para que o advogado désse a noticia désse a notíciadesse a notícia do constituinte áà familiafamília, usava empregou muitos ditos subtissutis e graciosos,

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contou anecdotasanedotas do padrinho, expozexpôs conceitos philosophicosfilosóficos e um programmaprograma de marido. Descreveu tambemtambém a situação administrativa, a promoção iminente imminente eminente, os louvores recebidos, as commissõescomissões e gratificações, tudo o que distinguiao que o distinguia de outros companheiros. De resto, ninguemninguém na SecretariaRepartição lhe queria mal. AquellesAqueles mesmos que se creram prejudicados em alguma occasião, acabavamprejudicados, acabavam confessando que era justa a preferenciapreferência dada ao Gouvea GouvêaGouveia. Não seria tudo exacto; elleexato; ele o cria assim, ao menos, e, se ne não cria tudo, nadanão desmentiu Floranada. Perdeu tempo e trabalho. Flora não soube da conversação.

Nem soube da conversação, nem

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deu agora pelo vulto, como lá disse. TambemTambém disse que a noite era escura. AccrescentoAcrescento que começou a pingar fino e a ventar fresco. Gouvea GouvêaGouveia trazia guarda-chuva e ia a abril-oabri-lo, mas recuou. O que se passou na alma delledele foi uma luta igual egual áà dos dous textos da carta. O officialoficial queria abrigar-se da chuva, o amanuense queria apanhal-aapanhá-la, isto é, o poeta renascia contra as intemperiesintempéries, sem medo ao mal, nem á morte, prestes a morrer por sua dama, como nos tempos cal da cavallariacavalaria. O g/G\uarda-chuvaGuarda-chuva era ridiculoridículo; poupar-se áà constipação desmentia a adoração. Tal foi a luta e o desfecho; venceu o poeta,amanuense, emquantoenquanto

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a chuva ia pingava/ndo\pingando mais grosso, e outra gente passava abrigada e depressa. Flora entrou e fechou a janella.janela. O amanuense esperou ainda algum tempo, até que o officialoficial abriu o guarda-chuva e can foi para casafez como os outros. Em casa achou a divina triste consolação da mãe.

 
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CapituloCapítulo CII XCVI

Retraid/m\entoRetraimento.

AquellaAquela noite acabou sem incidente. Elles OsOs gemeosgêmeos vieram viéram, ellaFlora não appareceuapareceu, e no dia seguinte duas cartinhas mandav perguntavam a D. ClaudiaDona Cláudia como passárapassara a filha. A mãe respondeu que bem. Nem por isso Flora os recebeu com a alegria do costume. Tinha alguma cousa que a fazia fala falar pouco. Pediram-lhe musicamúsica, tocou; foi bom porquebom, porque era um meio de se metter comsigometer consigo. Não respondeu aos apertos de mão, como elleseles supunham que fazia

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até ha pouco. Assim foi essa noite, assim foram fôram as outras. Ora um, ora outro chegava primeiro, imaginando que a presença do rival é que tolhia a moça; mas a precedenciaprecedência não valia nada.

 
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CapituloCapítulo CIII XCVII

Um ChristoCristo particular.

Tudo isso lhe custava tanto, que ellaela acabou pedindo ao seu ChristoCristo um logarlugar de governador para o paepai, — ou qualquer commissãocomissão fórafora daqui. Christo Jesu-ChristoJesus-Cristo não distribuedistribui os governos deste mundo. O povo é que os entrega a quem merece, por meio de cedulascédulas fechadas, mettidasmetidas dentro de uma urna de madeira, contadas, abertas, lidas, sommadassomadas e publicadas.multiplicadas. A commissãocomissão podia vir, ; a eisso sim; a questão era saber se Christo Jesu-ChristoJesus-Cristo

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acudirá a todos os que lhe pedem a mesma cousa. Os commissarioscommissários seriam infinitamente mais que as commissões commissõescomissões. Esta objecção foi logo expellidaexpelida do espiritoespírito de Flora, porque ellaela pedia ao seu ChristoCristo, um de marfim velho, deix legadodeixa da avó, um ChristoCristo que nunca lhe negou nada, e a quem as outras pessoas não vinham importunar com supplicassúplicas. A propriaprópria mãe tinha o seu particular, confidente de ambições, consolo de desenganos; não recorria ao da filha. Tal era a fé ingenuaingênua daquella nossa moça devota.da moça.

Certamente, já lhe havia pedido que a livrasse daquelladaquela complicação de sentimentos, que não acabavam

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de ceder um ao outro, daquelladaquela hesitação para cançativacansativa, daquelledaquele empuxar para ambos os lados. Não foi ou ouvida. A causa seria talvez por não haver dado ao pedido a fórmaforma clara que aqui lhe ponho, com escandaloescândalo do leitor. EffectivamenteEfetivamente, não era facilfácil pedir assim por palavras seguidas, faladas ou só pensadas; Flora não formulou a supplicasúplica. PozPôs os olhos na imagem e esqueceu-se de si, para que a imagem lêsselesse dentro delladela o seu desejo. Era demais; requerer o fa favor do ceucéu e obrigal-oobrigá-lo a adivinhar o que era... Assim cuidou Flora, e resolveu emendar a mão. Não chegou lá; não ousou dizer a Jesus o

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que não dizia a si mesma. Pensava nos dous, sem confessar a nehu nenhum. Sentia a contradicçãocontradição, sem ousar encaral-aencará-la por muito tempo.

 
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CapituloCapítulo CIV XCVIIIVXCVIII

O medicomédico AyresAyres.Aires.

Um dia pareceu áà mãe que a filha andava nervosa. Interrogou-a disfarçadamente, sem e apenas descobriu que Flora padecia de vertigens e esquecimentos. Foi justamente um dia em que AyresAires appareceuapareceu de visita, com red/c\adosrecados de Natividade. A mãe falou-lhe primeiro e confiou-lhe os seus sustos. Pediu-lhe que a interrogasse tambemtambém. AyresAires fez de medicomédico, e, quando a moça appareceuapareceu, e a mãe

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os deixou na sala, cuidou de a interrogar cautelosamente.

Vão propósito proposito, porque ellaela mesma iniciou a conversação, queixando-se de dor dôr de cabeça. AyresAires po observou qu que dôrdor de cabeça era molestiamoléstia de moça bonita./,\ Confessou que e, tendo confessadoe, tendo confessado que este dito era uma banalidbanal, descudbriu-lhedescobriu-lhe o motivo. Não queria perder a occasiãoocasião de lhe dizer o que toda a gente sabia e dizia, não só aqui comoaqui, como em PetropolisPetrópolis...

PorquePor que não vaevai a PetropolisPetrópolis? concluiu.

— Espero fazer outra viagem mais longa, muito longa...

— Para o outro mundo, aposto?

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— Acertou.

Ja tem bilhete de passagem?

— Comprarei no dia do embarque.

— Talvez não ache. Ha grande concurrenciaconcorrência para aquellasaquelas paragens; melhor é comprar antes, e, se quer, eu me encarrego disso; comprarei outro para mim, e iremos juntos. A travessia, quando não ha conhecidos, deve ser fastidiosa; ásàs vezes, os propriospróprios conhecidos aborrecidos abo aborrecem, como succedesucede neste mundo. As saudades da vida é que devem ser agradaveissão agradaveis. Asão agradáveis. A gente de bordo é vulgar, mas o commandantecomandante é pessoa de espiritoimpõe confiança. Não abre a boca bôca, dá as suas ordens por gestos, e não consta que haja naufragado.

sem n úmero

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— O senhor está caçoando commigocomigo; eu creio até que estou com febre.

— Deit/x\e v— Deixe ver.

Flora estendeu-lhe o pulso; elleele, com ar profundo:

— Está; febre de quarenta e sete gráos a gráos, agraus, a mão está ardendo, mas isto mesmo prova que não é nada, porque a aquellasaquelas viagens fazem-se com as mãos frias. Hade Ha deHá de ser constipação, fale a sua mãe.

— Mamãe não cura.

Pode Póde curar, ha remedioshá remédios caseiros; em todo caso, peça-lhe, e ellaela pode póde mandar chamar um medicomédico.

MedicoMédico tizanastisanas, e eu não gosto gósto de tizanastisanas.

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— Nem eu, mas tolero-as. PorquePor que não experimenta a homopathia homoeopathiahomeopatia, que n não tem gostosab, nenhum, como a allopathia?como a alopatia?

— Qual é queé a que lhe parece melhor?

—Não sei.— A melhor? Só Deus é grande.

Flora sorriu, de um sorriso pallidopálido, e o conselheiro percebeu alguma algo que não era tristeza de passagem ou de criança creança. Novamente lhe falou de PetropolisPetrópolis, mas não insistiu. PetropolisPetrópolis era a aggravaçãoagravação do momento actualatual.

PetropolisPetrópolis tem o mal das chuvas, continuou. Eu, se fosse a senhora, saía desta casa e desta rua; aqui ha febres; várua; vá para um lo outro bairro, casa amiga, com sua mãe ou sem ellaela...

— Para onde? perguntou Flora anciosaansiosa.

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E ficou a olhar, esperando. Não tinha casa amiga, ou não se lembrava, e queria que elleele mesmo escolhesse alguma, onde quer que fosse, e quanto mais longe, melhor. Foi o que elleele leu nos olhos parados. É ler muito, mas os bons diplomatas guardam o talento de ouvirsaber tudo o que lhes diz um rosto calado, e até o contrariocontrário. Ayres fôraAires fora diplomata excellenteexcelente, apezarapesar da aventura de Caracas, se não é que essa mesma lhe aguçou a vocação de descobrir e encu encubrir.encobrir. Toda a diplomacia está nestes dous verbos parentes.

 
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CapituloCapítulo XCVIII XCIX

A titulotítulo de ares novosnovos.

— Vou arranjar-lhe uma casa boa, disse elleele, áà despedida.

Desde que estava em PetropolisPetrópolis, AyresAires não ia jantar a AndarahyAndaraí, aocom a irmã, — ás irmã, ásirmã, às quintas-feiras, segundo ajustáraajustara e consta do cap. XXXII. Agora foi lá, e cinco dias depois Flora mudava-setransferia-se para a casa delladela, a titulotítulo de ares novos. D.Dona Rita não consentiu que D. ClaudiaDona Cláudia lhe levasse a filha, ellaela mesma a foi buscar a S.São Clemente, e AyresAires acompanhou as tres treztrês.

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A mocidade de Flora na casa de D.Dona Rita foi como uma florrosa nascida ao pé de paredão velho. O paredão remoçou. A simples flor flôr, ainda que pallidapálida, alegrou o barro gretado e as pedras despidas. D. Clara D. RitaDona Rita vivia encantada; Flora pagava o agazalhoagasalho da dona da casa , com tanta ingenuidade e graça, que esta acabou por lhe dizer que a roubaria áà mãe e ao paepai, e foi ainda occasiãoocasião de riso para as duas.

«Você me deu um lindo presente com esta moça, escrevia D.Dona Rita ao irmão; foi uma alma nova, e veiuveio em boa occasiãoocasião, porque a minha anda já caduca. É muito

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docilzinha, conversa, toca e desenha que faz gosto; temgosto, tem aqui tirado riscos de variasvárias cousas, e eu saio com ellaela para lhe mostrar vistas apreciaveisapreciáveis. ÁsÀs vezes, apresenta uma cara triste, olha vagamente, e suspira; mas eu pergunto-lhe se são saudades de S.São Clemente, ellaela sorri e faz um gesto de indefferença indifferença.indiferença. Não lhe falo dos nervos, para não a affligirafligir, mas creio que vaevai melhor...»

Flora tambemtambém escreveu ao as conselheiro AyresAires, e as duas cartas chegaram áà mesma hora a PetropolisPetrópolis. A de Flora era um agradecimento grande e cordial, mal entremeado de alguma palavra menos alsaudosa; confirmava assim

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a carta da outra, posto não a houvesse lido. AyresAires comparou-as, lendo duas vezes a da moça para ver se ellaela escondia mais do que transparecia do papel. Em summasuma, confiava no remedioremédio.

— Não os vendo, esquece-os, pensou elleele; e se na visinhançavizinhança houver alguemalguém que pense em gostar delladela, é possivelpossível que acabe casando.

Respondeu a ambas, na mesma noite, dizendo-lhesdizendo-lhes que que na segunda quinta feirana quinta-feira iria jantaralmoçar com ellaselas. A D. ClaudiaDona Cláudia escreveu mandando-lhe a carta da irmã, e foi passar a noite em casa de Natividade, a quem deu a ler as cinco cartas. Natividade approvouaprovou tudo

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tudo. Notava só que os filhos não lhe escreviam, e deviam estar desesperados.

— A Santa Casa cura, e a BibliothecaBiblioteca Nacional tambemtambém, retorquiu AyresAires.

Na segunda feira quinta feiraNa quinta feira, AyresAires cumpriu a desceu e foi almoçar a Andarahy. AchoAndarahyAndarahyAndaraí. Achou-as como as tinha lido nas cartas. Interrogou-as separadamente para ouvir por boca bôca as confissões do papel; eram as m mesmas. D.Dona Rita parecia ainda mais encantadas/a\encantada. Talvez a causa recente fosse a confidenciaconfidência que fez à á a moça, na vesperavéspera. Como falassem de cabelloscabelos, D.Dona Rita referiu o que t tambemtambém consta do cap. XXXII, isto é, que

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cortáracortara os seus para os mettermeter no caixão do marido, quando o levaram a enterrar. Eram entao pretos Como o marido gostava delles, ella não quiz que cá ficassem todos. Era Os que cá ficaram (eram então pretos) cresceram outra vez com a mesma côr primitiva; depois começaram a embranquecer... Floraenterrar. Flora não a deixou acabar; pegou-lhe das mãos e apertou-as muito.

— Nenhuma outra viuvaviúva faria isto, disse ellaela.

Aqui foi D.Dona Rita que lhe pegou nas mãos, pô-las pôl-as sobre os seus hombrosombros, e concluiu o gesto por um abraço. Todas as pessoas louvaram-lhe

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a abnegação do actoato; esta era a primeira que a achou unicaúnica. E dahidaí outro abraço longo, mais longo...

 
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CapituloCapítulo XV CVII XCIX C

Pasta de desenhosDuas cabeças.

Tão longo foi o abraço que tomou o resto ao capitulocapítulo. Este começa sem elleele nem outro. O mesmo aperto de mão de AyresAires e Flora, se foi mais demorado, acabou cedo demorado, tambem acaboudemorado, também acabou. O jantar comeualmoço fez gastar algum tempo mais que de costume, porque AyresAires, tinha o encanto feitiço da conversação e, pela sua parte, não se fartava alemalém de conversação/dor\conversador emerito, não se fartavaemérito, não se fartava de ouvir as duas, principalmente a moça. Achava-lhe um toque de languidez, abatimento ou cousa próxima, que não encontro no meu cousa proximo,

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que talvez não mereça tal nome, mas não encontro outro no meu cousa proxima, que não encontro no meu vocabulariovocabulário.

Flora mostrou-lhe os dezenhosdesenhos que fizera, paysa paisagens, figuras, um pedaço da estrada da Tijuca, um chafariz antigo, um Principio de casaPrincípio de casa. Era uma dessas casas, que alguemalguém começou muitos annosanos antes, e ninguém e que ninguem e ninguem acabou, ficando só duas ou tres treztrês paredes, uma ruinaruína sem historiahistória. Havia ainda outros desenhos, uma revoada de passarospássaros, um vaso áà janella.janela. AyresAires ia vendo,folheando, cheio de curiosidade e pacienciapaciência; a intenção da obra suppriasupria a perfeição, e a fidelidade devia ser completa.aproximada. approximada.aproximada. EmfimEnfim, a moça atou os

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cordões áà pasta. AyresAires, parecendo-lhe que ficáraficara um desenho ultimoúltimo e escondido, pediu que lh’olho mostrasse.

— É um esboço, não vale a pena.

— Tudo vale a pena; quero acompanhar as tentativas da artista; deixe ver.

— Não vale a pena...

AyresAires insistiu; ellaela não podepôde recusar mais tempo, abriu a pasta, e tirou um pedaço de papel grosso comem que estavam dezenhadasdesenhadas duas cabeças iguaes juntas e iguaes eguaesiguais. , Pedro e Paulo Não teriam a perfeição desejada pela autora; por ellaela; não obstante, dispensavam os nomes. AyresAires considerou a obra, durante alguns minutos, e duas ou tres treztrês vezes levantou os olhos para a autora. Flora

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ja os esperava, interrogativa; queria ouvir o louvor ou a criticacrítica, mas não † ouvid/u\ouviu nada. Ayres AyrcsAires acabou de observar as duas cabeças, e pousou o desenho entre os papeispapéis.

— Não lhe dizia que era um esboç esboço? perguntou Flora, a ver se lhe arrancava uma palavra.

Mas o ex-ministro preferiu não dizer nada. Em vez de achar quasiquási extinctaextinta a influenciainfluência dos gemeosgêmeos, vinha dar com ellaela tão viva ainda viva, feita consolalaçãoconsolação da ausenciaausência, tão viva que bastava a memoriamemória, sem presença dos modelos. As duas cabeças estavam ligadas porpor um vinculovínculo Escondido, de mysterio serenas Flora vendo que não alcançava uma palavra como deviam ser escondido. Flora, vendo continuar o silencioescondido. Flora, vendo continuar o silêncio de

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de AyresAires, comprehendeucompreendeu acaso uma parte do que lhe passava no espiritoespírito. Elle Com um gesto promptopronto, pegou do desenho e deu-lh’odeu-lho. Não lhe disse nada, menos ainda escreveu qu qualq qualquer palavra. Qualquer que fosse, seria indiscreta. De restoDe mais, era o unicoúnico desenho a que ellaela não pôs pôz assignaturaassinatura. Deu-lh’oDeu-lho como se fôrase fora um penhor de rompimento definitivo. com aarrependimento. Em seguida, atou novamente as fitas da pasta, emquantoenquanto Ayres,Aires parecen mostrando que a entendera, rasgou/ava\rasgava calado o dezenhodesenho e metteu/ia\mettiametia os pedaços no bolçobolso. A moFlora ficou por um instante parada, boca entre-aberta, e as e séria; mas bôca entre-aberta, masboca entreaberta, mas logo lhe apertou a mão, agradecida. Não pôde

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evitar que lhe caissemcaíssem duas pequeninas lagrimaslágrimas, — como outras tantas fitas que lhe atavam para sempre a pasta do passado.

A imagem não é bellboa,,boa, nem verdadeira; foi a que acudiu ao velho diploconselheiro, andando, ao voltar de AndarahyAndaraí. Chegou a escrevel-aescrevê-la no Memorial, depois riscou-a, e escreveu uma reflexão menos definitiva: «Talvez seja uma lagrimalágrima para cada gemeogêmeo

Pode Póde acabar com o tempo, pensou elleele indo para a barca de PetropolisPetrópolis. Não importa; é um caso embrulhado.

 
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CapituloCapítulo CVIIICII

Já não falavam de FloraO caso embrulhado.

TambemTambém os gemeosgêmeos achavam o caso embrulhado. Quando iam a S.São Clemente, tinham noticiasnotícias da moça, sem que lhes dessem déssem certeza do regresso. O tempo andava; não tardaria que consultassem a sorte, como dous antigos.

A rigor, não podiam contarnão contavam as semanas de interrupção, uma vez que a escolha se não dava, e elleseles podiam trazer da consulta o contrariocontrário da inclinação definitiva da moça. Reflexão

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justa, posto que interessada. Cada um dellesdeles não queria mais que prolongar baa batalhaa batalha, esperando vencel-avencê-la. Entretanto, não confiavam um do outro este pensamento gemeogêmeo, como elleseles. Ja não falavam de Flora. Ambos Ambos se iam sentindo exclusivos, a affeiçãoafeição tinha agora o seu pa pudor ; ae necessidade de calar. Já não falavam de Flora.

Nem só de Flora. Crescendo a opposiçãooposição, cr recorriam ao silenciosilêncio. Evitavam-se; se podiam, não comiam juntos; se comiam juntos, diziam falavamdiziam pouco ou nada. ÁsÀs vezes falavam para tirar aos criados qualquer suspeita, mas não advertiam que falavam mal e forçadamente, e que os criados iam comentar commentar as palavras e a expressão dellasdellesdeles na copa. A satisfação com que estes communicavamcomunicavam os seus achados e conclusões eraé das poucas

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que adoçam o serviço domesticodoméstico, geralmente rude. Não chegavam, porém, ao ponto de concluir tudo o que os ia tornando cada vez mais avessos, a pontinhaponta ponto de odioódio que crescia com a ausenciaausência da mãe. Era mais que Flora, como sabeis; eram as propriaspróprias pessoas inconciliaveisinconciliáveis. Um dia houve na copa e na cozinha grande novidade. Pedro, a pretexto de sentir mais calor que Paulo, mudou de quarto e foi dormir mal em outr outro quarto nãooutro não menos quente que o primeiro.

 
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CapituloCapítulo CIX CIIVCII

Uma só alcova Visão pede meia sombra.

Entretanto, a bellabela Floramoça não os tirava da mesma alcova sua, por mais que buscassebuscasse deveras devéras fugir-lhes. A memoriamemória os trazia pelo/a\pela brmão, elleseles entravam, e ficavam-se. Iam depois d embora, ou de si mesmos, ou empurrados por ellaela. Quando tornavam eratornavam, era de sorpresasurpresa. Um dia, Flora aproveitou a presença para fazer um desenho igual egual ao que dera ao conselheiro, e mais perfeito agora, muito mais acabado.

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Tambem cançavaTambém cansava. Então saía do quarto e ia para o piano. EllesEles iam com ellaela, sentavam-se aos lados ou ficam/vam\ficavam defronte, em pé, e ouviam com attençãoatenção religreligiosa, ora um nocturnonoturno, ora uma tarantellatarantela. Flora tocava ao sabor de ambos, sem alias escodeliberação;mas os dedos é que obedeciam á mecanicaà mecânica da alma. Para os não ver, inclinava a cabeça sobre o teclado; mas o campo da visão os guardava, se não era a respiração que se fazia sentir defronte ou dos lados. Tal era a subtilezasutileza dos seus sentidos.

Se ella descia ao jardim, succedia muita vezfechava o piano e descia ao jardim, succediasucedia muita vez que os ia achar alliali, passeando, e a comprimentavamcumprimentavam com tão boa sombra quesombra,

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que ellaela esquecia por instantes a impacienciaimpaciência. Depois, sem que os mandasse, elles iam embora. Nos primeiros tempos, Flora tinha medo que elles a houvessem abandonado de todo, e chamava-os logo dentro de si. Ambos tornavam logo, tão doceisdóceis, que ellaela acabou de se convencer que nem elles †id sentiam desprezo que a fuga não era fuga, nem elleseles sentiam desprezo, e não os evocou mais nessesmais. No jardim era mais rapidorápido o desapparecimentodesaparecimento, talvez pela extrema claridade do logarlugar. Visão pede meia sombra.

 
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CapituloCapítulo CXI CIV CIII

Um candidato O quartoO quarto.  

Sei, sei, tres treztrês vezes sei que ha muitas visões dessas nas paginaspáginas que lá ficam. Ullysses UlyssesUlisses confessa a AlcinoosAlcínoos que lhe é odiosoenfadonho contar as mesmas cousas. TambemTambém a mim. Sou, porém, obrigado a ellaselas, porque sem ellaselas a nossa Flora seria menos Flora, seria outra pessoa que não não conheci. Conheci esta, com as suas obcessõesobsessões ou como quer que lhes chames.

Nem por isso, nem ainda porque houvesse colhido algum abatimento e

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nervos, deixava Flora de enfeitar muito, de se fazer mais bella,linda, e ter mais de um namorado á incognitoincógnito, que morria sussuspirava por ellaela. Não faltava quem a admirrasseadmirasse de perto,passagem, e fosse vel-avê-la, quando menos, no banco verde, áà porta do jardim, ao pé da irmã de AyresAires. Pode Póde ser que ella conhecesse algum, Gouvea GouvêaGouveia, por exemplo; ; em verdade, era como se os não visse.

Um dellesdeles valia mais que todos pela carruagem, — tirada por uma bellabela parelha de cavalloscavalos, — capitalista do bairro. A casta destecasa dellecasa dele era um palacete, os moveismóveis feitos na Europa, estyloestilo imperioimpério, apparelhosaparelhos de Sèvres e de prata, tapetes de SmyrnaEsmirna, e uma vasta camaracâmara com dous leitos, um de

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solteiro, outro de casados. Este O segundo esperava a esposa.

— A esposa hade ha dehá de ser esta, pensou elleele um dia em que a viu, ao ver Flora. de passagem

Tinh Era maduro; tinhatrazia o rosto batido dos ventos da vida, a despeito das muitas aguaságuas de toucador; ao corpo na faltava a-prumoaprumo, e as maneiras não tinham graça nem naturalidade. Era o NobregaNóbrega, aquelleaquele da nota dos/e\de dous mil reisréis, que nota fecunda, que concebeu cercadeitou de si muitas outras, até cerca paga mais de dous mil contos de reis.de réis. sem opa nem sapatos rotos. Para as notas recentes, aPara as notas recentes, a avó perdia-se na noite dos tempos. Agora os tempos eram claros, pura e d e doce manhã. Nobrega fez-se entrado em casa de D. Rita, em desgosto dos seus hospedes,a manhã doce e pura.

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Quando viu a moça, e fez a reflexão que lá fica, extranhou-seestranhou-se a si propriopróprio. Vira outras damas, e mais de uma com escriptosescritos nos olhos, dizendo-lhedizendo-lhe o vazio vasio do coração. Esta era a primeira que veramente lhe prendeu a vontade e lhe deteve o pensamento. Tornou q a vel-a vêl-avê-la; a gente visinhavizinha notou porventura a frequenciafrequência recente do capitalista. EmfimEnfim, NobregaNóbrega acabou por se fazer entrado na casa de D.Dona Rita, com desgosto dos seus habituados, que assim se viramviam esquecidos do amphytrião. Nobregaanfitrião. Nóbrega, entretanto, dera ordens para quebastantes para que fossem todos servidos e agazalhadosagasalhados, como se elleele estivesse presente.

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A ausenciaausência não lhe faria perder as loas dos amigos. Ao co†contrario,contrário os os servos podiam dar testemunho do que todos elleseles pensavam do «grande homem.» Tal era o nome que lhe applicaraaplicara o secretariosecretário particular, e pegou. Sabia p NobregaNóbrega sabia pouca orthographiaortografia, nenhuma syntaxesintaxe, licções uteislições úteis, de certodecerto, mas que não valiam a moral, e a moral, diziam todos, acompanhando o secretariosecretário, era o seu principal e maior meritomérito. O fiel escriptescriba accrescentavaacrescentava que, se fossesendo preciso despir a camisa parae dal-ae dá-la a um pobremendigo, NobregaNóbrega o faria, ainda que a camisa fosse de cambraia bordada. Contavam-se delle actos de

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Agora mesmo, este act sentimento ou amor era, ao cabo, uma/m\um gesto demovimentomovimento de caridade. Em pouco tempotempo, aquelleaquele gosto de relance passou a grande paixão, tão grande que elleele não a pôde conter, e resolveu confessal-aconfessá-la. Hesitou se o faria áà propriaprópria moça ou áà dona da casa. Não tinha animoânimo para uma ounem outra. Uma carta suppriasupria tudo, mas a carta pedia lingualíngua, calor e respeito. Se, ao menos, o gesto de Flora lhe dissesse alguma cousa, ainda que pouca, vá; a carta seria então uma resposta. ás Mas não lhe dizia a mnada o gesto da moça. Era só cortezcortês e gracioso; não ia alemalém dessas duas expressões.

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D.Dona Rita , sim, percebeu a inclinação de de NobregaNóbrega e achou que era a melhor solução da vida para a hospedehóspede. Todas as incertezas, angustiasangústias e melancolias vinham acabar nos braços de um ricassoricaço, estimado, respeitado, dentro de um palacete, com palacete com uma carruagens/m\carruagem ásàs ordens... EllaEla mesma punha em relevo este premioprêmio grande da loteria de HespanhaEspanha.

EmfimEnfim, o secretariosecretário de NobregaNóbrega redigiu com a melhor linguagem que possuiapossuía uma carta em que o capitalista pedia a D.Dona Rita o favor de consultar a moça amada.

— Não escreva palavrinhas doces, recomendou recommendou elleele ao secretariosecretário. GóstoGosto dessa

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moça com um sentimento de protecçãoproteção, antes que outra cousa. Não é carta de namorado. EstyloEstilo grave...

— Uma carta seccaseca, concluiu o secretário secretario.

— Totalmente

— Totalmente seccaseca, não, emendou M NobregaNóbrega, uma carta lisonjeira lisongeira, sem esquecer que não sou criança creança.

Assim se cumpriu. A carta foiTalvez se cumpriu demais.Ia a cumprir-se demais; NobregaNóbrega achou que o estyloestilo podia ser mais amenoum tanto ameno; não fazia mal em pôrmal pôr duas ou tres treztrês palavras apropriadas ao acto,objecto; objecto,objeto, bellezabeleza, q coração, sentimento... Assim se cumpriu finalmente, e a carta partiufoi levada ao seu destino. D.Dona Rita ficou alegrecontentissimacontentissimacontentíssima. Justamente o que ellaela queria. Tinha o plano feito de concluir, por actoato

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seu, uma a uma historia melancolicahistória melancólica, a que daria, uma uma pagina última e despor derradeira pagina, conclusão deslumbrantepor derradeira pagina, conclusão deslumbrantepor derradeira página, conclusão deslumbrante. Não pensou em dizel-odizê-lo primeiro ao irmão, pela razão de querer que elleele recebesse a noticianotícia completa, tudo feito e acabado. Releu a carta; dispoz-sedispôs-se a ir logo, logoir logo, mas ha pessoas para quem o adagioadágio que diz que «o melhor da festa é esperar por ellaela», resume todo o prazer da vida. D.Dona Rita tinha essa opinião, se boa seou má, não sei, nem me canço em buscal-o. Ent Todaviaopinião. Todavia, entendeu que taestais cartas não são das que se guardam largo tempo, nem aliás das que se precitam co attenção.communicam sem cautella.comunicam sem cautela. Esperou um dia.vinte e quatro horas. Na manhã seguinte, depois de almoçadas, leu a

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carta áà moça. O natural é que Flora ficasse espantada. Ficou, mas não tardou que risse, de um riso franco e sonoro, como ainda não rira em AndarahyAndaraí. D.Dona Rita ficou espantadissimaespantadíssima. Suppo/u\nhaSuppunhaSupunha que, não a pessoa, mas as vantagens e circumstanciascircunstâncias , pleiteassem a favor do candidato. Esquecia os seus cabelloscabelos entregues áà sepultura do marido. Deu conselhos áà moça, pôz pozpôs em relevo a si/po\siçãoposição do pretendente, o presente e o futuro, a situação esplendidaesplêndida que lhe dava este casamento, e por fim as qualidades moraesmorais de NobregaNóbrega. A moça escutou calada, e acabou rindo outravezoutra vez.

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— A senhora sabe se serei feliz? perguntou.

— Creio que sim; agora, o futuro é que confirmará ou não.

— Esperemos que o futuro chegue, com quantoconquanto me pareça muito de demorado. Não nego as qualidades daquelledaquele homem, parece bom, e trata-me bem, mas eu não quero casar, D.Dona Rita.

— Realmente, a idade edade... Mas nem, ao menos, quer esperarpensar alguns dias?

— Está pensado.

D.Dona Rita ainda esperou um dia. A resposta negativa, dado que Flora viesse a mudar de opinião,,ou de sen podia ser uma desgraça para esta. Uso os propriospróprios termos delladela, comsigoconsigo, grande desgraça, posição esplendidaesplêndida, sentimento

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profundo, D.Dona Rita ia aos extremos, deantediante daquelledaquele rico-homem dos ultimosúltimos diasannosanos do seculoséculo.

folha não numerada

ULTIMO

por

Machado de Assis

(da Academia Brasileira )

 
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CapituloCapítulo CXIII CV CIII CIV

A respostaresposta.

Não querendo dar a resposta nua e crua, D.Dona Rita consultou a moça, que lhe respondeu simplesmente:

— Diga que não pretendo casar.

Quando NobregaNóbrega recebeu as poucas linhas que D.Dona Rita lhe mandou, ficou assombrado. e abatido. Não contava com recusa. Ao contrariocontrário, era tão certa a aceitação acceitação que elleele tinha ja um programmaprograma do noivado. Imaginava a moça, os olhos timidostímidos, a boca bôca cerrada,

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o veuvéu que lhe cobriria a linda carinha, a delicadeza delledele, as palavras que lhe diria entrada/ndo\entrando em casa. Tinha já composto uma invocação áà Mãe Santissima para Santissima, paraSantíssima, para que os fizesse felize felizes. «Dou-lhe carro, dizia comsigoconsigo, joias, muitas joias, as melhores joias do mundo...» NobregaNóbrega não fazia ideia cer exactaexata do mundo; era uma expressão. « Heide-lhe darHei de dar-lhe tudo, sapatinhos de seda, meias de seda, que eu mesmo lhe calçarei...» Estremecia de córcor, ao calçar-lhe as meias. Beijava-lhe os pés e os joelhos. E Tinha imaginado e

Tinha imaginado que ellaela, ao ler a carta, devia ficar tão pasmada e agradecida, que nos primeiros diasinstantes

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não po/u\derapudera responder a D.Dona Rita; mas logo depois as palavras sairiam do coração ásàs golfadas. «Que sim. Que QueSim, senhora, se que queria, aceitava acceitava; não pensárapensara em outra cousa.» Escreveria logo ao paepai e áà mãe para lhes pedir licença; elleseles viriam correndo, incredulosincrédulos, mas, vendo a carta, ouvindo a filha e D.Dona Rita, não duvidariam da verdade, e dariam o consentimento. Talvez o pae lh’opai lho fosse d em pessoa dar a elle em pessoadar em pessoa. E E nada, nada, nada, absolutamente nnada, uma simples recusa, uma recusa atrevida, porque emfimenfim quem era ellaela, apezarapesar da belezabeleza? uma creaturacriatura sem vintemvintém, modestamente vestida, sem brincos, nunca lhe vira brincos ásàs orelhas, duas perola

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perolazinhas perolasinhas que fossem. E porquepor que é que lhe furaram as olhorelhas, se não tinham brincos que lhe dar? Considerou , porém,que ásàs mais pobres meninas do mundo furam as orelhas para os brincos que lhes possam cair do est ceucéu. E vem esta, e recusa os mais ricos brincos que ceuque o céu ia chover sobre ellaela...

Ao jantar, os amigos da casa notaram que elleele estava preoccupadopreocupado. De noite, elleele e o secretario sairamsecretário saíram a pé. NobregaNóbrega buscou em si o gesto mais frio e desenganadoindifferenteindiferente que pôde, quasiquási alegre, e d annunciouanunciou ao secretariosecretário que Flora não queria casar. Não se descreve a consternaçãoadmiração do secretariosecretário, em seguida a indignaçãoconsternação, finalmente a

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— Não foi por mal, disseindignação. Nobrega respondia magnanimoindignação. Nobrega respondia magnanimoindignação. Nóbrega respondia magnânimo:

— Não foi por mal; foi talvez por se julgar abaixo, muito abaixo da fortuna. Creia que é boa moça. Pode Póde ser tambemtambém, quem sabe? por ter sido um máumau conselho do coração. AquellaAquela moça é doente.

— Doente?

— Não affirmoafirmo; digo que pode póde ser.

O secretariosecretário affirmouafirmou.

— Só a doença, disse elleele, explicará a ingratidão, por queporque o actoato deé de pura ingratidão.

Aqui tornou a nota da indignação, nota sincera, como as outras. NobregaNóbrega gostou de ouvil-aouvi-la; era um compadeci

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compadecimento. No fim, cumpriu a ideia que trazia ao sair de casa; augmentou-lheaumentou-lhe o ordenado. Podia ser a paga da sympasimpathia sympathiasimpatia; o beneficiado foi mais longe, achou que era o preço do silenciosilêncio, e ninguemninguém soube de nada.

 
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CapituloCapítulo CVI

A realidade.

A molestiamoléstia, dada por explicação áà recusa do casamento, passou a á realidade dahidaí a dias. Não ouso dizer que houve influencia da palavra d de Nobrega na enfermidade da moça; tambem não digo o contrario. Os su supersticiosos são muita vez os os sapientes. Por outro lado, é certo que «praga de urubu não mata cavallo», como diz o rifão, nem o ex-andador cuidava de em fartar-se nos nobres restos

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daquella moça. Quanto á comparação que dahi resulta entre Flora e o cavallo, não é cousa que h humilhe n a ninguem. A poesia canonisou este animal. Tivesse eu tempo e faria uma anthologia , delle em comda fina flor que dos poetas deste mundo, até Garrett, por exemplo, que comparou ao cavallo não menos que um duque: Como o velho corsel que envelheceu... Muitas das minhas patricias, — as do meu tempo, — comparavam-se alegremente a elle, repetindo o rifão ás amigas que lhe desejavam mal por troça... Tempo de riso e de leveza d’alma!!

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Capitulo CVII

A realidade O mal

Venhamos á nossa moça deste tempo, que adoeceu alguns dias depois da recusa; mas não quero lagrimas. Ja la disse atraz que um dos meus propositos neste livro é não lhe pôr lagrimas. Consinto algumas, escassas, um exu+2 enxugar os de olhos apenas, á ponta do lenço. ¶ Floradias. Flora adoeceu levemente li levemente, tanto que D. Rita levemente; D. Ritalevemente; Dona Rita, não queropara não alarmar os paespais, cuidou de a tratar com remediosremédios

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caseiros;; Quando So dous dias ddepois, fez mandou chamar um pedi medicomédico, o seu medicomédico, e a cara que este fez não foi boa, antes má. D.Dona Rita, que costumava ler a gravidade das suas molestiasmoléstias no rosto delledele, e sempre as achava gravissimasgravíssimas, mucuidou de avisar os paespais da moça. Os paespais vieram viéram log logo. Natividade tambemtambém desceu de PetropolisPetrópolis, não de vez; em cima, tinham medo de algum movimento cá embaixo. VeiuVeio a visitar a moça, e, a pedido desta, ficou alguns diasdias.

— Só a senhora me pode póde curar, disse Flora; não creio nos remediosremédios que me dão. As suas palavras é que são boas, e os seus carinhos... Mamãe tambemtambém, e a

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e D.Dona Rita, mas não sei, ha uma differençadiferença, uma cousa... Veja;Veja: creparece-me que até ja rio.

— Já, ja; ria mais.

Flora sorriosorriu, ainda d/q\ueque de m daquelledaquele sorriso descorado que appareceaparece na boca bôca do enfermo, quando a molestiamoléstia consente, ou se elleele força fórça a seriedade propriaprópria da dor dôr. Natividade respondizia-lhe palavras de animação; fel-a prometterfê-la prometer que iria convalecerconvalescer em PetropolisPetrópolis. A enfermidade começou a ceder. D. ClaudiaDona Cláudia aceitou acceitou a offertaoferta de D.Dona Rita, e lá ficou aposentada. Natividade ia áà noite para Botafogo e voltava de manhã. AyresAires descia de PetropolisPetrópolis um dia sim, um dia não.

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TambemTambém os gemeosgêmeos lá iam saber da enferma. Agora mais que d’antesdantes, sentiam a fortaleza do vinculovínculo que os prendia áà moça. Ficavam tristes, se as noticias eram más, se alegres, se boas. Queriam saber todas as circunstancias. Pedromoça. Pedro, já medicomédico, ainda que sem praticaprática, punha mais autoridade nas perguntas, concluiaconcluía melhor dos symptomassintomas, mas as esperanças e os receios de eram deeram de ambos. Algumas vezes, falavam mais alto que de costume e de convenienciaconveniência. A razão, por egoistaegoísta que fosse, era perdoavelperdoável., SuppõeSupõe que os cartões de visita falassem; alguns, mais soffregossôfregos, proclamariam os seus nomes, para que soubessem logo da presença, da corteziacortesia e da anciedadeansiedade. EstTal

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cuidado da parte dos dous era inutilinútil, porque ellaela sabia delles dcllesdeles e recebia as lembranças que lhe deixavam.

Flora , ia assim passando os dias. Queria Natividade sempre ao pé de si, por umapela razão que não disse, nemjá deu, e por outra que não disse, nem porventura soube, mas podemos suspeital-asuspeitá-la e imprimir. E† Estava alliali o ventre abençoado que geráragerara os dous gemeos gemeosgêmeos. De instinctoinstinto, achava nelle/a\nellanela algo particular. Quanto ao influxo que exercia nellanela, por essa ou qualquer outra causa, não a sabia Natividade; contentava-se em ver que, ainda agora, e em tal crise, Flora não perdera a amizade que lhe tinha. Passavam as horas juntas,

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falando, se não importavafazia mal falar, ou então uma com as mãos da outra entre as suas. Quando Flora adormecia, Natividade gostava de aficava a contemplar/l\-acontemplal-acontemplá-la, com o rosto pallidopálido, os olhos fundos, as mãos quentes, mas sem perder a graça dos dias da saudesaúde. As ou outras entravam no quarto, pé ante pé, esticavam os pescoços para vel-avê-la dormir, falavam por gestos ou tão baixo que só o coração as adivinharia.

Quando pareceu melhorar, Flora pediu um pouco mais de luz e de ceucéu. Uma das duas janellasjanelas foi então escancacarradaescancarada, e a enferma encheu-se de vida e de riso. Não é que a febreFebre de se fosse de todo. Essa bruxa lividalívida estava ao

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um canta/o\canto do quarto, com os olhos espetados nellanela; mas, ou de cançadacansada, ou por obrigação imposta, con/c\hilavacochilava a miude/o\miudomiúdo, e longamente. Então a enferma sentia só o calor do Mal, que o medicomédico graduava em trinta e oitonove ou trinta e oitonove e tr vinte,meio, depois de sacudirconsultar o thermometrotermômetro. A f/F\ebreFebre, ao ver esse gesto, ria sem escandaloescândalo, ria para si.

 
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CapituloCapítulo CXIIIXV CVIIICVI

Ambos quaesquais?

Ficámos no ponto em que uma das janellasjanelas do quarto augmentouaumentou a dósedose de luz e de ceucéu que Flora pediu, sem embargo da febre, aliás pouca. O mais que se passou valia a pena de um livro. Contento-me deste capitulo, aliás, breve. Nãolivro. Não foi logo, logo, gastou longas horas e alguns dias. Houve tempo bastante para que entre a vida e Flora se fizesse a reconciliação ou a despedida. Uma e outra podiam ser extensas; tambemtambém podiam

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ser curtas. Conheci um homem que adoeceu velhou, se não de velho, e despendeu no rompimento final um tempo quasiquási infinito. Assim lhe Já pedia a morte, mas quando via a car cara cabeça o rosto descarnada/o\descarnado da derradeira amiga espiar da porta entre-abertaentreaberta, voltava o seu para outro lado e engrolava uma canto/i\gacantiga da infanciainfância, a Gata borralheirapara enganal-a e viver.para enganá-la e viver.

Flora não recorria a taestais cantigas, aliás tão proximaspróximas. Quando via o ceucéu e um pedaço de sol no muro, deleitava-se naturalmente, e uma vez quizquis dezenhardesenhar, mas não lh’olho consentiram. Se a morte a espiava da porta, tinha um calefrio, é verdade, e fechava os olhos. †e Ao abril-os fitava a triste

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figura, sem lhe fugir nem chamar por ellaela.

— Você amanhã por está promptapronta, e de hoja/e\hoje a oito dias, ou antes, vamos para PetropolisPetrópolis, disse uma vozNatividade disfarçando as lagrimaslágrimas, mas a voz fazia o officioofício dos olhos.

PetropolisPetrópolis? suspirou a doente.

— Lá terá muito que desenhar.

Eram sete horas da manhã. Na vesperavéspera, quando os gemeos sairamgêmeos saíram de lá, ja tarde, os receios da morte cresciam; mas não bastam receios, é preciso que a realidade venham/a\venha atrazatrás dellesdeles; dahidaí as esperanças. Mas t/T\ambemTambemTambém não bastam esperanças, a realidade é msempre urgente. Emfim A madrugada trouxe algum socegosossego; ásàs sete

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horas, depois daquellasdaquelas palavras de Natividade, Flora pôde dormir.

Quando Pedro e Paulo voltaram a AndarahyAndaraí, a enferma estava accordadaacordada, e o medicomédico, sem dar grandes esperanças, mandou fazer applicaçõesaplicações, que declarou energicasenérgicas. Todos tinham signaessinais de lagrimaslágrimas. De A noitenoite, Ayres appareceuAires apareceu dando trazendo noticiasnotícias de agitação na cidade.

— Que é?

— Não sei; uns falam de manifestações ao marechal Deodoro, outros de conspiração contra o marechal Floriano. Ha alguma cousa.

Natividade pediu aos filhos que se não mettessemmetessem em barulhos; ambos prometteramprometeram

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— Ao e cumpriram. Ao Ao ver o aspecto de algumas ruas, gen grupos, patrulhas, armas, duas metralhadoras, Itamaraty illuminadoiluminado, tiveram a desejo curiosidade de saber o que ha/o\uvehouve e havia; vagas/a\vaga suggestãosugestão, que não durou dous minutos. Correram a metter-semeter-se em casa, e a dormir mal a noite. Na manhã seguinte os criados t levaram os jornaesjornais com as noticiasnotícias da vesperavéspera.

VeiuVeio algum recado de AndarahyAndaraí? perguntaram/ou\perguntou os gemeos.um.

— Não, senhor.

Ainda quizeramquiseram ler, por alto, alguma cousa. Não puderam; estavam anciososansiosos de sair de casa e saber noticiasnotícias d da noite. Posto levassem os jornaesjornais comsigoconsigo,

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não leram claramente nem seguidamente. Viram nomes de pessoas prezaspresas, um decreto, movimento de gente e de tropas, tão confuso tudo, que deram por si na casa de D.Dona Rita, antes de entender o que houvera. Flora ainda vivia. Toda a gente andava devagar abafando os passos e trazendo recados do quarto, espreita

— Mamãe, a senhora está mais triste hoje que estes dias.

— Não fales tanto, minha filha, acudiu D. ClaudiaDona Cláudia. Triste estou sempre desde que adoeces. Fica boa e verás.

— Fica, fica boa, interveiuinterveiuinterveio Natividade. Eu, /e\m Eu emEu, em moça, tive uma doença igual egual que me prostrou por duas semanas,

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até que me levantei quandolevantei, quando n ninguemninguém esperava.

— Então já não esperam de que me levante?

Natividade quizquis rir da conclusão tão promptapronta, com o fim de a animar. A doente fechou os olhos, abriu-os dahidaí a pouco, e pediu que vissem se estava com febre. Tinha Viram; tinha, tinha alguma.muita.

— Abram-me a janellajanela toda.

— Não sei se fará bem, ponderou D.Dona Rita.

— Mal não faz, disse Natividade.

E foi abrir, não toda, mas metade da janellajanela. Flora, posto que ja mui caidacaída, fez algum esforço e voltou-se para

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o lado da luz. Nessa posição ficou sem dizer p dar de si; os olhos, a principioprincípio vagos, entraram a fica parar, até que ficaram fixos. A gente entrava no quarto devagar, e abafando os passos, trazendo recados e levando-os; fóra espreitavam fóra, espreitavamfora, espreitavam o medicomédico.

— Demora-se; ja devia cá estar, dizia Baptista.

Pedro era medicomédico, propoz-sepropôs-se a ir ver a enferma; Paulo, não podendo entrar tambemtambém, ponderou que seria desagradaveldesagradável ao medicomédico assistente; alemalém disso, faltava-lhe praticaprática. Um e outroUm e outro queriam , se a doente hoassistir ao passamento de Flora, se tinha de vir. A mãe, que os ouviu, saiu para a saber q o que era

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ouviu, v saiu áà sala, e, sabendo o que era, respondeu negativamentenegativamente. Não podiam entrar; era melhor iremque fossem chamar o medicomédico.

— Quem é? perguntou Flora, ao vel-avê-la tornar ao quarto.

— São os meus filhos que queriam entrar ambos.

— Ambos quaesquais? perguntou Flora.

Esta palavra fez crer crêr que era o deliriodelírio que começava, se não é que acabava, porque, em verdade, Flora não proferiu mais nada. Natividade ia pelo deliriodelírio. AyresAires, quando lhe repetiram o dialogodiálogo, rejeitou o deliriodelírio...

A morte não tardou. VeiuVeio mais depressa do que se receiavareceava agora. Todas

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e o paepai acudiram a rodear o leito, onde os signaessinais da agonia se precipitavam. Flora acabou como uma dessas tardes rapidasrápidas, não tão/an\totanto rapidas que não façam ir doendo as saudades do dia; acabou ser tão serenamente que a expressão do rosto, quando lhe fecharam os olhos, era menos de defunctadefunta que de esculpturaescultura. As janellasjanelas, escancaradas, deixavam entrar o sol e o ceucéu.

 
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CapituloCapítulo CXIV CX CIX CVIII CVIIICVII

Estado de sitiosítio.

Não ha novidade nos enterros. AquelleAquele teve a circumstanciacircunstância de percorrer as ruas em estado de sitiosítio. p b/B\emBem pensado, a morte não é outra cousa mais que uma suspensãocessação da liberdade de viver, suspensãocessação perpetuaperpétua, ao passo que o decreto daquelledaquele tempo valia dia valeu só por 72 horas. Ao cabo de 72 horas, todas as liberdades serseriam restauradas, menos a de reviver.reviver. Quem morreu, morreu. Talvez um crime,…Era o caso de Flora; mas que crime teria commetidocometido

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aquellaaquela moça, alemalém da/o\do de viver, e po e porventura o de amar, não se sabe a quem, mas amar? Perdoai estas perguntas insensatas, e obscuras, que na que se não ajustam, antes se contrariam. A razão é que não recordo este obitoóbito sem pena, e ainda trago o enterro áà vista...

 
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CapituloCapítulo CXV CIX CIXCVIII

Velhas cousasceremoniasceremonias.cerimônias.

Aqui vaevai a sair o caixão. Todos tiram o chapeuchapéu, logo que elleele assoma áà porta porta. Gente que passa, párapara. Das janellasjanelas debruça-se a visinhançavizinhança, em algumas atopeta-se, por serem as familiasfamílias maiores que o espaço; ásàs portas osportas, os criados. Todos os olhos examinam as pessoas que pegam nas alças do caixão, Baptista, Santos, AyresAires, Pedro, Paulo, NobregaNóbrega.

Este, posto ja não frequentasse a casa, mandara mandára a saber da enferma, e foi co

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convidado a carregar o preciosogracioso corpo. No carro, em que levava o secretariosecretário, e era puxado pela mais bellabela parelha do prestitopréstito, creio que quasiquási unicaúnica, dizialembrava NobregaNóbrega ao secretariosecretário:.

— Não lhe dizia eu que ellaela era doente? Era muito doente.

— Muito.

Não vou ao ponto de dizer afral affirmarafirmar que teve prazer com a morte de Flora, só por havel-ohavê-lo feito acertar na noticianotícia da doença, estando ellaela perfeitamente sã. Mas que ninguemninguém fosse seu marido, foi uma especieespécie de consolação. A imaginação foi adeante, com os trambolhões do carro. Suppondo queHouve mais; suppondo queHouve mais; supondo que ellaela o tivesse aceitado acceitado e casassem, pensava agora no esplendidoesplêndido enterro enterro que

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lhe faria. Desenhava na imaginação o carro, o mais rico de todos, os cavallos, e cavallos ecavalos e as suas plumas negras, o caixão, uma infinidade de cousas que, áà força de inventarcompôrcompor, cuidava feitas. Depois o tumulo; marmoretúmulo; mármore, letras de ouro... O secretariosecretário, para o arrancar as áà tristeza, falandofalava dasdos co objectosobjetos da rua.

V. Ex.Vossa Excelência lembra-se do chafariz que havia aqui, ha aqui haaqui há annosanos?

— Não, respondiaresmungava Nobrega.

Não ha novidade nos enterros, repito. DahiAinda uma vez, não ha novidade nos enterros. DahiAinda uma vez, não há novidade nos enterros. Daí o provavel tedioprovável tédio dos coveiros, abrindo e fechando covas todos os dias. Não cantam, como os ††de Hamlet, que temperam as tristezas do officioofício com as trovas do mesmo officioofício. Trazem as o caixão da cal e a colhércolher para os convidados, e para si as

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pás com que enchem deitam a terra para dentro da cova. O paepai de Flora e alguns convidadosamigos ficaram ao pé da cova de de Flora, a ver cair a terra, a principioprincípio com aquelleaquele baque surdosoturno, depois com aquelleaquele vagar exaus cançativo,cansativo, por mais que os pobres homens se apressem. EmfimEnfim, caiu toda a terra, e elles puzerameles puseram em cima as grinaldas dos paespais e dos amigos: « ÁÀ nossa querida filha»; — « Á santa Á nossa santaÀ nossa santa amiguinha FloraFlora, a saudosa amiga Natividade.Natividade»;«A A Flora, um velho amigo velho», etc. Tudo feito, vieram saindo,; o pae entre pae, entrepai, entre AyresAires e Santos, que lhe davam o braço, cambaleava. Ao portão, foram fôram tomando os carros e partindo. Não deram por pela falta de Pedro e Paulo que ficaram no cemeterio †lhando paraao pé da cova.

 
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CapituloCapítulo CIX VI CXICIX

Ao pé da cova.

Nenhum dellesdeles contou o tempo que ficaram ficou ficaram allificaram alli. Sabem só que elle foi degasto naquellenaquele logarlugar. Sabem só que foi de silenciosilêncio, de contemplação e de saudade. NãoNão digo, para os não fechar vexar agora, mas é possível que chorassem tambemtambém. Tinham um lenço na mão, enxugavam os olhos; depois com os braços caídos caidos, as mãos prendendo o chapeochapéu, olhavam apparentementeaparentemente para as flores que cobriam a sepultura, mas na realidade para a creaturacriatura que lá estava embaixo.

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EmfimEnfim, cuidaram de arrancar-se dallidali, e despedirem-sedespedir-se da defuncta, defunct defunta, não se sabe com que palavras, nem se eram as mesmas; o sentido seria igual egual. Como estivessem defronte um do outro,um do outro, acudiu-lhes a idéiaideia de estender a mão sobre a cova, e apertarem-n’as.um aperto de mão por cima da cova. Era uma promessa, um juramento. Juntaram-se,Juntaram-se e vieram descendo, calados. Antes de transpor ochegar ao portão, reduziram a áà palavra o gesto das mãos feito sobre a cova. Que jurassemravamjuravam a conciliação perpetuaperpétua.

EllaEla nos separou, disse Pedro, agoraPedro; agora, que desappareceudesapareceu, que nos una.

Paulo confirmou accrescentando:de cabeça.

— Talvez morresse para isso mesmo, accrescentouacrescentou.

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Depois, abraçaram-se. Gesto nem palavra traziam emphasisênfase ou affectaçãoafetação; eram simples e sinceros. A sombra de Flora de certodecerto os viu, ouviu e inscreveu aquellaaquela promessa de reconciliação nas taboastábuas de bronze da eternidade. Ambos, por um impulso commumcomum, voltaram os olhos para ver ainda uma vez a cova de Flora, mas a cova ficava longe e encoberta por grandes sepulchrossepulcros, cruzes, collumnascolunas, um mundo inteiro de gente passada, quasiquási esquecida. O cemiteriocemitério tinha um ar quasimeio alegre, com todas aquellasaquelas grinaldas de flores flôres, baixo-relevos, bustos, e a côrcor branca dos marmoresmármores oue da cal. Compa Comparado ás/á\ covas/a\ recentes/e\ á cova recenteà cova recente, parecia um renascimento de vida, que ficou deslembrada a um canto da cidade.

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Custou-lhes sair do cemiteriocemitério. Não suppunhamsupunham estão/ar\estar tão presos áà defunta. Cada um delles d‘ellesdeles ouvia a mesma voz, com igual egual doçura e palavras especiais. Tinham chegado ao portão e o carro veiu buscal-osveio buscá-los. A cara do cocheiro era radiosa. radiosa.

Não se explica esta expressão do cocheiro, se nãosenão porque, inquieto da demora, não cuidando que os fre dous freguezesfregueses tivessem ficadoficassem tanto tempo ao pé da cova, en entráraentrara a receiarrecear se aceitáraque tivessem aceitado o convite de algum amigo e voltado para avoltado para casa. Tinha ja resolvido esperar algunspoucos minutos mais, e ir embora; mas a gorjeta? A gorjeta foi dobrada, como a dor dôr e o amor; digamos, gemeagêmea. O carro veiu

 
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CapituloCapítulo CXI VII CXIICX

Que vôavoa.

Assim como o carro veiuveio voando do cemiteriocemitério, assim voará este capitulocapítulo, destinado a dizer tão somenteprimeiro que a mãe dos gemeosgêmeos conseguiu leval-oslevá-los para PetropolisPetrópolis. Nem a cliJa nãoJá não allegaramalegaram agora a clinicaclínica da Santa Casa Caza nem os documentos da BibliothecaBiblioteca Nacional. ClinicaClínica e documentos lá ficarrepousam agora na cova n.... Não ponho o numeronúmero, para que algum curioso, se achar este livro na dita BibliothecaBiblioteca, se dê ao trabalho de

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investigar e completar o texto. Basta o nome da defunta, que ja ficou dito e relido redito.

VôeVoe este capitulocapítulo, como o trem de Mauá, serra acima, até áà cidade do repouso, do luxo e da galanteria. Vá Natividade com os filhos, e AyresAires com os tres treztrês. Em cima, áà noite, voltando este áà casa do barão, podepôde ver os dous unidos os effeitosos efeitos da pazpaz jurada, a conciliação final. Não sabiam nada do pacto dos dous moços. ninguem sa a proPa PaePair nem mãe sabiam cousa nenhuma. Foi um segredo guardado no silenciosilêncio do cemiterio e no desejo vehementesincero de commemorarcomemorar uma creaturacriatura que os ligáraligara, morrendo.

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Natividade vivia agora enamorada dos filhos. Levava-os a toda parte, ou guardava-os para si, afima fim de os gostar mais deliciosamente, de os approvaraprovar por actosatos, de completarauxiliar a obra correctivacorretiva do tempo. NoticiasNotícias e boatos do Rio de Janeiro eram objectoobjeto de conversação nas casas a que ellesestes iam, sem os convidar a sair da abstenção voluntariavoluntária. As recreações pouco a pouco os tomaram, algum passeio de carro ou a cavallocavalo, e outras diversões os traziam unidos.

Assim chegaram ás primeiras semanas dias de maio, ao tempo em que a familiafamília S Santos desceu, ainda que a contra-gostocontragosto de Natividade. Es/l\laEllaEla temia que, mais perto do governo, as divergenciasa discordiaa discórdia politicapolítica acabasse

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com a recente harmonia dos filhos, mas não podia lá ficar. A outra gente vinha descendo. Santos queria os seus velhos habitoshábitos, e deu algumas razões boas, que Natividade ouvidouviu depois ao propriopróprio AyresAires. Podia ser um encontro de ideias, mas se estas eram boas, podiam deviam deviam ser aceitas acceitas.

Natividade confiava ao tempo a c/p\erfeiçãoperfeição da obra. Cria no tempo. Eu, em cri menino, sempre o vi pintado como um velho de grandes barbas brancas e foice na mão, que me mettiametia medidomedo. Quanto a ti, amigo meu, ou amiga minha, segundo fôrfor o sexo da pessoa que me lê, nse não forem fôrem duas, e os sexos ambos, — um casal

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de noivos, por exemplo, — curiosos de saber como é que Pedro e Paulo puderam estar no mesmo Credo... Não falemos desse mysteriomistério... Contenta-te de saber que elleseles desceram e cuidaram detinham em mente cumprir o juramento daquella/e\daquelledaquele occas local logarlugar e occasiãoocasião. A estação acabaraO tempo trouxe o fim da estação, como nos outros annosanos, e PetropolisPetrópolis deixou PetropolisPetrópolis.

 
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CapituloCapítulo CXIIICXI

Um resumo de esperanças.

«Quando um não quer, dous não brigam» tal é o velho proverbioprovérbio que que ouvi em rapaz, a melhor idade edade para ouvir proverbiosprovérbios. Na idade edade madura elleseles devem ja fazer parte da bagagem da vida, fructosfrutos da experienciaexperiência antiga e commumcomum. Eu cria neste; mas não foi elleele que me deu a resolução de não brigar nunca. Foi por achal-oachá-lo em mim que lhe dei creditocrédito. Ainda que não existisse, era a mesma

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cousa. Quanto ao modo de não q querer, não respondo, não sei. NinguemNinguém me constrangia. Todos os temperamentos iam commigocomigo; poucas divergenciasdivergências tive, e perdi só uma ou duas amigamizades, e tão docemente,pacificamente aliás, que os amigos naperdidos não deixaram de me tirar o chapeochapéu. Um dellesdeles pediu-me perdão no testamento.

No caso dos gemeosgêmeos eram ambos que não queriam; tinhparecia-lhes ouvir uma voz de fórafora ou dode alto que lhes falavapedia constantemente a paz. Força maior, portanto, e troca de formulafórmula: «Se nenhum quer, nenhum briga». A isto se reduziam a as relações dos dous

Naturalmente os actosatos do governo eram

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agora approvadosaprovados oue desapprovadosdesaprovados, mas a certeza de que podia accender-lhesacender-lhes novamente os odiosódios faziamfazia com que as op opiniões de Pedro e de Paulo ficassem entre os seus amigos pessoaespessoais. Não pensavam nada áà vista um do outro. DivergenciasDivergências de theatroteatro , de modaou de rua, eram sopitadas logo, por mais que lhes doessem doesse o silenciosilêncio. Não doeria tanto aa Pedro, como a Paulo, mas sempre era padecer alguma cousa. Mudando de pensamento, esqueciam de todo, e o riso da mãe era a paga certa.de ambos.

A carreira differentediferente ia separal-ossepará-los depressa, ain comquantoconquanto a residencia commumresidência comum os trouxesse unidos. Tudo se podia combinar; os interesses do officioofício

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serviriam a este effeitoefeito, as relações pessoaespessoais tambemtambém, e afinal o uso, que vale por muito. Vou aqui resumindo, como posso, as esperanças de Natividade. Outras havia a que chamarei conjugaesconjugais; os rapazes, porém, não pareciam inclinados a ellaselas, e a mãe, quem lhe apalpasse o coração sentiria ja um antecipado anticipado ciumeciúme das noras.

 
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CapituloCapítulo CXX IV CXIIICXII

O primeiro mezmês.

No/a\Na dia seguinte, vesperavéspera daquelle emdo dia em que se completou o primeiro mezmês do/a\da enterr morte de Flora, Pedro teve uma ideia, que não communicoucomunicou ao irmão. Não ganhariaperderia nada em fazel-ofazê-lo, porque Paulo teve a mesma ideia, e tambemtambém a calou. DellaDela nasceunasce este capitulocapítulo.

A pretexto de ir visitar um enfermo,doente, Pedro saiu cedo de casa, antes das sete horas. Paulo saiu tambem, maspouco depois, e sem pretexto

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algum. Pia leitora, adivinhas que ambos foram fôram ao cemiteriocemitério; a visitarnão adivinhas, mas enem é fácil adivinhar que ambos lecada um dellesdeles levava umuma grinalda;/.\ e das m Não digo que fossem das mesmas flores flôres, não só ja ja para respeitar a verdade, se senão tambemtambém para affastarafastar qualquer ideia de intencional de symetriasimetria no/a\na accasoacçãoação e no acaso. Uma era de myosotismiosótis, outra creio de que de perpetuasperpétuas. Qual fosse a de uma, qual a do outro, não se sabe nem interessa áà narração. Nenhuma lev tinha letreiro.

Quando Paulo chegou ao cemiteriocemitério, e viu de longe o irmão ao pé da sepultura de Flora, teveirmão, teve a sensação de pessoa roubada. A presumpção de que Cuidava ser unico e eraCuidava ser único e era

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qultimo.último A pres presumpçãopresunção, porém, de que Pedro não leváralevara nada, uma folha sequer, consolou-o da antecipação da visita. Em todo caso Esperou alguns se instantes; advertindo que seria visto ou a descobertopodia ser visto, desviou-se do caminho, metteu-semeteu-se por entre outras sepulturas, rodeando atésepulturas, até ir collocar-secolocar-se atrazatrás daquelladaquela. Ahi esperou cerca de um quarto de hora. Pedro não se queria arrancar da sepultura arrancar dalliarrancar dali; parecia falar e escutar. EmfimEnfim, despediu-se e desceu.

Paulo, vagarosamente, caminhou para e se approximou da sepult do pelo lado opposto. a sepultura. Indo a depositar a grinalda, viu alliali outra posta de fresco, e entendendo que era do irmão, teve

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impetoímpeto de ir atrazatrás delledele e pedir-lhe contas da lembrança e da visita. Não lhe leves a mal o impetoímpeto; passou imediatamente immediatamente. O que elleele fez foi collocarcolocar a grinal c coroa que levava no lado correspondente aos pés da defunta, para não a irmanar com a outra, que estava do lado da cabeça.

Não viu, não adivinhou sequer que Pedro naturalmente vol pararia adiante, para voltar a cabeçaum instante, para voltar a cara e mandar um derradeiro olhar áà finada. Efectivamente, este pa deteve o passo, e finada. Assim moça enterrada. Assim foi, mas quando Pedro deu com o irmão, no mesmo logarlugar que elleele, os olhos emno chão, teve tambemtambém o seu impulso de ir buscal-obuscá-lo e trazel-otrazê-lo

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daquelladaquela cova sagrada. Preferiu esconder-se e esperar. Os gestos de piedade, quaesquerquaisquer que fossem, ja fo elle os o precedera nelles;elle os deu primeiro áele os deu primeiro à querida commumcomum. Foi o primeiro em evocar a sombra de Flora, falar-lhe, ouvil-aouvi-la, gemer com ellaela a separação eterna. Viera adiante do outro; lembrara-se delladela mais cedo.

Assim consolado, podia seguir caminho; Paulo, se saisse atrazsaísse atrás delledele, e o visse, comprehenderiaentenderia que fizera a sua visita em segundo logarlugar, e receberia um golpe grande. Deu alguns passos na direcçãodireção do portão, estacou, e rrecuou e novamente se escondeu. Queria ver os gestos delledele, ver se rezava, se se benzeriabenzia, para desmentil-odesmenti-lo quando lhe ouvisse maldizermofar

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das ceremoniascerimônias eclesiasticas ecclesiasticaseclesiásticas. Logo sentiu que era um erro; não iria confessar a ninguemninguém que o vira rezando ao pé da cova de Flora. Ao contrariocontrário, era capaz de o desmentir, — ou, quando menos, — fazerfazer um gesto de incredulidade...

EmquantoEnquanto estas imaginações lhe passavam pela cabeça, desfazendo-se umas ásàs outras, discursando sem palavras, aceitando, acceitando repellindorepelindo, esperando, os olhos da não se retiravam do irmão, nem este da sepultura. Paulo não fazia gesto, não mexia os labioslábios, tinha os braços cruzados, o chapeochapéu na mão. Não obstante, podia estar rezando. TambemTambém podia falar calado,

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pa para a sombra ou para a memoriamemória da defunta. A verdade é que não saiu do logarlugar. Então Pedro viu que a conversação, evocação, adoração, o que quer que erafosse que atava Paulo áà sepultura, eravinha sendo muito mais demorado que as suas orações. Não marcáramarcara o seu tempo, mas evidentemente o de Paulo era ja maior. Descontando a impacienciaimpaciência, que sempre faz crescer os minutos, ainda assim eraparecia certo que Paulo gastava sus gastava mais saudades que elleele. DesdeDeste modo, ganhava na extensão da visita o que perdera na chegada ao cemiteriocemitério. Pedro, áà sua vez, sentachou-se roubado.

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QuizQuis sair; mas, uma força, que elleele não sabia explicar, não lhe consentia levantar os pés, nem tirar os olhos do gemeogêmeo. A custo, podepôde emfimenfim t trazer a estes e fazel-osfazê-los andar de volta pelas outras campas, onde leu alguns epitaphiosepitáfios. Um de 1865 não se podia ler bem se era tributo de amor filial ou conjugal, maternal ou paternal, por estar ja apagado o adjectivoadjetivo. Tributo era, tinha a formula adoptadafórmula adoptada pelos marmoristas, para poupar estyloestilo aos fregueses freguezes. Notando que o adjectivoadjetivo estava comido do tempo, Pedro disse comsigoconsigo que o seu amor é que era um substantivo perpetuoperpétuo, não precisando mais nada para d se definir.

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Pensou outras cousas com que foi matando o tempo e disfarçandocom que foi disfarçando a humilhação. que sentia Fizera tudo ásàs carreiras. Se se/de\morasse algum tempo maisSe se demorasse mais, era o outro que estaria agora áà espreita. Ag O tempo andava, o sol batia no rosto do irmão, e este não arredava pé. EmfimEnfim, deu mostras de deixar a cova, mas foi para rodeal-arodeá-la, e deter-se em todos os quatro lados, como se buscasse o melhor de logarlugar de ver ou evocar a pessoa guardada no fundo.

Tudo feito, Paulo arredou-se, desceu e saiu, levando á/a\sas maldições de Pedro. Este teve uma ideia que desprezou logo, e tu farias o mesmo,

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amigo leitor; foi tornar áà sepultura e emendar ao g tempo gasto anteriormente outro pedaço maior. Desprezada a ideia, vagou alguns min minutos, até que saiu, sem achar sombra de Paulo.

 
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CapituloCapítulo CXIVCXIII

Uma Beatriz para dous.

Flora, se os visse os gestos de ambos, é provavelprovável que descesse do ceucéu, e buscasse maneira de os unir ouvir A lição do manuscrito é a mais adequada, no contexto da briga entre os gémeos, da disputa pelo amor de Flora, das juras de amizade que fizeram após a morte dela, e do papel de semelhante ao de Beatriz, de Dante, que lhe é atribuído. O facto de a variante do manuscrito não vir sequer registada na edição preparada pela Comissão Machado de Assis leva-me a crer ter existido um erro de leitura do manuscrito da própria Comissão, que perpassou para todas as edições que foram sendo, até agora, feitas de Esáu e Jacó e que não consideraram o manuscrito perpetuamente, uma Beatriz para dous. Mas não viu ou não lhe pareceu bem descer. Talvez não achasse necessidade de tornar cá, para servir de madrinha a um duelloduelo que deixáradeixara em meio.

Quanto a este, se ia continuar, ou não e oera pela mesma injuriainjúria. Não esqueças que foi ao pé daquella mesmadaquella mesmadaquela mesma campa

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campa que os dous fizeram as pazes eternas, e, posto não lh’aslhas desfizesse a campa, é certo que accendeuacendeu um pouco da ira antiga. Dir-me-hasDir-me-ás, e com apparenciaaparência de razão, que, se enterrada ainda os separava, mais os separaria se alliali descesse em espiritoespírito. Puro engano, amigo. No começo, ao muitomenos, elleseles jurariam o que ellaellaela mandasse.

 
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CapituloCapítulo CXXII CXVICXIV

ConsultorioConsultório e banca.

Mes/z\esMezesMeses depois, Pedro abria consultorio medicoconsultório médico, aonde iam pessoas doentes, Paulo banca de advogado, que procuravam os carecedorescarecidos de justiça. Um promettiaprometia a saudesaúde, outro ganho de causa, e acertavam muita vez, porque não lhes faltava talento nem fortuna. Demais, não trabalhavam sós, mas cada qual com um collegacolega de nomeada e praticoprático.

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No meio dos successossucessos do tempo, entre os quaesquais avultavam a rebelliãorebelião da esquadra e os combates do sul, a fuzilaria contra a cidade, os discursos inflammadosinflamados, prisões, musicasmúsicas e outros rumores, não lhes faltava campo em que divergissem. Nem era preciso politicapolítica. Ao Ao conCresciam agora mais em nu numeronúmero as occasiõesocasiões e as materiasmatérias. Ainda quando combinassem de acaso e de apparenciaaparência, era para discordar logo e de vez, não deliberadamente, mas por não poder ser de outro modo.Creio que me entendem.

Tinham perdido o accordoacordo, feito pelo/a\pela razão amor, razão, jurado pelo amor, em honra da moça defunta e da

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mãe viva. Mal se podiam ver, mal ou peorpior ouvir. Cuidaram de evitar tudo o que o logarlugar e a occasiãoocasião ajustassem para os separar mais. Desta maneira, a profissão torceu-lhes o caminho e dividiu as relações de ambos. Natividade apenas daria pela má vontade dos filhos, desde que em um ponto osos dous pareciam apostados em lhe querer bem, mas dava por ellaela, e queria vel-os como alguma vez ligados de todo e apertatentava ligal-ostentava ligá-los apertadamente e de todo. Santos folgava de se prolongar pela medicina e pela advocacia dos filhos. Só receiavareceava que Paulo, dada a inclinação partidariapartidária, buscasse noiva jacobina. Não ousando dizer-lhe nada a tal respeito,

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refugiava-se na religião, e não ouvia missa que lhe não mettessemetesse uma oração particular e secreta, para obter a protecçãoproteção do ceucéu.

 
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CapituloCapítulo CXXIII CXVIICXV

Troca de opiniões.

Se nãoSenão quando, pareceu aviu Natividade ver os primeiros signaessinais de uma troca de inclinação, que mais parecia propositopropósito que effeitoefeito natural. Entretanto, era naturalissimonaturalíssimo. PedroPaulo entrou a aceitar o regimen republicanofazer opposição ao governo,fazer oposição ao governo, ao passo que Pedro moderava o tom e o sentido, e acabava aceitando acceitando o regimenregímen republicano, objectoobjeto de tantas desavenças.

A aceitação acceitação por parte deste não foi rapidarápida nem total; era, porém,

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bastante para sentir que não havia entre elleele e o novo governo um abysmoabismo. Naturalmente a mocidadeo tempo e a reflexão consummaramconsumaram este effeitoefeito no espiritoespírito do/e\de m Pedro, a não admittiradmitir que tambemtambém nellenele vingasse a ambição de um grande destino, esperança da mãe. Natividade, com effeitoefeito, ficou deliciada. TambemTambém ella mudáraela mudara, se havia que mudar na simples alma de mãe,materna para quem todos os regimensregímens valiam pela gloriaglória dos filhos. Pedro, aliás, não se dava todo, restringia algoalguma cousa ásàs pessoas e ao systhema systemasistema, mas acceitavaaceitava o princicipio principioprincípio, e bastava; o resto viria com a idade edade, dizia ellaela.

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A opposiçãooposição de Paulo não era ao principioprincípio, mas áà execução. Não é esta a republicarepública dos meus sonhos, dizia elleele; e dispunha-se a reformal-areformá-la em tres treztrês tempos, com a fina flor flôr das instituições humanas, não presentes , nem passadas, mas futuras. Quando falava dellasdelas, via-se-lhe a convicção nos labioslábios e nos olhos, estes alongados, como alma de prophetaprofeta. Era outro ensejo de se não entenderem os dous. D. ClaudiaDona Cláudia Tinhatinha que era intençãocalculocálculo de ambos para se não juntarem nunca; — opinião que Natividade aceitaria acceitaria, finalmente, se não fosse fôrafora a de AyresAires.

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TambemTambém este notáranotara a mudança, e esteveestava prestes a aceitar acceitação a explicação, por aquellaaquela razão de commodidadecomodidade que achava em concordar com as opiniões alheias; não se cançavacansava nem aborrecia. Tanto melhor semelhor, se o accordoacordo se fazia com um simples gesto. Desta vez, porém, valeu a pessoa.

— Não, baronezabaronesa, disse elleele, não creia em propositospropósitos.

— Mas que pode póde ser então?

AyresAires gastou algum tempo na escolha das palavras, afima fim de lhe não sairemsaírem pedantescas nem insignificantes; queria dizer o que pensava. ÁsÀs vezes, falar não custa menos que pensar. Ao fim de tres treztrês minutos, segredou a Natividade:

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— A razão parece-me ser que o espiritoespírito de inquietação reside em Paulo, e o de conservação em Pedro. Um já se contenta do que está, outro acha que é pouco e pouquissimopouquíssimo, e quisera quizera ir ao ponto a que não foram fôram homens. Em summasuma, não lhes importam fórmasformas de governo, contanto comtanto que a sociedade fique firme ou se atire para deantediante. Se não concorda commigo,comigo, concorde com D. ClaudiaDona Cláudia.

AyresAires não tinha aquelleaquele triste peccadopecado dos opiniaticosopiniáticos; Nãonão lhe importava ser ou não aceito acceito. Não é a primeira vez que o digo, mas provavelmente é a ultimaúltima;/.\visto que a historia Em verdade, a mãe dos gemeosgêmeos não quizquis outra

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explicação. Nem por isso a discordiadiscórdia m morreria entre elleseles, que apenas trocavam de armas para continuar o mesmo duelloduelo. Ouvindo esta conclusão, AyresAires fez um gesto affirmativoafirmativo, e chamou a attençãoatenção de Natividade para a côrcor do ceucéu, que era a mesma, antesmesma, antes e depois da chuvachuva. Suppondochuva. Suppondochuva. Supondo que havia nisto algo symbolico, ellasimbólico, ela entrou a procural-oprocurá-lo, e o mesmo farias tu, tú, leitor, se la estivesses; mas não havia nada.

— Tenha confiança, baronezabaronesa, continuouproseguiuprosseguiu elleele pouco depois. Conte com as ci circumstanciascircunstâncias, que tambemtambém são fadas. Conte mais omais com o imprevisto. O imprevisto é uma especieespécie de deus deus avulso,

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ao qual é preciso dar algumas acçõesações de graças; pode póde ter voto decisivo na assemblea assembléaassembleia dos acontecimentos. Supponho SupponhaSuponha um despotadéspota, uma corte côrte, uma mensagem. A corte côrte discute a mensagem, a mensagem canonisacanoniza o despotadéspota. Cada cortezãocortesão toma a si definir definir uma das virtudes deste,do despota,do déspota, a mansidão, a piedade, a justiça, a modestiamodéstia... Chega a vez da grandeza da alma; chega tambemtambém a noticianotícia de que o despotadéspota morreu de apoplexia, que um cidadão liberal assumiu o poder e a liberdade foi proclamada do alto do thronotrono. A mensagem é copiad approvada e copiada.aprovada e copiada. Um amanuense basta para trocar as mãos áà HistoriaHistória; tudo é que o nome do cidadão novo chefe seja conhecido, e o

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contrariocontrário é impossível; ninguemninguém trepetrepa ao soliosólio sem isso, nem a senhora sabe o que é me memoriamemória de amanuense. Como nas missas funebresfúnebres, só se troca o nome do en encommendadoencomendado — Petrus, Paulus...

— Oh! não agoure meus filhos! exclsuplicou a baron N a baroneza querendo tapar a boca ao consexclamou Natividade.

 
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CapituloCapítulo CXXIV CXVIIICXVI

De retorno regresso.

— Então foram fôram eleitos deputados?

Foram Fôram; tomam assento quinta-feira. Se não fossem fôssem meus filhos, diria que os vem achar mais bellosbelos de/o\do que os deixou, ha um annoano.

— Diga, diga, baronezabaronesa; faça de conta que não são seus filhos os filhos são meus.são meus filhos.

AyresAires voltava da de Europa, aonde fora fôra com promessa de ficar seis mezesmeses apenas. Enganou-se; gastou dezonze. Natividade é que lhe deu pôzpôs um annoano

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para arredondar a ausenciaausência, que sentira deveras devéras, como D.Dona Rita. O sangue em uma, o costume na outra, custou-lhes a supportarsuportar a sepaa separaçãoa separação. ElleEle fora fôra a pretexto de aguaságuas, e, por mais que lhe recommendassemrecomendassem as do Brasil, não as quizquis experimentar. Não gostava dos nomes. Lambary ou Cambuquira.estava acostumado ás denominações locaes.estava acostumado às denominações locais. Tinha esta impressão que as aguaságuas de Carlsbad ou Vichy, sem estes nomes, não curariam tanto. D.Dona Rita insinuou que elleele ia para ver como estavam as moças que deixou, e concluiu:

— Hão de estar tão velhas, como você concluiucomo você.

— Quem sabe ser se mais? O officioofício dellasdelas é envelhecer, redarguia/u\redarguiu o conselheiro.

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QuizQuis rir, mas não podepôde ir alemalém da ameaça. Não era a lembrança da propriaprópria velhice, nem da caducidade alheia, era a injustiça da sorte que lhe tomou a vista interior. As moças elleele sabia muito bem que cediam ao ao tempo, como as cidades e as instituições, e ainda mais depressa que ellaselas. Nem todas iriam logo cedo, a cumprir aquillo doa sentençaa sentença que attribueatribui ao amor dos deuses a morte prematura das pessoas; mas viu algumas dessas, e agora lhe lembrou a bellameiga Flora, que la se fôrafora com as suas graças finas... Não passou da ameaça de riso.

Quizeram retel-oQuiseram retê-lo as duas, Santos tambemtambém, que perdia nellenele uma figura

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certa das suas noites; mas o noss nosso homem resistiu, embarcou e partiu. Como escrevia sempre áà irmã e aos amigos, dava a causa exactaexata da demora,, e e um a chronica das excursões e não eram amores, salvo se mentia, mas passárapassara a idade edade de mentir. AffirmouAfirmou, sim, que recuperárarecuperara algumas forças, e assim o pareceu quando desembarcou, onze mezesmeses depois, no caescais Pharoux. Trazia o mesmo ar de velho elegante, fresco e bem posto. Na botoeira o mesmo estribilhobem posto.

— Mas então eleitos?

— Eleitos; tomam assento quinta-feira.

 
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CapituloCapítulo CXVIIIXCXVII

Posse das cadeiras.

Quinta-feira, quando os gemeosgêmeos tomaram posse das cadeirasassento na camara,assento na câmara, Natividade e PerpetuaPerpétua foram fôram ver a ceremoniacerimônia. Pedro ou Paulo arranjou-lhes uma tribuna. A mãe desejou que AyresAires fosse tambemtambém. Quando este alliali chegou, ja as achou sentadas, Natividade a fitar com o/a\a lorgnon luneta o presidente e os deputados. Um destes falava sobre a actaata, e ninguemninguém lhe prestava attençãoatenção. AyresAires sentou-se um pouco

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mais dentro, e, os dous conversaram durante instantes minutos após alguns minutos, disse a Natividade:

— A senhora escreveu-me que cada um for era candidato deeram candidatos de dous partidos contrarioscontrários.

Natividade confirmou a noticianotícia; foram fôram eleitos em opposiçãooposição um ao outro. Ambos apoiavam a RepublicaRepública, mas Paulo queria mais do que ellaela era, e Pedro achava que era bastante e sobeja. Um Mostravam-se sinceros, ardentes, ambiciosos; eram bem acceitosaceitos dos amigos, estudiosos, instruidosinstruídos...

— Amam-se finalmente?

— Amam-se em mim, disse Natividaderespondeu ellarespondeu ela depois de formular est essa phrasefrase na cabeça. e continuou. Fóra de mim, dera aborrecem-se como d’antes. Imagine se lhes falto, se morro...

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— Pois basta esse terreno amigo.

— Amigo, mas caduco; amanhã posso faltar-lhes.

— Não falta; a senhora tem muitos e muitos annosanos de vida. Faça uma viagem áà Europa, com elleseles, e verá que regressa ainda mais robusta. Eu sinto-me duplicado, por mais que me custe áà modestiamodéstia, mas a modestiamodéstia perdoa tudo. E depois, quando os vir encarreirados e grandes homens...

PorquePor que é que a politicapolítica os hade ha dehá de separar?

— Sim, podiam ser grandes na scienciaciência, um grande medicomédico, um grande jurisconsulto...

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Natividade não quizquis confessar que a scienciaciência não bastava. A gloria scientificaglória científica parecia-lhes/e\parecia-lhe comparativamente obscura; era calada, de gabinete, entendida de poucos. Política Politica, não. QuizeraQuisera só a politicapolítica, mas que não brigassem, que se amassem, que subissem de mãos dadas... Assim ia pensando comsigoconsigo, emquanto Ayresenquanto Aires, insistia abrindo mão da scienciaciência, acabou con concordando de declarando que, semque, sem amor, não se faziafaria nada.

— Paixão, disse elle,disse ele, é meio caminho andado ;/.\disse elle elle.

— A politicapolítica é a paixão dellesdeles; paixão e ambição. Talvez ja pensem na presidenciapresidência da RepublicaRepública.

— Já?

— Não... isto é, sim; guarde segredo. Interroguei-os

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separadamente; confessaram-me que este era o seu sonho imperial. Resta saber o que fará um, se o outro subir primeiro.

Derrubal-o-haDerrubá-lo-á, naturalmente.

— Não ria, meu amigo.graceje, conselheiro.

— Não é riso,gracejo, baronezabaronesa. A senhora cuida que a politicapolítica os desune; francamente, não. A politicapolítica é um incidente, como a moça Flora foi outro...

— Ainda se lembram delladela.

— Ainda?

Foram Fôram áà missa anniversariaaniversária, e desconfio que foram fôram tambemtambém ao cemiteriocemitério, não juntos, nem áà mesma hora. Se foram fôram, é que verdadeiramente gostavam delladela; logo, não foi um incidente.

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Sem embargo do que Natividade lhe merecia, AyresAires não insistiu na opinião, antes deu mais relevo á della com á della, comà dela, com o propriopróprio factofato da visita ao cemiteriocemitério.

— Não sei se foram fôram, atalhouemendou Natividade; desconfio.

— Devem ter ido; elleseles gostavam realmente da pequena. TambemTambém ellaela gostava dellesdeles; a differençadiferença é que, não alcançando unifical-osunificá-los, como os via em si, preferiu fechar os olhos. Não lhe importe o mysteriomistério. Ha outros mais escuros.

— Parece que vaevai entrar a ceremoniacerimônia, disse D. Eusebia,Perpetua, quePerpetua que olhava para o recinto.

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— Chegue-se para a frente, conselheiro.

A ceremoniacerimônia era a do costume. Natividade cuidou que ia vel-osvê-los entrar juntos e affirmaremafirmarem juntos o compromisso regimental. Viriam assim ao/co\mocomo os trouxera no ventre e na vida. Contentou-se de os ver entrar a falaradmirar separadamenteadmirar separadamente, Paulo primeiro, Pedro depois, ambos graves, e viu-lhouviu-lhes cá de cima repetir a formformula com vozfórmula com voz clara e firmesegura. A mãe traA ceremonia foiA cerimônia foi curiosa para as galerias, graças áà semelhança dos dous; para a mãe foi tra commovedora.comovedora.

— Estão legisladores, disse AyresAires no fim.

Natividade tinha os olhos gloriosos. Ergueu-se , e pediu ao velho amigo que as

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acompane acompanhasse áà carruagem. No corredor acharam os dous recentes deputados, que vinham ter com ella.a mãe. Não consta qual dellesdeles a beijou primeiro; não havendo regimento interno nesta outra camaracâmara, pode póde ser que fossem ambos a um tempo, mettendo-lhes ellametendo-lhes ela a cara entre as bocas. Uma bôcas, uma face para cada um. A verdade é que o fizeram com igual egual ternuraternura. Depoisternura. Depois voltaram ao recinto.

 
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CapituloCapítulo CXIXVIIICXVIII

Cousas passadas, cousas futuras.

Indo a entrar na carruagem, Natividade deu com a igreja egreja de S.São José, ao lado, e um pedaço do morro do CastelloCastelo, a distanciadistância. Estacou.

— Que é? perguntou AyresAires.

— Nada, respondeu ellaela entrando e estendendo-lhe a mão. Até logo?

— Até logo.

A vista da igreja egreja e do morro despertou nellanela todas as scenascenas e palavras que lá ficaram transcriptastranscritas nos dous

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ou tres treztrês primeiros capituloscapítulos. des Não esqueceste que foi ao pé da igreja egreja, entre esta e a camaracâmara, que o coupé esperou então por ellaela e pela irmã.

— Você lembra-se, PerpetuaPerpétua? diss pedisse Natividade, quando o carro começou a andar.

— De quê?

-Foi me

— De quê? que?

— Não se lembra que foi aqui alliali que vier ficou o carro, quando fomos fômos áà cabocla do CastelloCastelo?

PerpetuaPerpétua lembrava-se. Natividade advertiu que devia ser alliali perto a ladeira por onde subiram de com difficuldadedificuldade e curiosidade, até áà até á casa da cabocla, no meio da outra gentegente, que descia ou subia tambemtambém. A casa era áà direita, tinha  a escada de pedra...

DescançaDescansa, amigo, não repito as paginaspáginas. EllaEla é que não podia deixar de as as evocar, ou dnem impedir que viessem de si mesmas. Tudo reappareciareaparecia com a frescura antiga. Não esquecera a figurinha da cabocla, quando o paepai

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a fez entrar na sala: Entra, BarbaraBárbara. A idea/ia\ideia de estar agora madura e longe, restituidarestituída ao Estado, que deixou ProvinciaProvíncia, e rica onde nasceu pobre, não acudiu áà nossa amiga. Não, toda ellaela voltou áquellaàquela manhã de 1871. A caboclinha era esta mesma creaturacriatura leve e breve, com os cabelloscabelos atados ao no alto da cabeça, olhando, fallandofalando, dansandodançando... Cousas passadas.

Quando a carruagem ia a dobrar a praia de Santa Luzia, ladeando a Santa Casa, Natividade teve ideia, de mas só ideia, de voltar e ir ter áà ladeira do CastelloCastelo, subir por ellaela, a ver se achava a adivinha no mesmo logarlugar. Contar-lhe-hiaContar-lhe-ia que os dous meninos

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de mama, que ellaela predisse seriam grandes, eram ja deputados e acabavam de tomar assento na camaracâmara. Quando cumpririam elleseles o seu destino? SeriaViveriaViveria o tempo de os ver grandes homens, ainda que muito velha?

A presidenciapresidência da RepublicaRepública não podia ser para dous, mas um teria a vice-presidenciavice-presidência, e, see se este a achasse pouco, trocariam mais tarde os dous cargos. Nem faltavam grandezas. Ainda se lembralembrava das palavras que ouviu áà cabocla, quando lhe perguntou pela especieespécie de grandeza que caberia aos filhos. Cousas futuras! respondeu a PythiaPítia do Castello,Norte, com tal voz que nunca lhe esqueceu. Agora mesmo parece-lhe

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que a ouve, mas é illusãoilusão. Quando muito, são as rodas do carro que vão rolando ee as t patas dos cavalloscavalos que batem: Cousas futuras! cousas futuras!

 
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CapituloCapítulo CXXCXIX

Que annunciaanuncia os seguintes.

Todas as historiashistórias, se as cortam em fatias, acabam com um capitulocapítulo ultimoúltimo e outro penultimopenúltimo, mas nenhum autor os confessa taestais; todos preferem dar-lhes um titulotítulo propriopróprio. Eu adopto o methodo oppostométodo oposto; escrevo no alto de cada um dos capituloscapítulos seguintes a posiçãoos seus nomes de remate, e, sem dizer a materiamatéria particular de nenhum, indico o kilometroquilômetro em que estamos da linha. Isto suppondosupondo que a historiahistória

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seja um trem de ferro. A minha não é propriamente isso. Poderia ser uma canoa, se lhe tivesse posto aguaságuas e ventos, mas tu sabes viste que só andamos por terra, a pé ou de carro, e mais cuidosos da gente que da meteorologiada gente que do chão. Não é trem nem barco; é uma historiahistória simples, acontecer/ida\acontecida e por acontecer; o que poderás ver nos dous capituloscapítulos que faltamfaltam, e são curtos.

 
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CapituloCapítulo CXXIICXX

PenultimoPenultimo.Penúltimo.

Este é ainda um obitoóbito. Ja lá ficou defunta a jovenjovem Flora, aqui vaevai morta a velha Natividade. Chamo-lhe velha, porque li a certidão de baptismo; mas, em verdade, nem os filhos homens e dedeputados, nem os cabelloscabelos totalmente brancos davam a esta senhora o aspecto correspondente áà idade edade. A elg eleganciaelegância, que era o seu sexto sentido, compunhaenganava os tempos emde tal maneira que lhe lhesellaela conservava, não digo a frescura, mas a robustezgraça antiga.

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Não morreu sem ter uma conferenciaconferência ultima derradeiraparticular com os dous filhos, — tão particular, e secreta, que nem o marido assistiu a ellaela. TambemTambém não instou por isso. Verdade, verdade, Santos chorava tão a miudo, queandava a chorar pelos cantos; mal poderia reter as lagrimaslágrimas, se ouvisse a mulher dizerfazer aos filhos as ultimas palavrasos suasseus finaes pedidos.finais pedidos. Porquanto, os medicosmédicos ja a haviam desenganado. Se eu não visse nestes ofnesses officiaesoficiais da saudesaúde os escrutadores da vida e da morte, podiapodia torcer a pennapena, e, , fazer escapar a enferma, contra a predicção scientifica. Mas seriacontra a predicção scientifica, fazer escapar Natividade. Commetteriacontra a predição científica, fazer escapar Natividade. Cometeria uma acçãoação facilfácil e rélesreles, alemalém de mentirosa. Não, senhor, ellaela morreu deveras, poucos mezes depois daquella sessão da sem

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camarafalta, poucos/as\falta, poucas mezes semanas depois daquelladaquela sessão da camaracâmara. Morreu de typhotifo.

Tão secreta foi a conferenciaconferência delladela come dos filhos que estes não quiseram quizeram contal-acontá-la a ninguemninguém, salvo ao conselheiro AyresAires, que a adivinhou em parte. Paulo e Pedro confessaram a outra p parte, pedindo-lhe silenciosilêncio.

— Não juraram calar?

— Positivamente, não, disse um.

— Juramos só o que ellaela nos pediu, explicou o outro.

— Pois então podem contal-ocontá-lo a mim. Eu serei discreto, comodiscreto como um tumulotúmulo.

AyresAires sabia que os tumulostúmulos não são discretos. Os tu Se elles nãoSe não dizem nada, é porque diriam sempre a mesma historiahistória;

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dahidaí a fama de discrição. Não é virtude, é falta de novidade.

Ora, o que a mãe fez, quando elleseles entraram e fecharam a porta do quarto, foi pedir-lhes que ficasse cada um do lado da cama, e lhe estendessem a dextradestra. Juntou-as sem força e fechou-as nas suas mãos ardentes. Depois, com a voz expirante e os olhos accesosacesos apenas de febre, pediu-lhes um favor grande e unicoúnico. Eles Elles iam chorando e calando, porventura adivinhando o favor.

— Um favor derradeiro, su insistiu ellaela.

— Diga, mãe/amãe\mamãe.

— Vocês vão fi ser amigos. Sua mãe padecerá no outro mundo, se os não vir amigos neste. Peço pouco; a vossa vida

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custou-me muito, a criação tambemtambém, e a minha esperança era vel-osvê-los grandes homens. Deus não quer, pacienciapaciência. Eu é que quero saber que não deixo dous ingratos. Anda, Pedro, anda, Paulo; juremPaulo, jurem que serão amigos.

Os moços choravam. Se não falavam, é porque a voz não lhes queria sair da garganta. Quando pôde, saiu tremulatrêmula, mas clara e forte:

— Juro, mamãe!

— Juro, mamãe!

— Amigos para todo sempre?

— Sim.

— Não quero outras saudades. Estas somente sómente, a amizade verdadeira everdadeira, e que se não quebre nunca mais.

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Natividade ainda conservou as mãos dellesdeles presas, sentiu-as tremulastrêmulas de commoçãocomoção, e esteve calada alguns instantes.

— Posso morrer tranquillatranquila.

— Não, mamãe não morre, interromperam os filhos. elles.interromperam ambos.

Parece que a mãe quizquis sorrir a esta palavra de confiança, mas a boca bôca não respondeu áà intenção, antes fez um trejeito tregeito que assustou os filhos. Paulo correu a pedir socorro. Santos entrou alvoroçdesorientado no quarto, a tempo de ouvir áà esposa algumas palavras suspiradas e derradeiras. A agonia começou logo, e durou algumas horas. Contadas todas as horas de agonia que tem

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havido no mundo, quantos seculosséculos farão? Desses teriam/ão\terão sido tenebrosos alguns, outros melancolicosmelancólicos, muitos desesperados, raros enfandonhosenfadonhos. EmfimEnfim, a morte chega, por muito que se demore, e põe arranca a pessoa ao pranto ou ao silenciosilêncio.Natividade saiu com lagrimas.

 
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CapituloCapítulo CXXIICXXI

UltimoUltimoUltimo.Último.

Castor e PolluxPólux foi/ram\ fôramforam os nomes que um deputado pôzpôs aos dous gemeosgêmeos, quando elleseles tornaram áà camaracâmara, depois da missa do setimosétimo dia. Tal era a união que parecia aposta;/.\aposta. Entravam juntos, andavam juntos, saíam juntos. UmaDuas ou duas treztrês vezes chegaram a vo votaram juntos, com grande escandaloescândalo dos respectivos amigos politicospolíticos. Tinham sido eleitos para se baterem, e , caso pon acabavam traindo os eleitores. Ouviram palavr pa nomes duros, reprehensõesrepreensões acerbas. QuizeramQuiseram renunciar

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ao cargo; Pedro, entretanto, achou um meio conciliatorioconciliatório.

— O nosso dever politicopolítico é votar com os amigos, disse elleele ao irmão. Votemos com elleseles. Mamãe só nos pediu concórdia concordia pessoal. Na tribuna, sim, ninguemninguém nos levará a attacaratacar um ao outro; na/o\no urnadebate e no voto podemos e devemos dissentir.

— Apoiado; mas, se você um dia acabarachar que deve vir para os meus arraiaesarraiais, venha. Você nem eu hypothecamoshipotecamos o juizojuízo.

— Apoiado.

Pessoalmente, nem sempre havia este accordoacordo. Os contrastes não eram raros, nem os impetosímpetos, mas a lembrança da mãe estava tão fresca, a morte tão

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proximapróxima, que elleseles sopitavam qualquer movimento, por mais que lhes custasse, e viviam unidos. Na camaracâmara, o dissentimento politicopolítico e a unifusão pessoal cada vez os fazia mais admiraveisadmiráveis.

A camaracâmara terminou os seus trabalhos em dezembro. Quando tornou os rtornou em maio seguinte, só Pedro lhe appareceuapareceu. Paulo tinha ido a Minas, uns diziam que a ver noiva, outros que a catar diamantes ./,\, Po mas parece que foi só a passeio. Pouco depois regressou, entrando na camaracâmara sozinho sósinho, ao contrariocontrário do annoano anterior em que os dous irmãos subiam as escadas ju juntos, quasiquási pegados. O olho dos amigos não tardou em descobrir que não viviam

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bem, pouco depois que se detestavam. Não faltou indiscreto que lhes perguntasse a um a e a outro o que houvera no intervallointervalo das duas sessões; nenhum respondia nada. O presidente da camaracâmara, a conselho do leader, nomeou-os para a mesma commissãocomissão. Pedro e Paulo, cada um por sua vez, foram fôram pedir-lhe que os dispensasse.

— São outros, disse o presidente na sala do café.

— Totalmente outros, confirmaram os deputados presentes.

AyresAires soube daquelladaquela conclusão no dia seguinte, por um deputado, seu amigo, que morava em uma das casas de pensão do CatteteCatete. Tinha ido alalmoçar

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com elleele, e, em conversação, como o deputado soubesse das relações de AyresAires com os dous collegascolegas, contou-lhe o annoano anterior e o presente, a differençadiffe mudança radical e inexplicavelinexplicável. Contou tambemtambém a opinião da vespera na sala da cacamara.câmara.

Nada era novidade para o conselheiro, que assistira áà ligação e desligação dos dous gemeosgêmeos. EmquantoEnquanto o outro falava, elleele ia remontando os tempos e a vida dellesdeles, recompondo as lutas, os contrastes, a aversão reciprocarecíproca, apenas disfarçada, apenas interrompida por algum motivo mais forte, mas persistente no sangue, como umnecessidade virtual. Não lhe

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esqueceram os pedidos da mãe, nem a ambição desta em os ver grandes homens.

— O senhor que se dá com elleseles diga-me : o que é que os fez mudar?/,\ perguntou-lheconcluiu o amigo.

— Mudar? Não mudaram nada; são os mesmos.

— Os mesmos?

— Sim, são os mesmos.

— Não é possível.

Tinham acabado o almoço. O deputado subiu ao quarto para se se compor compôr de todo. AyresAires foi esperal-o áesperá-lo à porta da rua. Quando o deputado desceu, faiscava-lhe nos olhos um achado.vinha com um achado nos olhos.

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— Ora, espere, não será... Quem sabe se não será a herança da mãe que os mudou? Pode Póde ter sido a herança, questões de inventarioinventário...

AyresAires sabia que não era a herança, mas não quizquis repetir que elleseles eram os mesmos, desde o uteroútero. Preferiu aceitar acceitar a hypothesehipótese, para evitar dep debate, e saiu apalpando a botoeira, onde viçava a mesma flor flôr eterna.

F

Fim.